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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.39 no.2 Lisboa abr. 2023  Epub 30-Abr-2023

https://doi.org/10.32385/rpmgf.v39i2.13491 

Estudos originais

Divulgação de conflitos de interesse na Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar em 2019

Disclosure of conflicts of interest in the Portuguese Journal of Family Medicine during 2019

1. USF Almirante, ACeS Lisboa Central. Lisboa, Portugal.


Resumo

Introdução e objetivo:

A confiança da opinião pública na investigação científica e a credibilidade dos artigos científicos publicados são influenciadas pela forma como os autores divulgam os seus conflitos de interesse (CdI). O objetivo do presente estudo foi caracterizar a divulgação de CdI financeiros numa publicação médica de referência na medicina geral e familiar em Portugal, comparando os CdI declarados pelos autores com os pagamentos listados na Plataforma de Comunicações - Transparência e Publicidade, do Infarmed.

Método:

Foram analisados todos os artigos publicados na Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar entre janeiro e dezembro de 2019. Os autores foram classificados segundo a concordância entre os CdI declarados e os pagamentos listados na plataforma de transparência. Os autores que publicaram mais do que um artigo no período em análise foram considerados como novos autores, uma vez que cada publicação é uma nova oportunidade de divulgação de CdI.

Resultados:

Foram analisados 56 artigos (total 67, 11 excluídos) e em nenhum caso foi referida a existência de CdI financeiros. Quarenta e oito artigos (85,7%) continham pelo menos um autor com pagamentos na plataforma do Infarmed. Dos 196 autores analisados (total de 207 autores, 10 excluídos por não serem médicos, um por impossibilidade de garantir identificação inequívoca por homonímia), 112 (57,1%) tinham pagamentos não divulgados. O total dos pagamentos não divulgados ascendeu a 127.025,37 €.

Discussão:

Nenhum autor declarou a existência de CdI financeiros, possivelmente por não considerar relevante a relação entre os pagamentos recebidos e o objetivo do próprio estudo. A omissão de CdI deve ser considerada má prática, pelo que torna-se necessário reforçar as medidas de transparência no processo de divulgação científica.

Palavras-chave: Conflitos de interesse; Investigação

Abstract

Introduction:

Public trust in scientific research and the credibility of published scientific articles are influenced by the way authors disclose their conflicts of interest (COI). In this study we analysed how financial COI are disclosed in the Portuguese Journal of Family Medicine, comparing authors’ self-disclosure with the data gathered in the Infarmed’s sunshine platform (Plataforma de Comunicações - Transparência e Publicidade).

Methods:

We reviewed all articles published in the Portuguese Journal of Family Medicine between January 2019 and December 2019. Authors were categorized on concordance between self-reported disclosures and payments listed in the database. Authors who authored multiple articles were counted as new authors since each paper offered a new opportunity for COI disclosure.

Results:

Of the 56 articles surveyed (a total of 67, 11 excluded), none disclosed any financial COI and 48 articles (85.7%) had at least one author with non-disclosed financial COI. Of the 196 authors surveyed (a total of 207, 10 were excluded for not being doctors, and one for risk of ambiguous identification due to homonymy), 112 (57.1%) had undisclosed payments. Undisclosed payments totalled over € 127,025.37.

Discussion:

No author declared the existence of financial COI, possibly because they did not consider the relationship between the payments received and the purpose of the study itself to be relevant. The omission of COI must be considered bad practice and therefore transparency measures in the scientific dissemination process need to be strengthened.

Keywords: Conflict of interest; Research

Introdução

“[…] concerns are growing that wide-ranging financial ties to industry may unduly influence professional judgments involving the primary interests and goals of medicine. Such conflicts of interest threaten the integrity of scientific investigations, the objectivity of professional education, the quality of patient care, and the public’s trust in medicine”.

Conflict of interest in Medical Research,Education and Practice

Institute of Medicine, 2009

Apesar de não existir uma definição unívoca, poder-se-ão considerar os conflitos de interesse (CdI) como circunstâncias em que um objetivo primário possa ser influenciado por um interesse secundário.1 De acordo com uma outra definição, da World Association of Medical Editors (WAME), 2 poder-se-á falar em conflitos de interesse na área da investigação e publicação científica quando um autor, revisor ou editor apresenta relações pessoais ou financeiras que podem interferir com as próprias competências, seja de forma consciente ou inconsciente.

Em 2009, em resposta a uma preocupação crescente no mundo científico, o Institute of Medicine (IOM) 1 publicou um relatório em que era analisada toda a evidência científica existente acerca do impacto dos CdI financeiros na investigação, educação e prática médica.

No mesmo ano, o International Committee of Medical Journal Editors (ICMJE), um grupo de trabalho formado pelos editores das principais revistas médicas a nível mundial, tentou uniformizar o processo de divulgação de CdI através da elaboração de um formato único de partilha de CdI em artigos científicos. 3

O modelo do ICMJE requer que sejam comunicadas aos editores: 1) relações com entidades que apoiaram a realização do trabalho em apreço; 2) benefícios recebidos por parte de outras entidades com potencial interesse na área em estudo (independentemente da quantia recebida); 3) benefícios económicos (independentemente da quantia recebida) recebidos por entidades que operam fora da área do estudo; 4) outras ligações não económicas relevantes para o trabalho em apreço.

Estas medidas, juntamente com as guidelines e fluxogramas publicados pelo Committee on Publication Ethics (COPE), constituem atos de autorregulação que visam aumentar a transparência no processo de divulgação científica.

Ao mesmo tempo foram implementadas medidas comunitárias e nacionais que definem por lei o que deve ser partilhado com as entidades reguladoras.

Em Portugal, com a promulgação do Decreto-Lei n.o 20/2013, procedeu-se à adaptação do direito nacional no que diz respeito ao cumprimento da Diretiva n. o 2010/84/EU, do Parlamento Europeu. As várias alterações permitiram reforçar a função reguladora do Infarmed e, ao mesmo tempo, incrementar a transparência nas interações entre os operadores da economia do medicamento e os profissionais de saúde, mas também com grupos da sociedade civil (e.g., associações de doentes).

A partir de 2013, todas as declarações de patrocínios concedidos ou recebidos passaram a ser divulgadas através da Plataforma de Comunicações - Transparência e Publicidade, do Infarmed. 4

A partir de 2014, o uso da plataforma foi alargado aos patrocínios concedidos a pessoas singulares, inclusive os profissionais de saúde, tornando assim possível a criação duma base de dados online (https://placotrans.infarmed.pt/Publico/ListagemPublica.aspx), 5 de consulta pública, onde são listados todos os benefícios recebidos, ou seja, “qualquer vantagem, valor, bem ou direito avaliável em dinheiro, independentemente da forma da sua atribuição, seja a título de prémio, patrocínio, subsídio, honorários, subvenção ou outro”. 6

Inicialmente era obrigatório declarar qualquer pagamento superior a 25 euros; em 2014 o valor foi aumentado para 60 euros, em concordância com o resto da União Europeia (Despacho n.o 12.284/2014). Desde fevereiro de 2017, a obrigatoriedade foi alargada ao âmbito dos dispositivos médicos. 7

É importante referir que, de alguma forma, todos têm CdI e a sua presença não implica necessariamente a existência de irregularidades. 2 Contudo, hoje mais do que nunca, é importante que os CdI financeiros sejam divulgados, por um lado, porque a sua divulgação permite ao leitor avaliar se existem ligações entre o tema em análise e eventuais patrocinadores, por outro, porque a sua ocultação pode desacreditar o conhecimento científico corretamente produzido e por sua vez desvalorizar a revista onde o trabalho foi publicado. 2,8 Por estes motivos, a não divulgação de CdI financeiros é considerada atualmente má conduta. 8

Recentemente foi publicado um artigo a apontar para a divulgação incompleta de CdI financeiros numa revista nacional indexada na MEDLINE. 9

Na principal revista científica da medicina geral e familiar (MGF) portuguesa, a Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (RPMGF), os autores devem seguir as normas editoriais declarando a existência de CdI em formulário próprio no ato de submissão do artigo.

Neste contexto foi decidido realizar um estudo com o objetivo de caracterizar a divulgação de CdI financeiros na RPMGF, comparando os CdI declarados pelos autores com os pagamentos listados na Plataforma de Comunicações - Transparência e Publicidade, do Infarmed.

Métodos

Foram analisados todos os artigos publicados na RPMGF entre janeiro e dezembro de 2019 (volume 35, números de 1 a 6) e com data de submissão posterior a 1 de janeiro de 2016.

Foram comparados os CdI financeiros reportados pelos autores dos artigos com os dados disponíveis na Plataforma de Comunicações - Transparência e Publicidade (https://placotrans.infarmed.pt/) relativos aos 36 meses anteriores ao ano de submissão do artigo.

Foram excluídos artigos:

  • Sem referência à data de submissão, por não ser possível determinar qual o intervalo temporal de análise dos pagamentos recebidos;

  • Com todos os autores estrangeiros, pois o registo na plataforma de transparência do Infarmed é nacional;

  • Com todos os autores não médicos (e.g., técnicos de farmácia ou estudantes), por não ser possível garantir a identificação inequívoca através de base de dados públicas.

O investigador criou uma matriz para registo das seguintes variáveis: título do artigo, ano de submissão à RPMGF, nome dos autores, declaração de CdI financeiros na secção «Conflitos de interesse», presença de pagamentos na plataforma de transparência nos três anos civis prévios à submissão do artigo (excluindo o ano civil da submissão) e valor pago pela entidade contribuinte em euros (e.g., se um estudo foi submetido à RPMGF em 2016 foram pesquisados, para cada um dos autores, pagamentos na plataforma nos anos de 2013, 2014 e 2015).

Os autores foram classificados segundo a concordância (concordante ou discordante) entre os CdI declarados e a presença de pagamentos listados na plataforma de transparência.

Os autores foram avaliados por cada artigo submetido, pois cada submissão é uma nova oportunidade para declarar CdI financeiros existentes.

Para esclarecer eventuais dúvidas relativas à identificação dos autores, os nomes presentes nos artigos publicados foram confrontados com os dados disponíveis na página da Ordem dos Médicos (https://ordemdosmedicos.pt/medicos-registados-na-ordem-dos-medicos/) e com os planos de ação das unidades funcionais disponíveis na plataforma BI-CSP (https://bicsp.min-saude.pt/pt/biufs/Paginas/default.aspx). Quando não foi possível proceder à identificação inequívoca dos autores dos artigos (e.g., por risco de homonímia entre médicos de MGF ou autores não médicos), estes foram excluídos do estudo.

Quando não foi possível garantir que o destinatário de um patrocínio listado na plataforma do Infarmed fosse o autor do artigo (e.g., por risco de homonímia entre médicos de diferentes especialidades) só foram considerados os pagamentos relacionados com eventos formativos de medicina geral e familiar (e.g., Beltrano António Costa é MGF e Beltrano José Antunes Costa é oftalmologista; na plataforma constam dois pagamentos para Beltrano Costa, sendo que um é para o Encontro Nacional de MGF e outro é para o XI Curso de Cirurgia de Glaucoma; só foi contabilizado o primeiro pagamento).

Após a recolha de dados, os nomes dos autores foram anonimizados através de algoritmo ad hoc.

A base de dados ficará guardada no computador do investigador e destina-se exclusivamente à utilização nesta investigação.

Na análise dos dados foi utilizada a estatística descritiva com contagem de frequências.

Considerações éticas

O investigador revê-se no posicionamento do Tri-Council Policy Statement, na sua publicação Ethical conduct for research involving humans (TCPS) - National Advisory Board on Research Ethics,10 que considera que a utilização secundária de dados recolhidos que já são do domínio público (como os que são publicados em revistas) está isenta de reavaliação ética. O investigador encontra-se comprometido com os princípios éticos da investigação, beneficiência, justiça e equidade, não maleficiência e integridade, assumindo a responsabilidade total pela presente publicação.

Por este motivo, o investigador solicitou parecer à Comissão de Ética para a Saúde da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, com emissão de parecer favorável em 3 de novembro de 2020, sem necessidade de reavaliação ética.

Resultados

No período em estudo foram publicados 67 artigos: 20 relatos de caso, 16 revisões, 13 artigos de investigação original, sete editoriais, três estudos originais, dois artigos breves, dois artigos de formação, um artigo de opinião, uma carta ao editor, uma carta do diretor e um artigo de agradecimento aos revisores (Figura 1). Foram excluídos 11 artigos pelos seguintes motivos: 10 por ausência de publicação da data de submissão do artigo (onde se incluíram as tipologias Editorial, Carta ao Editor e Carta ao Diretor, artigo de agradecimento aos revisores) e um artigo escrito só por autores com afiliação em entidade estrangeira (investigação original).

Figura 1 Análise dos artigos publicados e seus autores. 

Foram incluídos para análise 56 artigos, sendo que em nenhum caso foi referida a existência de CdI financeiros. Quarenta e oito artigos (85,7%) continham pelo menos um autor com pagamentos recebidos listados na plataforma do Infarmed e não divulgados na publicação.

Identificaram-se 207 autores, dos quais dez foram excluídos da análise por não serem médicos e um por não ser possível garantir a identificação inequívoca do autor.

Dos 196 autores analisados, 112 (57,1%) tinham pagamentos não divulgados.

Em 49 casos houve dúvida acerca da correta correlação entre pagamento na plataforma e o autor do estudo, pelo que o valor não foi incluído na análise.

Os pagamentos não divulgados e analisados foram 355, o que corresponde a um valor total de 127.025,37 €.

Três autores apresentaram pagamentos não divulgados superiores a 10.000,00 €, dois autores valores entre 5.000,00 € e 9.999,99 €, 24 autores valores entre 1.000,00 € e 4.999,99 €, 74 autores valores entre 100,00 € e 999,99 € e 10 valores inferiores a 99,99 €.

A maioria dos pagamentos estavam relacionados com patrocínios para participação em eventos científicos (Tabela 1), distribuindo-se os restantes por inscrições em cursos/formação médica contínua, eventos promocionais de empresas da indústria do medicamento, reuniões de trabalho ou pagamento de honorários.

Tabela 1 Resultado análise tipologia de pagamentos dos autores (número e valor em euro) 

Discussão

O presente trabalho revela uma discrepância entre os CdI financeiros declarados pelos autores e os pagamentos presentes na Plataforma de Comunicações - Transparência e Publicidade. Nenhum autor declarou os pagamentos recebidos como CdI financeiros, possivelmente por não considerar relevante a relação entre o patrocínio recebido e o objeto do próprio estudo.

Estes resultados, juntamente com os dados publicados por Fonseca, 9 apontam para uma divulgação incompleta por parte dos autores.

As normas de divulgação da RPMGF11 convidam os autores a declarar a existência de CdI financeiros, assinalando no momento da submissão se receberam algum “[…] incentivo de uma organização que pode de alguma forma ganhar ou perder com os resultados ou conclusões do manuscrito”. Contudo, este requisito é pouco específico, pelo que deveriam ser utilizadas as recomendações da ICMJE, as quais referem que deve ser declarado qualquer pagamento por parte de operadores da economia do medicamento (“This section asks about your financial relationships with entities in the bio-medical arena that could be perceived to influence, or that give the appearance of potentially influencing, what you wrote in the submitted work. You should disclose interactions with ANY entity that could be considered broadly relevant to the work. […] For grants you have received for work outside the submitted work, you should disclose support ONLY from entities that could be perceived to be affected financially by the published work, such as drug companies, or foundations supported by entities that could be perceived to have a financial stake in the outcome”).3

Se, por um lado, é unânime considerar o pagamento de honorários por parte de empresas farmacêuticas um CdI financeiro, o mesmo não acontece com os financiamentos para participação em atividades promocionais ou eventos de educação médica contínua. Embora a presença destes financiamentos não signifique necessariamente que o autor tenha sido indevidamente influenciado é importante referir que a dúvida por parte do leitor acerca da existência de CdI é tão relevante quanto a existência do conflito em si. 8

Por estes motivos, a omissão de CdI financeiros deve ser considerada má conduta8 e, embora “a existência de conflitos de interesse e/ou financiamento externo não seja critério de aceitação ou rejeição de manuscritos”, 11 a omissão da sua divulgação deveria ser considerada entre os critérios de exclusão. O British Medical Journal refere, por exemplo, que “each author’s declaration is carefully assessed by the handling editor, and may be discussed at a regular editors’ meeting, to ensure our decisions are consistently and fairly applied by the editorial team”12 e, nesse sentido, a plataforma do Infarmed pode ser considerada um instrumento muito útil ao alcance dos editores.

Em última análise, cabe aos editores e aos leitores avaliar a pertinência de eventuais CdI com o foco da informação transmitida e esta avaliação só é possível na presença de uma divulgação de CdI completa e transparente. 8 Por sua vez, a divulgação completa por parte do autor demonstra um compromisso com a transparência e ajuda a manter a confiança no processo científico. 8

Importa ainda salientar que, embora a divulgação de CdI financeiros seja uma parte necessária do processo, nunca será suficiente para garantir a salvaguarda da integridade dos profissionais nem a confiança do público no processo científico. 1 Pelo contrário, a simples divulgação na ausência de medidas para limitar conflitos futuros pode até deteriorar a confiança por parte da opinião pública. 1

Contudo, é importante que a divulgação completa e transparente seja incentivada e alargada a todos os eventos de divulgação científica, porque permite recolher a informação necessária para avaliar e gerir eventuais CdI por parte das instituições envolvidas, sejam científicas ou governamentais. Ao mesmo tempo, cabe às instituições governamentais requerer que todos os operadores da economia do medicamento divulguem com as entidades reguladoras os pagamentos realizados a sociedades científicas, associações de doentes e pessoas singulares, como acontece em Portugal.

Os resultados deste trabalho estão de acordo com os dados publicado por Fonseca no que diz respeito aos motivos de pagamento de patrocínios, ou seja, principalmente para fomentar a participação em congressos científicos e eventos de formação médica contínua. 9 Importa relembrar que o principal objetivo da formação médica a qualquer nível é capacitar para um pensamento crítico que permita avaliar a evidência científica e integrá-la no raciocínio clínico. Embora nalguns contextos as interações entre formandos e patrocinadores possam trazer benefícios, duma forma geral os riscos ultrapassam os benefícios. 1 Já em 2005 Granja alertava para os riscos de contar com o apoio da indústria farmacêutica na formação médica, sobretudo de internos da especialidade. 13

Embora não existam dados nacionais publicados a avaliar estas interações, é provável que o impacto seja negativo e não difira muito do que já foi amplamente publicado no estrangeiro. 14-18 Se assim for, poder-se-á assumir que o interesse das entidades que patrocinam a formação não coincide com o interesse primário dos médicos, ou seja, fornecer cuidados justos e de qualidade. 1,19 Pelo contrário, dever-se-á assumir que os objetivos duma revista científica da área da saúde estejam alinhados com os interesses dos seus leitores, os quais por sua vez depositam a sua própria confiança na legitimidade e isenção da informação veiculada pela revista. 12,20

Assim sendo, é cada vez mais importante que todos os intervenientes no processo de divulgação, sejam eles autores, revisores ou editores, colaborem para uma produção e divulgação científica de confiança.

A principal limitação deste trabalho prende-se com a necessidade de restringir a análise a CdI financeiros, por serem os únicos públicos e quantificáveis. Ao mesmo tempo, por falta de informação adicional na plataforma do Infarmed, não foi possível caracterizar melhor os patrocínios e apoios, por exemplo, relativamente às temáticas abordadas nas reuniões de trabalho ou qual o motivo de pagamento de honorários.

Uma outra limitação corresponde à possível subavaliação da presença de CdI financeiros, pois excluíram-se os autores não identificáveis de forma inequívoca e considerou-se o período de três anos anterior à submissão para a divulgação de conflitos (como recomendado pelo ICMJE) e não os cinco anos sugeridos nas normas de publicação da RPMGF.

Existem também outras importantes limitações associadas à própria plataforma do Infarmed. A identificação dos médicos não deveria ser feita de forma nominal, dando azo a erros de identificação, e poderia ser complementada com, por exemplo, a utilização do número da ordem profissional ou outro número de identificação inequívoca. Mais, a atualização do valor mínimo dos pagamentos declarados na plataforma condicionou a omissão de CdI de menor valor (e.g., jantares com apresentação de novos fármacos), mas não necessariamente de menor impacto. 1

Conclusão

O presente estudo sugere que os autores tendem a omitir a existência de CdI financeiros no processo de divulgação científica. Este fenómeno alerta para a necessidade de adaptar as atuais políticas de transparência a fim de evitar a perda de confiança da opinião pública no processo de divulgação científica.

Agradecimentos

O investigador gostaria de agradecer ao Dr. Nuno Fonseca pela ajuda na realização deste trabalho, à Dra. Sara João Cardoso pela colaboração na realização do estudo piloto e pela discussão dos resultados e à Dra. Marta Ruivo pela revisão da versão final do artigo.

Conflito de interesses

O autor declara não possuir quaisquer conflitos de interesse.

Referências bibliográficas

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Recebido: 18 de Março de 2022; Aceito: 15 de Março de 2023

Endereço para correspondência Fabrizio Cossutta E-mail: fcossutta@ymail.com

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