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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.39 no.3 Lisboa jun. 2023  Epub 30-Jun-2023

https://doi.org/10.32385/rpmgf.v39i3.13827 

Carta ao editor

Divulgação de conflitos de interesse na revista portuguesa de medicina geral e familiar em 2019

Disclosure of conflicts of interest in the portuguese journal of family medicine during 2019

1. Clínica Universitária de Medicina Geral e Familiar, Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Coimbra, Portugal.

2. USF Topázio, ACeS Baixo Mondego. Coimbra, Portugal.


Caro Diretor,

Li com atenção o artigo Divulgação de conflitos de interesse na Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar em 2019, da autoria de Fabrizio Cossutta.1 E pelo teor de assuntos que levanta decidi escrever sobre ele num modo mais interrogativo que afirmativo e sem qualquer intuito de provocação ao autor. Move-me apenas a discussão crítica do assunto.

A tese do autor é a de que “… existe a tendência por parte dos autores em não divulgar potenciais conflitos de interesse financeiros … a fim de evitar a perca de confiança da opinião pública no processo de divulgação cientifica”, expressa na sua conclusão. Sou daqueles que apresenta nas suas comunicações, que não apresentações de trabalhos de investigação, a lista de conflito de interesses para o trabalho que vai revelar.

Devo referir ainda que, apesar de ser um dos possíveis visados por este trabalho, após pesquisa efetuada ao site do Infarmed, não sinto qualquer constrangimento pelo mesmo, até por ser dos autores portugueses de MGF com mais artigos publicados em Portugal e no estrangeiro.

O autor define conflito de interesses como “… quando um autor, revisor ou editor apresenta relações pessoais ou financeiras que podem interferir com as próprias competências, seja de forma consciente ou inconsciente”.1,4,7

Quando um autor recebeu um patrocínio financeiro para uma reunião sobre uma doença e.g., DPOC e submete uma publicação sobre epidemiologia da dor articular do membro inferior, a declaração de conflito de interesses é óbvia e necessária? Deve haver declaração de conflitos só porque sim? E se por acaso um médico foi convidado para um congresso da APMGF é tal um conflito de interesses?

As interpretações extensivas de qualquer documento podem sempre ser evitadas para que não haja catástrofe.

Assim sendo:

Como avaliar um conflito de interesses financeiro? Será o recebimento de uma bolsa FCT um tal conflito? A ausência de tal declaração será sinónimo de má prática que leva a má publicação?

Que vieses insanáveis daqui decorrem e que fatores mitigantes devem ser considerados?

Qual o lapso temporal, anual ou outro, de todas as importâncias já recebidas e a serem declaradas?

Pagamentos por conferências sem patrocínio da indústria, ou seja, pagas pelos organizadores do evento, podem ou devem ser consideradas?

A USPSTF comissiona e paga revisões sistemáticas com meta-análise para produzir linhas de orientação. 2 Será que pela dúvida sobre a existência de conflitos financeiros de algum autor, até mesmo dos artigos extraídos para a revisão, a publicação tem menos valor? Um autor que trabalha na indústria farmacêutica estará inibido de publicar por o seu trabalho ser pago com o seu salário que advém do seu empregrador/patrocinador?

O enunciado acima não levará a que a moderna Medicina Baseada na Evidência desapareça, pois inibe autores de publicar pelo simples facto dos ensaios clínicos e seus participantes investigadores serem na sua maioria totalidade?! financiados pela indústria?

Quase transparece pelo texto que quem recebe, ou recebeu, tem labéu de pessoa conspurcada e, como tal, a ser inibida de publicar.

E se por acaso foi alguém convidado para assistir a congresso ou conferência e, mesmo sem o saber, a indústria fez tal registo no Infarmed? É tal um conflito de interesses que o artigo posiciona como insanável? A alternativa é, pois se o médico o pressente, paga ele toda a sua formação do seu bolso, o que sabemos ser incomportável. E o empregador, Ministério da Saúde, não a financia. O patrocínio pago para um congresso, mesmo que fosse feito pelo serviço para o qual o médico/autor trabalha, é um conflito de interesses financeiros?

O artigo 159.º da circular informativa n.º 012/CD/8.1.6, do Infarmed, refere-se a ações sobre medicamentos. 3 É expandível a toda a restante matéria como o artigo parece querer fazer?

Da leitura de tal circular informativa depreende-se que artigos, comunicações ou outras publicações que não sejam sobre medicamentos, mas apenas sobre técnicas médicas, estão fora do leque deste artigo.

A proteção de dados está regulada em Portugal pela Lei n.º 58/2019, de 8 de agosto; as entidades, como neste caso a RPMGF, devendo ter todo o cuidado na forma como colige e publica informação.4

A RPMGF exige, e sem tal a submissão não prossegue, o preenchimento do Anexo I, no qual existe capítulo com declaração de interesses que está completa.

A citação ICMJE desqualifica o presente artigo ao dizer “... For example, if your article is about testing an epidermal growth factor receptor EGFR antagonist in lung cancer, you should report all associations with entities pursuing diagnostic or therapeutic strategies in cancer in general, not just in the area of EGFR or lung cancer”.5 Ou seja, se recebeu dinheiro sobre cancro e vai publicar sobre outra área, como diabetes ou hipertensão ou medicina centrada na pessoa, tal está fora do âmbito do que deve ser declarado. O BMJ declara dar poder ao corpo editorial para, mesmo com tal declaração, aceitar ou não aceitar artigos. 6

Guidelines feitas por autores que também tenham trabalhado em artigos, pagos por interesses comerciais, como devem ser lidas? E as normas da Direção-Geral da Saúde?

Trabalhos que autores pretendam publicar em revistas de relevante fator de impacto e de montantes financeiros elevados para aceitação e que sejam patrocinadas por entidades estranhas à saúde, ou mesmo atuando na saúde, que título passam a ter, mesmo que seja a FCT a financiar?

Como então ler os Tratados de Medicina e Cirurgia, em que os coordenadores e autores têm conflitos de interesses?

Ou, à escala de Portugal, será que o livro Medicina Geral e Familiar, coordenado por Paulo Santos, Alberto Pinto Hespanhol e eu próprio, com muitos autores, provavelmente alguns com recebimentos para frequência de congressos, por exemplo pela APMGF, fica desacreditado? 7

Ou seja, o conflito de interesses desqualifica o autor e por tal via o seu trabalho? Tal parece transparecer do artigo, provavelmente de uma forma abusiva na forma escrita.

A “... necessidade de adaptar as atuais politicas de transparência a fim de evitar a perda de confiança da opinião pública no processo de divulgação cientifica“1,4,7 pode significar que, quando o extremismo aparece, é porque há negação do processo. E por tal a ciência, nomeadamente a médica, não progride ou porque negamos tudo o que fazemos, pois houve conflitos de interesses.

E assim sendo como ficamos de formação médica?

Li atentamente o artigo, faço dele um farol. Mas como tudo o que é extremamente estrito e fundamentalista pode levar à criação de “privilegiados” e à procura de meios alternativos para transpor os obstáculos, que as leis escritas querem criar para obviar a problemas morais e consuetudinários.

O artigo tem pertinência ao obrigar a direção da RPMGF a manter todo o cuidado na aceitação de artigos e, sobretudo, ao não potenciar os artigos panfletários ou propagandísticos.

Importa então perceber se mais algo pode e deve a RPMGF fazer dentro do quadro legal português para cumprir com todas as suas obrigações éticas e legais. E interessa também perceber qual a leitura e conclusões que o autor tira do cruzamento dos teores do seu artigo e desta carta ao Editor.

Resposta do Autor

Em primeiro lugar, gostaria de agradecer ao colega por ter enviado esta carta, pois considero que este tema não tem sido suficientemente debatido, e também porque me permite esclarecer uns pontos que considero essenciais para o debate.

De acordo com a referência n.º 2, “Everyone has conflicts of interests of some sort. Having a competing interest does not, in itself, imply wrongdoing. However, it constitutes a problem when competing interests could unduly influence or be reasonably seen to do so one’s responsibilities in the publication process. If COI is not managed effectively, it can cause authors, reviewers, and editors to make decisions that, consciously or unconsciously, tend to serve their competing interests at the expense of their responsibilities in the publication process, thereby distorting the scientific enterprise. … Managing COI depends on disclosure because it is not possible to routinely monitor or investigate whether competing interests are present. Disclosure is about the facts that might bear on COI; assertions of integrity are not, in themselves, helpful”.

A existência de conflitos de interesses, inclusive o financiamento por parte de entidades da economia do medicamento ou outras entidades privadas com exposição financeira na indústria farmacêutica, não desqualifica o autor nem o inibe de divulgar, contrariamente à interpretação do meu texto pelo colega. O cerne da questão e a crítica que é levantada no meu artigo não é a existência de conflitos em si, mas a sua ocultação aquando do processo de divulgação científica, seja voluntária ou involuntária, por não ter sido considerada relevante por parte do autor. A declaração dos conflitos de interesse não deve ser uma inquisição moral aos autores, mas um passo para a construção de uma cultura de transparência da qual todos possamos beneficiar, nós clínicos, os nossos utentes e toda a sociedade.

De acordo com as recomendações mais recentes da ICMJE fevereiro 2021, “In the interest of transparency, we ask you to disclose all relationships/activities/interests listed below that are related to the content of your manuscript. ‘Related’ means any relation with for-profit or not-for-profit third parties whose interests may be affected by the content of the manuscript. Disclosure represents a commitment to transparency and does not necessarily indicate a bias. If you are in doubt about whether to list a relationship/activity/interest, it is preferable that you do so”.

Considero importante referir que os interesses de entidades públicas, como faculdades, FCT ou a USPSTF, não podem nem devem ser comparados com os interesses de entidades privadas ou da economia do medicamento. De acordo com as normas da ICMJE, “For grants you have received for work outside the submitted work, you should disclose support ONLY from entities that could be perceived to be affected financially by the published. Public funding sources, such as government agencies, charitable foundations or academic institutions, need not be disclosed”.

De um modo geral, a ausência de financiamento para participar em eventos de formação médica contínua tem sido colmatada recorrendo a patrocínios por parte da indústria farmacêutica. A referência n.º 1 compila evidência sobre os riscos destas interações, seja durante o internato, mas também ao longo da vida profissional. Recentemente várias entidades criaram bolsas para apoiar a publicação e a participação em cursos Fundo de Apoio à Formação Médica, da Ordem dos Médicos ou conferências bolsa da APMGF para participar na WONCA. Ao mesmo tempo, os profissionais que trabalham no SNS deveriam poder utilizar os incentivos institucionais para formação médica contínua, um direito que muitas vezes não saiu do papel exceção são os eventos da USF-AN. Neste contexto, sou de opinião que a solução passa por exigir formação mais relevante, mais abrangente, mais transparente e, sempre que possível, mais económica.

Para terminar, não é de todo minha intenção fazer propaganda nem desvalorizar o trabalho realizado pelos autores e editores desta revista, mas iniciar uma discussão salutar e alargada acerca deste tema. Certamente existirão mais colegas com opinião formada sobre o assunto e será do interesse da RPMGF/APMGF fomentar esta discussão.

Fabrizio Cossutta

USF Almirante, ACeS Lisboa Central. Lisboa, Portugal.

Referência bibliográfica

1. Cossutta F. Divulgação de conflitos de interesse na Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar em 2019. Rev Port Med Geral Fam. 2023;392:142-8. [ Links ]

2. U.S. Preventive Services Task Force. homepage; 2023; cited 2023 May 18. Available from: https://www.uspreventiveservicestaskforce.org/uspstf/Links ]

3. Infarmed. Transparência e publicidade - Artigo 159.º do Estatuto do Medicamento: circular informativa n.º 012/CD/8.1.6, de 17/01/2014. Internet. Lisboa: Infarmed; 2014. Available from: https://www.infarmed.pt/documents/15786/1153452/Transpar%C3%AAncia+e+Publicidade+-+Artigo+159.%C2%BA+do+Estatuto+do+Medicamento/5dea1471-5c49-47cd-97a8-a06ca24871fb?version=1.2Links ]

4. Lei n.º 58/2019, de 8 de agosto 2019. Diário da República. I Série;151. [ Links ]

5. International Committee of Medical Journal Editors. Recommendations for the conduct, reporting, editing, and publication of scholarly work in medical journals [Internet]. ICMJE; 2018 [updated 2023 Jun; cited 2019 Mar 12]. Available from: https://www.icmje.org/recommendations/Links ]

6. Chew M, Brizzell C, Abbasi K, Godlee F. Medical journals and industry ties. BMJ. 2014;349:g7197. [ Links ]

7. Santos P, Hespanhol A, Santiago L. Medicina geral e familiar. Coimbra: Almedina; 2021. ISBN 9789724089768 [ Links ]

Recebido: 22 de Maio de 2023; Aceito: 26 de Junho de 2023

Endereço para correspondência Luiz Santiago E-mail: luizmiguel.santiago@gmail.com

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