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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

Print version ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.39 no.2 Lisboa Apr. 2023  Epub Apr 30, 2023

https://doi.org/10.32385/rpmgf.v39i2.13796 

Legado de medicina geral e familiar

As pessoas vivem enquanto se fala delas: o legado de José Guilherme Jordão

1. Especialista de Medicina Geral e Familiar. Mestrado em Pedagogia das Ciências da Saúde, pela FPCE/UNL. Doutoramento em Medicina Geral e Familiar, pela NMS/UNL, Nova Medical School, Lisboa, Portugal.


São muitos os possíveis modos de pensar e de falar sobre uma pessoa ligada à história da Medicina Geral e Familiar, sobre o seu trajeto de vida, o que se herdou, os processos em que se envolveu, as marcas e os registos do que nos deixou.

José Guilherme Lopes Pereira Jordão (JGJ) nasceu em Leiria a 8 de janeiro de 1951 e faleceu a 23 de agosto de 2003. O seu percurso encontra-se amplamente descrito num editorial escrito na RPMGF pelo Manuel Valente Alves,1 no Dicionário dos Médicos Portugueses editado pela unidade de História da Medicina, 2 num editorial da Revista da ADSO, 3 no livro Da memória4 que celebra os 20 anos da medicina geral e familiar e na sua tese de doutoramento, A medicina geral e familiar: caracterização da prática e sua influência no ensino pré-graduado,5 tantas vezes alvo de citações.

O seu percurso, as ações que praticou, os eventos em que participou estão ligados às suas qualidades humanas, ao seu eu, à doença que sofreu, aos valores, às ideias e ideais (seus e do seu tempo), ao estado psicológico reinante nos médicos da época e às condições sociopolíticas de então.

A pessoa no seu contexto de trabalho

O José Guilherme não se limitou a contemplar a realidade. Foi um construtor ativo da realidade que viveu, pretendendo modificá-la. Este é, aos meus olhos, um dos seus legados. Alguns traços da personalidade do JGJ fazem dele referência de um património de que todos nos podemos e devemos orgulhar. Destes traços, qualidades de um caráter, emergem muitos dos requisitos preliminares às qualidades técnico-científicas de um bom médico e cidadão.

Tendo vaidade nas suas pequenas e grandes vitórias não deixou nunca de as viver com humildade. A elegância, o trato fácil, a honestidade e a sua humanidade fizeram dele um interlocutor de excelência. Respeitou os cânones formais de todas as instituições por que passou, a sua estrutura e os seus valores, sem nunca deixar de lutar pela melhoria do seu desempenho. Nestas organizações, para além de identificar problemas e encontrar soluções, sempre o preocupou saber como iriam “essas soluções” ser aplicadas.

As suas intervenções baseadas num sólido conjunto de convicções tinham por base uma firme defesa dos princípios e valores fundamentais. Sempre soube que é nos valores fundamentais que começa a visão e que se deve construir a inovação.

A autoridade emprestada, em qualquer uma das funções exercidas, para além de competência pessoal, foi um modelo de exercício de poder. Para ele nunca houve fraturas insanáveis, só desencontros parciais e corrigíveis. Fugia, no entanto, das falsificações, de vida curta e lamentável, dos dogmatismos e dos absolutismos.

Respeitou a liberdade e a diferença e não se demitiu da responsabilidade de decidir mesmo quando na incerteza. Ao longo dos anos, vários foram os momentos em que parou para olhar para si e se pensar.

O ator realizador

O trajeto do Jordão, nome pelo qual entre os colegas era tratado, encontra-se intimamente ligado ao ressurgimento da Clínica Geral como especialidade médica, que passou a partir de 1995 a ser designada por Medicina Geral e Familiar. O perfil da especialidade, tendo em vista a sua institucionalização, o seu progressivo reforço no setor dos Cuidados de Saúde Primários, está intimamente ligada à sua trajetória de vida na formação pós-graduada, na coordenação do Internato Médico, no Instituto de Clínica Geral da Zona Sul e, mais tarde, na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa.

É na década de 80 e 90 que se constrói o edifício legislativo da identidade da Medicina Geral e Familiar e os alicerces da carreira. São tempos ricos de entusiasmo, colaboração e de empreendedorismo.

Na equipa de que o Dr. Paulo Mendo, Secretário da Saúde, se rodeou para criar a carreira de Clínica Geral, o JGJ, ainda interno do primeiro programa de formação específica, do qual foi o melhor classificado, colabora na definição dos critérios de passagem a essa carreira dos médicos dos Serviços Médico-Sociais, no Decreto-Lei fundador n.o 310/82 das carreiras médicas, mais tarde reformulado pelo Decreto-Lei n.o 73/90, na criação em 1981 e 1982 do Internato de Especialidade de Generalista e dos Institutos de Clínica Geral.

Como coordenador do Internato de Medicina Geral e Familiar, funções que exerceu durante três anos (1986-1989), é responsável pela primeira Caderneta de Internato com objetivos específicos de formação. Foi o primeiro programa de internato em Portugal com objetivos definidos.

A partir de 1989 até 1999, como diretor do Instituto de Clínica Geral da Zona Sul, 6 que engloba, Alentejo, Algarve, Açores e Madeira, com orgânica e funcionamento determinados pela Portaria n.o 505/86, desenvolve a formação profissional em exercício dos médicos da carreira e a realização de ações de investigação conexas com a referida formação. Neste contexto saliento as seguintes realizações:

  • O primeiro Registo Eletrónico baseado na prática da MGF, de suporte à caracterização da prática dos médicos envolvidos nesta formação. Este registo acompanhou os passos dados na implementação de um ficheiro clínico com registo médico orientado por problemas e pela continuidade de cuidados, preventivos e curativos de base familiar. Os registos clínicos dos médicos de família eram ainda feitos de uma forma muito desorganizada, seguindo um modelo de notas pouco precisas e casuísticas, herdados dos antigos Serviços Médico-Sociais, não existindo qualquer caracterização desta prática médica.

  • Os primeiros cursos de formação de formadores, dirigidos aos Orientadores do Exercício Médico Orientado, uma das componentes do programa de Formação Específica em Exercício (FEE), regulamentada pela Portaria n.o 712/86. Em parceria com o Centro de Formação e Aperfeiçoamento Profissional, do Departamento de Recursos Humanos do Ministério da Saúde, desenharam-se cursos de formação de formadores de 230 horas de duração, guiados pelo inovador método autobiográfico introduzido pelo Prof. António da Nóvoa7.

  • Os primeiros cursos de pós-graduação em pedagogia das Ciências da Saúde, em colaboração com o Prof. Jean François D’Yvernois (OMS), de epidemiologia clínica com o Prof. Milos Jenicek, em aprendizagem em contexto de trabalho com o Dr. Roger Neighbour e Prof. Pereira Gray, primeiro professor catedrático de Clínica Geral no Reino Unido.

  • A participação organizada e coordenada das escolas médicas na formação profissional médica pós-graduada. Nos programas de FEE dirigidos, só na Zona Sul, a cerca de 2.500 médicos de clínica geral, com uma componente de ações de formação em grupo e presenciais, são chamados a colaborar dezenas de professores universitários, que conferem prestígio a esta formação “acelerada”, coordenados por especialistas de Medicina Geral e Familiar, já com o seu internato médico concluído. São desenhadas fichas de curso que orientam uma transferência de conhecimentos e aptidões adequadas à prática, cujo modelo é ainda hoje replicado. A participação de dezenas de professores decanos das Escolas Médicas nesta formação deveu-se não só ao espírito colaborativo que na época se vivia, reflexo do estado psicológico reinante, como aos sete S com que mais tarde JGJ foi definido: Sereno, Seguro, Sagaz, Secreto, Solícito, Solidário e Sério.

  • A edição dos primeiros livros relacionados com a FEE em curso: Registos Clínicos em Medicina Geral e Familiar, de Rui Caeiro; Família: saúde e doença, de Daniel Sampaio e Teresa Resina; Saúde mental na prática do clínico geral, de J. M. Caldas de Almeida, Machado Nunes e Idalmiro Carraça.

  • As primeiras ações de investigação conexas com a formação, tendo sido criado um departamento de apoio à investigação que contou com a preciosa ajuda do Dr. Fernando Moura Pires e o primeiro grande trabalho de investigação colaborativo europeu: The European study of referrals from primary to secondary care.8-10

Com a extinção dos Institutos de Clínica Geral em 1999, um erro terrível de estratégia política, cometido por querelas internas da Medicina Geral e Familiar, o Prof. Doutor José Guilherme Jordão, primeiro Doutorado em Clínica Geral pela Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, dedica-se à prática clínica no Centro de Saúde de Sete Rios e à docência na Faculdade de Medicina de Lisboa, 11 onde desde 1994 era membro do Departamento de Educação Médica e, desde 1996, Professor Auxiliar Convidado e Regente de Clínica Geral e Medicina Comunitária. Em 1997 concluiu o Mestrado em Educação Médica organizado pela FML, recebendo em simultâneo o Diploma em Medical Education, pelo College of Medicine da University. Em 1998, com a Prof. Doutora Madalena Patrício, leciona diversos cursos de formação de formadores em Saúde Reprodutiva para os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa, em África (Moçambique e São Tomé), tendo com ela editado um Manual de boas práticas pedagógicas em saúde.12

No contexto universitário trabalhou na reestruturação do ensino médico, tendo sido membro da Comissão Internacional de Revisão do Ensino Médico, defendendo o sexto ano pré-graduado profissionalizante, contributo indispensável para a revisão do ensino médico em Portugal, que conduziu à implementação da disciplina de Clínica Geral em todas as escolas médicas públicas.

Ao longo da sua vida não descurou a sua intervenção cívica associativa, tendo sido dos primeiros associados e mesmo fundador da APMCG e da ADSO. Fez parte da direção do Colégio de Clínica Geral entre 1990 e 1992, foi membro da direção da Sociedade de Ciências Médicas de Lisboa e da Sociedade Portuguesa de Educação Médica entre 1997 e 2003 e membro da WONCA e do EURACT até à sua morte.

Epílogo

A memória, onde cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro. O conceito de memória é crucial. A memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades. Não sei se este memorial não é bem diferente daquilo que se percebe. O que sublinho é que o JGF mostra bem que a competência clínica e docente não podem ser definidas apenas pelo conhecimento de determinados conteúdos ou pelos certificados adquiridos na participação em eventos ou cursos de formação, mas por uma conduta ética de responsabilidade, de cordialidade e respeito. O José Guilherme Jordão deixou-nos na posse de um bom modelo de aprendizagem. E a formação, em educação, precisa e vive à sua custa.

Referências bibliográficas

1. Valente-Alves M. José Guilherme Jordão: uma vida e uma obra para o futuro. Rev Port Med Geral Fam. 2015;31(2):90-2. [ Links ]

2. Ramos AS, Ribeiro A, Ribeiro C, Rafael MA. Dicionário dos médicos Portugueses [homepage]. Lisboa: Unidade Curricular de História da Medicina, Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa; s.d. Available from: https://medicosportugueses.blogs.sapo.pt/Links ]

3. Simões JA. In memoriam: Prof. Doutor José Guilherme Jordão. Rev ADSO. 2013;1(1):10. [ Links ]

4. Valente-Alves M, Ramos V, editors. Medicina geral e familiar 20 anos: da memória. Lisboa: MVA Invent.; 2003. [ Links ]

5. Jordão JG. A medicina geral e familiar: caracterização da prática e sua influência no ensino pré-graduado;. Lisboa: Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa; 1995. Available from: https://repositorio.ul.pt/handle/10451/2031 [ Links ]

6. Jordão JG. Os Institutos de Clínica Geral. In: Valente-Alves M, Ramos V, editors. Medicina geral e familiar: da vontade. Lisboa: MVA Invent.; 2003. p. 62-6. ISBN 9729888620 [ Links ]

7. Nóvoa A, Finger M. O método autobiográfico e a formação. Lisboa: Centro de Formação e Aperfeiçoamento Profissional do DRH; 1988. [ Links ]

8. Sá AB, Jordão JG. Estudo Europeu sobre referenciação em cuidados primários: I. Dados de referenciação. Rev Port Clin Geral. 1993;10(11-12):238-44. [ Links ]

9. Sá AB, Jordão JG. Estudo Europeu sobre referenciação em cuidados primários: II. Dados de seguimento e informação de retorno. Rev Port Clin Geral. 1994;11(1):25-8. [ Links ]

10. Sá AB, Jordão JG. Estudo Europeu sobre referenciação em cuidados primários: III. Comparações internacionais;. Rev Port Clin Geral. 1994;11(2):115-24. [ Links ]

11. Jordão JG. A medicina geral e familiar académica e o desenvolvimento universitário da disciplina em Portugal. In: Valente-Alves M, Ramos V, editors. Medicina geral e familiar: da vontade. Lisboa: MVA Invent.; 2003. p. 69-77. ISBN 9729888620 [ Links ]

12. Jordão JG, Patrício MF. Manual de boas práticas pedagógicas em saúde. Lisboa: Sociedade Portuguesa de Educação Médica; 2004. [ Links ]

Endereço para correspondência Isabel Santos E-mail: misabelpsantos@gmail.com

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