Caro Editor da Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (RPMGF),
Foi com grande entusiasmo que tomámos conhecimento do artigo Avaliação dos hábitos alimentares nos cuidados de saúde primários: uma ferramenta de apoio à prática clínica,1 publicado no volume 38 da RPMGF. Gostaríamos de salientar a pertinência do tema e parabenizar os autores pela proposta de criação de uma ferramenta que facilite a avaliação dos hábitos alimentares dos utentes, bem como o acompanhamento da sua evolução com o histórico de registos.
Vimos partilhar algumas reflexões acerca da ferramenta proposta, que poderão ser úteis para o seu desenvolvimento.
A evidência, já amplamente explanada no artigo e incluída no Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável (PNPAS), 2 mostra que os modelos de intervenção breve têm eficácia, 3 pelo que em contexto de consulta não urgente todos os utentes beneficiam da sua aplicação, em particular aqueles com fatores de risco metabólicos ou doença crónica. A aplicação desta intervenção de forma padronizada permite alcançar uma maior eficácia e garantir que os aspetos essenciais são abordados. Assim, a criação de uma ferramenta integrada no programa SClínico® revela-se determinante para promover a realização de intervenção breve em nutrição e auxiliar os profissionais na sua execução.
De acordo com os princípios de ação do PNPAS foi já desenvolvido um modelo de aconselhamento breve, em linha com a abordagem realizada noutros programas, como a cessação tabágica e a promoção de atividade física. Estes programas têm disponíveis separadores próprios, que auxiliam e guiam o clínico, seja em modelo de intervenção breve seja em consulta dedicada ao tema.
São características definidoras do aconselhamento breve este ser uma interação de encorajamento, com o fornecimento de recomendações, com cerca de dez minutos de duração e que deve seguir o modelo de intervenção motivacional, isto é, adaptado ao grau de motivação do doente e ajustado às suas limitações e preferências. 2
A intervenção proposta pelo PNPAS baseia-se no modelo dos 5As, começando com a Abordagem do tema da alimentação saudável e Avaliação, de forma breve, dos hábitos alimentares, através de um questionário de onze itens, bem como da motivação para a mudança. A perceção do utente em relação à adequação dos seus hábitos e a motivação para a mudança são aspetos determinantes para o sucesso e manutenção desta alteração de comportamentos.
Perante um utente não motivado é imperativo que seja dado foco à relevância do tema, procurando elicitar no discurso da pessoa os benefícios que poderiam decorrer da adoção de uma alimentação mais saudável e a exploração dos riscos que os atuais hábitos apresentam para a sua saúde. Para além da exploração da ambivalência, esta é uma fase em que podem também ser explorados obstáculos para a mudança. 4 Esta abordagem, baseada nos princípios da entrevista motivacional, segue o modelo dos 5 Rs, usado para aumentar a motivação do utente para a alteração de comportamentos. 2
Somente perante um utente motivado, a intervenção deve prosseguir com o Aconselhamento, onde a aplicação do instrumento proposto pode ser uma ferramenta útil, compreendendo o cálculo das necessidades energéticas diárias e do aporte calórico diário estimado com a utilização do diário de 24 horas (D24h). Esta forma de aconselhamento detalhado integra-se numa abordagem intensiva, já fora do âmbito da intervenção breve. Note-se que a realização do D24h, tem um tempo de aplicação estimado de cerca de 20 minutos. 5 A este passo deve seguir-se a análise da informação recolhida e do balanço energético diário, seguindo-se a fase de Apoio, com o fornecimento de recomendações, ajustadas às necessidades identificadas e considerando as preferências e rotinas do utente. Assim, torna-se também necessário refletirmos sobre a necessidade de capacitação dos profissionais de saúde para a prestação de aconselhamento detalhado em nutrição, sendo a formação pré-graduada, em muitos casos, insuficiente. Idealmente, quando possível a avaliação por um nutricionista nos cuidados de saúde primários, o aconselhamento poderia ser orientado por este, com registo neste programa.
Estas recomendações devem seguir o estabelecimento de objetivos SMART (específicos, mensuráveis, alcançáveis, relevantes e com um período temporal definido), devendo ser agendada consulta subsequente para Acompanhar este processo de mudança. Para que todos estes passos sejam concretizados calcula-se um tempo largamente superior a dez minutos, pelo que a sua realização como modelo de intervenção breve, oportunista em consulta, não parece ser viável.
Ainda relativamente à ferramenta proposta, a sua aplicação com base no D24h tem várias limitações, reconhecidas pelos autores. Muitos utentes terão dificuldade em realizar o reporte fidedigno de todas as refeições, nomeadamente no que diz respeito às porções ingeridas. Considerando a relevância deste aspeto, 6 seria de grande importância a disponibilização de modelos reais ou fotográficos de alimentos, associados a pesos de referência, procurando minimizar este viés. Para o cálculo do aporte calórico sugerimos também a separação da quantificação do alimento selecionado, o que permitirá aumentar a fiabilidade e agilizar o registo. Uma outra limitação do D24h é o facto de se referir à ingesta do dia anterior, aspeto colmatado pelo questionário que integra o PNPAS, que tem como referência a última semana.
Em suma, o sucesso da mudança de comportamentos depende, em grande parte, da adequação da abordagem realizada ao nível da predisposição para a mudança do indivíduo. A ferramenta e a abordagem sugeridas não deverão, por isso, ser de aplicação universal, mas dirigida apenas aos utentes já motivados, quando existir tempo para que seja aplicada integralmente e sempre que possam ser realizadas as recomendações adequadas, que decorrem da sua aplicação.
Em conclusão, consideramos que seria útil a estruturação do separador dirigido à avaliação dos hábitos alimentares de forma semelhante a outros já existentes, incluindo uma parte para intervenção breve e outra para consulta dedicada ao tema. A intervenção breve deve incluir o questionário de avaliação proposto pelo PNPAS, o registo do grau de motivação do doente para a mudança, bem como as principais barreiras identificadas para a alteração de hábitos. Estando o utente preparado para a mudança, pode então prosseguir-se com a consulta dedicada ao tema, com a ferramenta proposta, sendo usada apenas por profissionais capacitados e dirigida a utentes selecionados.