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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

Print version ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.39 no.2 Lisboa Apr. 2023  Epub Apr 30, 2023

https://doi.org/10.32385/rpmgf.v39i2.13471 

Estudos originais

Proporção de sinais e sintomas ICPC2 indevidamente colocados como doença crónica em medicina geral e familiar: um estudo preliminar no centro de Portugal

The proportion of inadequately ICPC2 signs and symptoms coded as a chronic disease in general practice/family medicine: a preliminary study in central Portugal

Joana Pinto Coelho1 

Luiz Miguel Santiago2 
http://orcid.org/0000-0002-9343-2827

Maria Teresa Reis3 

1. Faculdade de Medicina, Universidade de Coimbra. Coimbra, Portugal.

2. Clínica Universitária de Medicina Geral e Familiar, Faculdade de Medicina, Universidade de Coimbra. Coimbra, Portugal. Centro de Estudos e Investigação em Saúde, Universidade de Coimbra. Coimbra, Portugal.

3. USF Topázio, ACeS Baixo Mondego. Coimbra, Portugal.


Resumo

Introdução:

O uso correto da Classificação Internacional de Cuidados Primários (ICPC-2) permite uma prática clínica adequada, o conhecimento epidemiológico e o estudo da saúde das comunidades.

Objetivo:

Identificar “sinais e sintomas” dos capítulos da ICPC-2 inapropriadamente classificados como ativos e crónicos (CIC), caracterizando a sua proporção e a sua distribuição por capítulos.

Métodos:

Estudo observacional e transversal, exploratório, com colheita de dados das consultas de todas as terças, quartas e sextas-feiras do mês de agosto de 2021, de dois ficheiros clínicos. Procedeu-se a análise descritiva da lista de CIC.

Resultados:

Foram avaliados os dados de 123 doentes, 52,8% do sexo feminino e com idade média de 53,3±22,4 anos. Em 45,5% dos doentes havia CIC que representavam 8,2% do total de classificações crónicas. Os capítulos músculo-esquelético (16,3%), psicológico (7,3%) e os genital feminino, circulatório e geral e inespecífico (todos com 5,7%) foram os mais frequentes. Em função do sexo e idade não se verificaram diferenças significativas, mas quanto maior era o número de classificações totais, maior era o número de CIC.

Discussão:

Os resultados obtidos podem originar impacto positivo na epidemiologia, na redução de tempo em acompanhamento do doente, na comunicação médica e na credibilização dos registos para investigação. A elevada prevalência dos sintomas músculo-esqueléticos pode levar à manutenção destes problemas como crónicos. A pandemia COVID-19 pode ser associada a um maior número de sinais e sintomas transitórios, mas classificados como ativos. Um grande número de problemas ativos pode afetar negativamente a capacidade de classificar.

Conclusão:

Em estudo preliminar verificou-se que em 45,5% dos doentes havia classificações inapropriadamente crónicas, sendo 8,2% das classificações totais inapropriadas, pelo que a atualização periódica da lista de problemas, o investimento na formação dos médicos de família na ICPC-2 e a avaliação frequente das classificações parecem ser atividades a desenvolver.

Palavras-chave: Medicina geral e familiar; Classificação; Registos clínicos; Lista de problemas; ICPC-2; CSP

Abstract

Introduction:

The correct use of the International Classification of Primary Care (ICPC-2) allows adequate clinical practice and epidemiologic knowledge and the study of the community’s health.

Objective:

To identify ICPC-2 chapters’ Signs and Symptoms inadequately classified as active and chronic ones (CIC), their proportion, and the main chapters involved.

Methods:

An observational, cross-sectional, exploratory study was performed using data collected from consultations every Tuesday, Wednesday, and Friday during August of 2021, in the consultations of two general practice/family doctors in the Primary Care Health Unit of the Portuguese National Health Service. A descriptive analysis of the list of active problems of the users and recording of the classifications considered inappropriate was performed.

Results:

A population of 123 patients, 52.8% female, mean sample age of 53.3±22.4 years were studied. For 45.5% of the patients, there were chronic misclassifications, with CIC representing 8.2%. The musculoskeletal (16.3%), psychological (7.3%), and the female genital, circulatory, and general and nonspecific (all with 5.7%) chapters were the most frequent. There was no significant difference by gender and age, but the greater the number of total classifications, the greater the number of CIC.

Discussion:

The results may have a negative impact on patient follow-up, communication between physicians, and increased time spent in consultations, due to the lack of updating the list of problems and decreased credibility of records for investigation. The high prevalence of musculoskeletal signs and symptoms can lead to the resolution of these problems as chronic. The COVID-19 pandemic can be associated with a greater number of transient symptoms but is classified as CIC. Many active issues can affect appropriate classification.

Conclusion:

It is important to periodically update the list of problems, train family doctors in ICPC-2 use and frequently evaluate the classifications. Further validation studies of CIC in electronic record systems are needed.

Keywords: General practice; Classifications; Medical records

Introdução

A Classificação Internacional de Cuidados Primários (ICPC-2) é utilizada na prática clínica do médico de família (MF) para classificar motivos de consulta (MC), procedimentos e problemas de saúde, para os quais exista uma razoável certeza diagnóstica.1 Foi publicada, em 1987, pelo Comité de Classificação Internacional da WONCA (World Organization of Family Physicians), tendo surgido, em 1998, a segunda versão. 2 Esta classificação foi reconhecida, em 2003, pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como a melhor forma de codificar em medicina geral e familiar (MGF). 2-3 Pode ser usada com o método SOAP, classificando motivos de consulta em «S», diagnósticos/problemas crónicos de saúde em «A» e procedimentos em «P».1

O registo é um dos principais procedimentos do MF, estando a qualidade da informação também dependente de um correto uso das classificações. Este sistema de classificação, realizado de forma regular na prática clínica, permite obter dados epidemiológicos sobre a incidência e prevalência de doenças e sobre a multimorbilidade, permite a identificação de grupos de risco e dos problemas das populações, bem como a melhoria dos recursos disponibilizados à comunidade. 4-8 Uma classificação de qualidade permite uma prática clínica adequada e reflete a qualidade inerente aos cuidados médicos individualizados, sendo instrumento de estudo da saúde das comunidades. 3,9-11

Estudos concluem que a ICPC-2 não é globalmente usada e, mesmo nos países que reportam o seu uso, a maioria não o faz de forma obrigatória. 12 Um estudo norueguês, de 2010, refere que a ICPC-2 não é adequada para o trabalho clínico e que deveria ponderar-se uma solução alternativa. 13 Um estudo português, de 2013, indica que apesar de a classificação ser útil na prática clínica, só é sobretudo adequada em ambientes de investigação, internamento e ensino. 11 Estudos mais recentes demonstram a capacidade do uso da ICPC-2 em fazer diagnósticos para poder organizar planos e objetivos de reabilitação, sendo adequada ao uso na prática clínica diária14-15 e revelam a elevada qualidade dos registos feitos nos países nórdicos. 7

A ICPC-2 é utilizada para classificar problemas de saúde na lista de problemas, sendo este registo de enorme importância para monitorizar e planear o acompanhamento do doente, facilitar a comunicação entre médicos, permitir às autoridades de saúde conhecer o padrão de morbilidade de uma população e promover a investigação. 1,3,16-17

Os problemas de saúde englobam os diagnósticos feitos pelo médico, que podem ser doenças (componente 7 da ICPC-2 - Diagnósticos e doenças) ou sintomas (componente 1 da ICPC-2 - Sintomas/queixas) para os quais não exista ainda um diagnóstico definitivo. 1-2,9,18

Os problemas são classificados, de forma dinâmica, como ativos ou passivos, consoante, respetivamente, afetem o doente ou se encontrem resolvidos, mas com potencial de voltar a afetá-lo. 9 Não devem ser introduzidos todos os problemas da consulta na lista de problemas principais, devendo ser excluídos os agudos, que não têm consequências para o futuro acompanhamento do doente, tal como os isolados e/ou autolimitados. 1,9,19 A lista de problemas deve ser revista periodicamente pelo MF, devendo ser atualizada quando algum é resolvido, identificado de novo ou quando passa a integrar um novo diagnóstico. 9

Estudos apontam para o facto de a classificação do problema ser insuficiente para documentar, de uma forma adequada, o problema de saúde do doente. 1,9,20-22 Outros revelam a falta de preparação dos médicos de família no uso da ICPC-2. 1 Como classificação complexa exige formação e treino. Esta formação deve ser orientada para a classificação de problemas, aumentando o rigor e a credibilidade das classificações. 21

Encontram-se descritas várias causas possíveis para a desadequação das classificações do MF. Na prática clínica lida-se muitas vezes com sintomas mal definidos, que podem não chegar a transformar-se num problema de saúde, mas que, indevida ou erroneamente, se mantêm classificados como ativos. 22 Os sistemas de registo eletrónico utilizados atualmente em Portugal não fazem o encerramento automático de episódios de cuidados, obrigando à intervenção do médico e levando à perpetuação indevida de problemas crónicos, já resolvidos. 1 A substituição dos registos pela ICPC-2, imposta na avaliação de desempenho das unidades de saúde familiar (USF), tem sido determinada por parte do SClínico® Cuidados de Saúde Primários (CSP), programa oficial de registos eletrónicos, que insere automaticamente alguns itens na lista de problemas, ficando classificados como ativos. 20-21 A formação do MF na ICPC-2 será insuficiente, originando uma utilização incorreta, sendo a classificação percebida como uma tarefa consumidora de tempo. 23

O descrito pode, a longo prazo, impedir o médico de identificar rapidamente os principais problemas de saúde que afetam o doente, deteriorar a qualidade do seu acompanhamento e diminuir a precisão na avaliação da terapêutica e do impacto da multimorbilidade. 24-25

O presente estudo teve como objetivo verificar a proporção de sinais e sintomas que estavam indevidamente classificados como problema crónico, sendo um estudo preliminar. A identificação dos capítulos da ICPC-2 inapropriadamente classificados como ativos pode ajudar a melhorar a qualidade da gestão epidemiológica e clínica.

A importância deste estudo surge da inexistência de estudos semelhantes publicados e da necessidade de mais investigação na validação da informação classificada nos sistemas eletrónicos de registo de saúde.

Métodos

Colheita de dados

Realizou-se um estudo observacional e transversal, aleatório, com colheita de dados nas consultas de todas as terças, quartas e sextas-feiras do mês de agosto de 2021, avaliando-se para cada dia quatro casos: o primeiro, o quarto, o quinto e o último. A colheita foi realizada por dois investigadores da USF Topázio, com acesso profissional aos dados, tendo sido garantido o anonimato e a não identificação dos utentes.

Procedeu-se a análise descritiva da lista de problemas ativos dos utentes e registo das classificações consideradas inapropriadas em documento Microsoft Excel®.

Análise estatística

Na análise descritiva são apresentadas frequências absolutas (n) e relativas (%) para as variáveis categóricas e médias (M) e desvios-padrão (DP) para as variáveis contínuas.

A avaliação da associação entre variáveis foi realizada com o teste qui-quadrado (χ2) para variáveis nominais e com o coeficiente de correlação de Spearman, dada a natureza assimétrica da variável «número de classificações inapropriadas».

A análise de dados foi realizada com o Software Statistical Package for Social Sciences (SPSS) ® , v. 22.

Aspetos éticos

Obteve-se parecer positivo da Comissão de Ética para a Saúde da Administração Regional de Saúde (ARS) do Centro.

Resultados

Avaliaram-se os dados de 123 doentes, 65 (52,8%) do sexo feminino, sendo as idades compreendidas entre os um mês e 24 dias e os 91 anos, média de 53,3±22,4 anos.O número de doentes com classificação inapropriadamente crónica de sinais e sintomas, bem como de diagnósticos não crónicos, codificados como doença crónica, foi de 56 (45,5%) e nas classificações verificou-se um volume de 87, frequência de 8,2% inapropriadamente realizadas, conforme a Tabela 1.

Tabela 1 Distribuição do número de classificações inapropriadas, por doente 

Em 67 (54,5%) doentes não se encontrou qualquer erro. Para um total de 56 doentes, 39 (69,7%) tinham uma classificação errada, 11 (19,6%) tinham duas, quatro (7,1%) tinham três, um (1,8%) tinha cinco e um (1,8%) tinha nove classificações inapropriadas.

Encontraram-se frequências semelhantes de classificações entre sinais e sintomas, inapropriadas, como problemas crónicos (49,4%) e sinais e sintomas com classificação inapropriadamente crónica (50,6%).

Analisando por capítulos verificou-se um total de 77 classificações inapropriadas (7,2%), distribuídas de acordo com a Tabela 2.

Tabela 2 Distribuição do número de capítulos com classificação errada, por doente 

Em 67 (54,5%) doentes não foram encontrados quaisquer erros. Para um total de 56 doentes, 46 (82,1%) tinham um capítulo com classificação errada, cinco (8,9%) tinham dois, três (5,4%) doentes tinham três, um (1,8%) tinha cinco e um (1,8%) tinha sete capítulos com classificação errada.

A prevalência de doentes com, pelo menos, um erro de classificação, por capítulo, pode ser observada na Tabela 3.

Tabela 3 Prevalência de doentes com, pelo menos, um erro de classificação por capítulo 

A prevalência mais elevada foi detetada no capítulo do sistema músculo-esquelético, com 16,3% de doentes com classificação errada. Segue-se o capítulo psicológico, com nove (7,3%) doentes e os capítulos do aparelho genital feminino, aparelho circulatório e geral e inespecífico, todos com sete (5,7%) doentes com classificações inapropriadas. Os restantes dados podem ser observados na Tabela 3.

Constatou-se ser de 8,7±5,6 o número de problemas ativos por pessoa antes de se proceder à limpeza dos códigos não necessários.

Para avaliar a associação entre o número de classificações inapropriadas com o género utilizou-se o formato dicotómico da variável das classificações inapropriadas. A associação com a idade e o número de problemas ativos foi avaliada com o coeficiente de correlação de Spearman.

Verificou-se que, em função do género e idade, não havia diferença estatisticamente significativa (χ2 (1)=2,55, p=0,110 e r s =0,06, p=0,547, respetivamente). Constataram-se, porém, resultados diferentes em função do número de classificações totais (r s =0,332, p<0,001), em que quanto maior o número de classificações totais maior era o número de classificações inapropriadas colocadas.

Discussão

O presente estudo teve como objetivo verificar a proporção de sinais e sintomas e respetivos capítulos da ICPC-2 que foram indevidamente classificados como doença crónica, com a finalidade de melhorar a qualidade e a credibilidade das classificações, tornando-as fidedignas para monitorizar e planear o acompanhamento do doente, obter dados sobre a incidência e prevalência de doenças, identificação de grupos de risco e dos problemas das populações. 4,17

A importância desta análise surge da inexistência de estudos semelhantes publicados e da necessidade de mais investigação na validação da informação codificada nos sistemas eletrónicos de registo de saúde.

O número de doentes com classificações inapropriadas foi de 56 (45,5%) e o de classificações inapropriadas foi de 87 (8,2%). Em 67 (54,5%) doentes não foi encontrada qualquer classificação inapropriada. Para um total de 56 doentes, 39 (69,7%) tinham uma classificação errada, 11 (19,6%) tinham duas, quatro (7,1%) tinham três, um (1,8%) tinha cinco e um (1,8%) tinha nove classificações inapropriadas. Todas as classificações foram devidamente verificadas em função da sua pertinência, de serem referentes a sinais ou sintomas já há muito ou pouco tempo observados, de serem referentes a situações de estudo e não confirmadas, e de refletirem problemas já não existentes, confirmados pelos respetivos médicos de família.

A maior frequência, por capítulo, foi detetada no sistema músculo-esquelético (16,3%), seguindo-se o psicológico (7,3%) e os aparelhos genital feminino, circulatório e geral e inespecífico (todos com 5,7%).

Não se verificou associação significativa entre o género e as classificações inapropriadas, nem com a idade. Observou-se, no entanto, associação significativa entre o número de problemas ativos e o número de classificações inapropriadas, sugerindo que quanto maior o número de classificações totais maior o número de classificações inapropriadas colocadas. Este resultado pode significar que, havendo um grande número de problemas ativos, a capacidade de classificar, por parte do MF, pode ser afetada, tanto nas vertentes de classificar novos diagnósticos, de retirar os já resolvidos, como de integrar um novo diagnóstico. O excesso de problemas ativos pode desencadear excesso de recurso a meios complementares de diagnóstico e a terapêutica farmacológica, bem como suscitar o surgimento de erro médico por frustração profissional. 26

Encontrou-se maior proporção de sinais e sintomas indevidamente classificados como doença crónica nos capítulos do sistema músculo-esquelético e psicológico, o que pode ser justificado por serem também os capítulos mais vezes classificados11,27 e, portanto, com maior probabilidade de erro, por falta de formação do MF na ICPC-2, por tempo limitado por consulta ou por falta de atualização da lista de problemas.

A ausência de estudos semelhantes dificulta uma interpretação adequada dos resultados, assim como a comparação direta dos dados. Contudo, estudos portugueses que investigaram os MC mais frequentemente codificados comprovam os presentes resultados. 11,26-27 O estudo de 2013 descreve os capítulos geral e inespecífico, sistema músculo-esquelético e aparelho circulatório como os MC mais frequentes. 11 O de 2016 aponta os mesmos, incluindo também o digestivo, respiratório e o psicológico. 26 O de 2020 não inclui o psicológico, mas inclui o da pele. 27

Estes estudos sugerem que os médicos podem ter classificado corretamente os MC dos doentes e que os tenham classificado indevidamente como problemas crónicos.

O capítulo do sistema músculo-esquelético é dos mais frequentemente classificados em MC. 11 A elevada prevalência destes sintomas na população pode levar à manutenção destes problemas como crónicos, podendo a situação já estar resolvida. Por outro lado, sendo estes sintomas por vezes inespecíficos, as dúvidas quanto ao diagnóstico ou à integração num diagnóstico já codificado podem originar classificações crónicas inapropriadas.

O capítulo psicológico tem uma correlação positiva com períodos de recessão económica, que contribuem para uma maior frequência de problemas de saúde mental. 27 Por outro lado, dado o período em que os dados foram colhidos, poder-se-á associar a pandemia COVID-19 a um maior número de sintomas nesta área, codificados como ativos, mas que se vieram a mostrar transitórios.

A frequência com que o capítulo geral e inespecífico é indevidamente classificado pode indicar que o doente tem dificuldade em expressar o que o leva a procurar o MF ou que este tem dificuldade em classificar o diagnóstico pela complexidade em lidar com queixas inespecíficas. 27 Estes estudos sugerem que os doentes procuram frequentemente o MF por sinais e sintomas que podem não constituir uma doença bem definida e que, por isso, necessita de constante atualização. 11 Estas dificuldades ou inespecificidades podem levar à classificação como crónica de problemas não crónicos.

Os presentes resultados corroboram a importância da revisão da lista de problemas pelo MF periodicamente, devendo este encerrar episódios passados e remover problemas pouco relevantes da lista de problemas principais, sempre que necessário. 1

Várias soluções são descritas, na bibliografia, para manter um registo de elevada qualidade. O sistema de registo deve informar acerca de episódios que devem ser desativados. 1 O aumento da formação do MF na utilização da ICPC-2 poderá ser uma solução para diminuir a proporção de sinais e sintomas inapropriadamente classificados, melhorando a qualidade dos registos, apesar da existência de livro explicativo e de cursos para médicos especialistas e internos. 1,11,17,21,28 O investimento na formação aumentaria o número de médicos que fazem uso da classificação diariamente, bem como a qualidade das suas classificações. 27 Poderão ser usados médicos de família classificadores em diferido da consulta. 20 Deve ser feita uma utilização sistemática da ICPC-2 por médicos de família treinados e integrados em projetos de investigação como forma de assegurar investigação de qualidade. 21 Os registos devem ser avaliados e validados frequentemente. 1

Acredita-se que muitos destes erros de classificação poderão ser ultrapassados com lembretes, por parte do SClínico® CSP, para atualização da lista de problemas, não duplicação de códigos ou omissão de informação que levem a classificações automáticas.

O presente estudo veio acrescentar informação importante à descrita na literatura, na medida em que revelou uma proporção importante de doentes com classificações inapropriadas, com eventual impacto negativo no acompanhamento do doente, na comunicação entre médicos, provável aumento do tempo despendido nas consultas por não atualização da lista de problemas e na diminuição da credibilidade dos registos para investigação e melhoria dos recursos disponibilizados à população. 4,17

Apesar da importância dos resultados, é relevante mencionar que o estudo exploratório tem algumas limitações. A amostra não tem as dimensões desejadas, tanto temporal como geograficamente, mas, tendo sido obtida em quasi-aleatorização, permite uma cuidadosa generalização dos resultados. Os dados foram colhidos por dois investigadores, o que pode ser causa de diminuição da precisão, apesar de ambos serem fluentes na classificação ICPC-2. Um estudo de variação inter-observador, em que cada um avaliava cada doente, seria mais preciso, mas não seria realístico os dois investigadores avaliarem todos os doentes.

Para a realização de comparações e para interpretações mais precisas são necessários mais estudos de validação da informação classificada nos sistemas de registo eletrónico em diferentes contextos e com metodologia que obvie erros de análise, simultaneamente verificando ganhos em saúde e em eficiência médica.

Conclusão

Verificou-se que 45,5% dos doentes apresentavam classificações inapropriadas crónicas e uma frequência de 8,2% classificações inapropriadas. O sistema músculo-esquelético, o psicológico e os aparelhos genital feminino, circulatório e geral e inespecífico foram os capítulos mais frequentes.

Classificações inapropriadamente crónicas diminuem a qualidade e credibilidade das classificações, tendo implicação na monitorização e planeamento do acompanhamento do doente, na obtenção de dados sobre a incidência e prevalência de doenças e na gestão de recursos disponibilizados à população.

A atualização periódica da lista de problemas, por parte do MF, pode minimizar este problema, diminuindo o número de classificações inapropriadas colocadas, melhorando a qualidade do classificado e dos registos e contribuindo para uma prática clínica de qualidade.

São necessários estudos em mais áreas geográficas e noutros períodos temporais para validar a informação codificada e para que possam serem feitas comparações dos resultados.

Contributo dos autores

Conceptualização, JPC, LMS e MTR; metodologia, JPC, LMS e MTR; software, LMS; validação, JPC, LMS e MTR; análise formal, LMS; investigação, LMS e MTR; recursos, LMS e MTR; gestão de dados, JPC, LMS e MTR; redação do draft original, JPC, LMS e MTR; revisão, edição e validação do texto final, JPC, LMS e MTR; visualização, JPC, LMS e MTR; supervisão, LMS e MTR; administração do projeto, LMS.

Conflito de interesses

Os autores declaram não possuir quaisquer conflitos de interesses.

Fontes de financiamento

Os autores declaram não ter recebido qualquer financiamento para a elaboração do artigo.

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Recebido: 19 de Fevereiro de 2022; Aceito: 09 de Dezembro de 2022

Endereço para correspondência Luiz Miguel Santiago E-mail: luizmiguel.santiago@gmail.com

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