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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.39 no.4 Lisboa jul. 2023  Epub 31-Jul-2023

https://doi.org/10.32385/rpmgf.v39i4.13880 

Legado de medicina geral e familiar

O legado de Alexandre Sousa Pinto: da célula à pessoa - a ciência e a clínica

Paulo Santos1  2 
http://orcid.org/0000-0002-2362-5527

Alberto Hespanhol1  3 

1. CINTESIS@RISE, MEDCIDS, Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. Porto, Portugal.

2. Editor-chefe da Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar.Portugal

3. Diretor da Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar.Portugal.


Não escolhemos a forma do nosso destino, mas podemos dar-lhe conteúdo. O que procura aventura encontrá-la-á - à medida da sua coragem. O que procura o sacrifício, será sacrificado - na medida da sua pureza.(Dag Hammarskjold, Markings, 1964)

Na senda da vida há os que seguem o caminho e há os que o constroem, identificando as metas do amanhã e desenvolvendo os processos de as atingir. São muitas vezes mal-entendidos no seu tempo, mas o futuro chamar-lhes-á visionários, e são a verdadeira mola da sociedade. O Professor Alexandre Sousa Pinto é uma destas pessoas, para sempre ligado ao nascimento, implementação e amadurecimento da Medicina Geral e Familiar em Portugal.

Fez o seu percurso académico na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, cidade que o viu nascer, onde se licenciou em 1960 com a classificação de 17 valores e se doutorou em anatomia em 1971, com distinção, com a tese A área auditiva do córtex cerebral. Prestou provas de agregação no grupo da morfologia, em 1979, com classificação de muito bom, sendo nomeado Professor Catedrático de Anatomia.

Em 1984 assume o cargo de presidente do Conselho Diretivo da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, onde estaria até 1987, e cria o primeiro serviço universitário em Portugal dedicado à Clínica Geral. O Departamento de Clínica Geral foi aprovado pelo Professor Pinto Machado, então Secretário de Estado do Ensino Superior, e formalizado pela Portaria n.º 872/84, de 24 de novembro, numa clara inovação em relação ao conservadorismo que caracterizava a organização geral da Universidade Portuguesa, abandonando o conceito dinástico da disciplina e da respetiva regência para o de integração científica, pedagógica e de extensão sobre uma determinada área de conhecimento, capaz de alavancar sinergias e oportunidades de inovação e desenvolvimento. Constituiu uma unidade orgânica permanente de ensino de pós-graduação, de investigação, de prestação de serviços à comunidade e de divulgação cultural no âmbito da medicina, no que diz respeito à clínica geral, com competências específicas no ensino pré-graduado (“sempre que para tal seja solicitado”). Esta responsabilidade no ensino veio a concretizar-se na reforma curricular de 1986 e na criação da disciplina de Medicina Comunitária no 6.º ano médico, de que foi regente desde 1989, e da disciplina de Medicina Preventiva no 2.º ano em 1994.

O Departamento de Clínica Geral foi um apoio científico e pedagógico fundamental na estruturação da especialidade recentemente criada de Clínica Geral, acompanhando e promovendo o seu crescimento e desenvolvimento para a atual Medicina Geral e Familiar moderna, basilar nos processos de saúde das pessoas e do país e ativa na atividade assistencial, nos processos organizacionais e na produção científica.

Em 1989 inicia o ensino pré-graduado de Clínica Geral fora do hospital escolar. Em 1994 inicia o sistema de residência, em que os estudantes são expostos às condições normais de trabalho dos médicos especialistas num centro de saúde. Em 1995 conclui o primeiro doutoramento nesta área em Portugal como orientador. Em 1997 inicia o ensino da Medicina Geral e Familiar em ambiente rural, criando a oportunidade dos futuros médicos aprenderem os desafios do exercício fora dos centros urbanos. Em 1999 inicia o projeto «Tubo de ensaio»,1-2 num protocolo assinado com a ARS Norte, garantindo a prestação de cuidados de saúde primários idênticos aos prestados pelos outros centros de saúde a uma população de até 25.000 utentes na cidade do Porto com autonomia organizativa, funcional, técnica e de gestão, incluindo a financeira, ao mesmo tempo que promovia a inovação na administração e organização desses cuidados3 e o ensino e formação pré e pós-graduada dos profissionais dos cuidados de saúde primários. O Centro de Saúde de S. João foi a face assistencial deste projeto e testou muitos dos conceitos que estiveram na base da reforma dos Cuidados de Saúde Primários de 2006, ainda que a decisão do governo de então tenha deixado cair alguns dos aspetos mais inovadores. 4

Alexandre Sousa Pinto foi o obreiro. Nasce nas ciências básicas onde tem curriculum científico notável com múltiplas publicações e citações, larga intervenção no ensino com presença nos conselhos diretivo, científico e pedagógico da sua Faculdade, intervenção cívica significativa na sua passagem pela Secretaria de Estado da Investigação Científica e sublima-se na Medicina clínica. Consegue perceber a especificidade de uma Clínica Geral onde as primeiras preocupações são a pessoa do utente, em saúde ou doente, e a forma como ele vive a sua doença, ao contrário da perspetiva geral, à época, que focava em primeiro lugar a medicina das doenças, geralmente até apenas cada episódio de doença, e onde a consulta era o instrumento de trabalho privilegiado, ainda que desprovida da complexidade dos instrumentos e da eletrónica, que exigiam técnica específica de utilização e manuseio melindroso.

E este percurso é talvez o seu legado maior. A investigação básica, a translação de conhecimento, a tecnologia, a epidemiologia e as ciências humanas são a base da medicina científica, mas para a pessoa que consulta o médico o que realmente conta é esta capacidade de ouvir os seus problemas, de a compreender nas suas realidades e de a orientar nos percursos que terá inevitavelmente de fazer pelos serviços de saúde ao longo da vida. O Professor Alexandre Sousa Pinto compreendeu-o e contribuiu para que muitos outros o compreendessem também, dentro e fora da especialidade.

Foi reconhecido como especialista em Medicina Geral e Familiar pela Ordem dos Médicos em 1997. Foi sócio honorário da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, onde foi Presidente da mesa da Assembleia Geral nos triénios 1996/1998 e 1999/2001. Foi Presidente da Academia Portuguesa de Medicina entre 2001 e 2006. Foi Overseas Fellow da Royal Society of Medicine em Inglaterra. Foi fundador e Presidente do Conselho Diretivo do Centro de Saúde de São João, face assistencial do Projeto «Tubo de Ensaio», de 1999 a 2006, ano em que se reformou.

Foi distinguido com a Medalha de Mérito da Ordem dos Médicos pela sua atividade e mérito pessoal, profissional e académico no 19.º Congresso Nacional de Medicina, em Coimbra, em 2016.

Mais do que os prémios e os reconhecimentos institucionais fica o marco de um homem com um caráter, uma personalidade e um temperamento alicerçados por um conjunto de características que misturam a curiosidade pela inovação com a ética do exercício e com o empreendedorismo, que lhe permitiram fazer obra e escola num impulso, como escreveu, “que temos desde os primórdios da nossa espécie para ajudar outros humanos”. 5

Mostrou na sua vida profissional possuir qualidades de liderança, de gestão, de estratégia e de planeamento no domínio do ensino, da investigação e da prestação de serviços em Medicina, e particularmente em Medicina Geral e Familiar, que fazem dele um exemplo do que é o Ser Médico e o Ser Professor.

Contributo dos autores

Conceptualização, PS e AH; investigação, PS e AH; redação do draft original, PS e AH; revisão, edição e validação do texto final, PS e AH; administração do projeto, PS e AH; supervisão, PS e AH.

Referências bibliográficas

1. Hespanhol A, Malheiro A, Pinto AS. O projecto "Tubo de Ensaio": breve história do Centro de Saúde S. João [The "test tube" project: a brief history of the S. Joao health center]. Rev Port Clin Geral. 2002;18(3):171-86. [ Links ]

2. Hespanhol A, Pinto AS. Cinco anos do Centro de Saúde S. João: "Tubo de Ensaio" [São João Health Center "Tubo de Ensaio": five years at work]. Arq Med. 2005;19(3):103-11. [ Links ]

3. Hespanhol A, Pinto AS. O regime remuneratório do Centro de Saúde S. João: "Tubo de Ensaio" [The payment model in São João Health Center: "Tubo de Ensaio"]. Arq Med. 2005;19(3):113-20. [ Links ]

4. Silva CF, Beirão D, Santos P. 40 anos de desenvolvimento dos cuidados de saúde primários em Portugal. In: Missias-Moreira R, Mesquita CC, editors. International handbook for the advancement of public health policies: health policy, planning and management (Vol. 1). Porto: Publicações ESS; 2021. p. 30-48. [ Links ]

5. Santos P, Santiago L, Hespanhol A. Medicina geral e familiar. Coimbra: Almedina; 2021. [ Links ]

Recebido: 31 de Julho de 2023; Aceito: 31 de Julho de 2023

Endereço para correspondência Paulo Santos E-mail: psantosdr@med.up.pt

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