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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versión impresa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.39 no.5 Lisboa oct. 2023  Epub 31-Oct-2023

https://doi.org/10.32385/rpmgf.v39i5.13938 

Legado de medicina geral e familiar

Mário Moura - O mestre que ensina pelo exemplo

Eduardo Mendes1 

1. Médico de Família, reformado. Portugal.


“O Médico que apenas sabe Medicina, nem Medicina sabe.”

Abel Salazar

1889 - 1946

Não foi uma escolha fácil, nem, ao início, consensual. Estamos no primeiro semestre de 1983. Estava a tomar corpo a criação de uma associação de médicos de Clínica Geral que fosse uma entidade aglutinadora, que produzisse um corpo teórico coerente, que interagisse com as outras especialidades médicas, que fosse uma força representativa, que actuasse como grupo de pressão e que fosse reconhecida nacional e internacionalmente, o que viria a concretizar-se em Maio desse ano com a fundação da Associação Portuguesa de Médicos de Clínica Geral.

O grupo alargado de jovens médicos, responsável por este movimento fundacional, tinha de encontrar um Colega da área dos Cuidados Primários, prestigiado, respeitado, reconhecido interpares e pela sociedade, que assumisse a Presidência da Direcção da novel associação.

Entre outros foi sugerido, por Colegas da região de Setúbal, o nome de um médico experiente, maduro, prestigiado, que pela força e influência do seu exemplo pessoal, profissional e cívico, reunia, no seu entender, as condições que se pretendiam para um Presidente da Associação profissional e científica que estava a nascer.

O Dr. Mário da Silva Moura, já na casa dos 50 anos, Consultor de Clínica Geral, na altura Director do Centro de Saúde de Setúbal, com um ar respeitável, que lhe era acrescido pelo cabelo e barba brancos, foi o nome proposto e finalmente, em boa hora, por todos aceite.

O tempo veio demonstrar o acerto, a lucidez e a visão dessa proposta.

Durante doze anos o Dr. Mário Moura assumiu a Presidência da Associação Portuguesa de Médicos de Clínica Geral, mantendo-se ainda como Presidente Honorário da actual Associação de Portuguesa de Medicina Geral e Familiar.

O curriculum vitae do Dr. Mário Moura é muito rico e multifacetado, abrangendo, para além da actividade clínica e académica, a investigação, a escrita, a intervenção social, cultural, associativa, política e religiosa.

Nascido em Coimbra em 1927, termina a licenciatura em Medicina na Universidade da mesma cidade em 1952.

Inicia a sua vida clínica em Setúbal em 1953, no Hospital do Espírito Santo.

Exerceu clínica no I.A.N.T. (assistência aos tuberculosos), na Associação de Beneficência Familiar Mutualista, nos Serviços Médico-Sociais das Caixas de Previdência, como médico e depois como Director Clínico no Distrito de Setúbal.

Entrou para o SNS como Consultor de Clínica Geral no ano da sua criação, tendo sido médico no Centro de Saúde de Setúbal e depois seu Director Clínico até à aposentação.

Os Cuidados Primários, a Clínica Geral e a Medicina Familiar foram sempre as áreas onde exerceu a sua clínica, numa perspectiva holística e com uma abordagem bio-psico-social do paciente, em que o psíquico e o social têm um papel determinante, como muito bem frisa no seu livro O Doente co-autor da sua doença - “É preciso escutar o paciente, já dizia Freud no séc. XIX. Podemos assim pensar que este trabalho pode trazer alguma originalidade, não nas matérias que qualquer um pode estudar na literatura moderna existente em abundância, mas na valorização da necessidade do conhecimento da história biográfica dos nossos doentes, na valorização da relação essencial entre o paciente e o médico, evidência da necessidade de que cada um de nós domine práticas de psicoterapia. Há toda uma actividade psíquica que surge e se impõe na ocasião duma situação corporal anómala.”1

A clínica privada também foi área onde exerceu. Para além do seu consultório, trabalhou para várias seguradoras, fez Medicina Desportiva no Vitória de Setúbal, tendo participado em vários cursos para treinadores. Dedicou-se depois à Medicina do Trabalho, pertencendo ao Colégio da Ordem dos Médicos dessa especialidade desde 1984.

Dedicou-se ao estudo da “Hibernação Artificial”, tendo hibernado vários doentes e publicado artigos (únicos em Portugal) na “Coimbra Médica”.

A escrita foi uma disciplina e um exercício diário. Para além de incontáveis artigos na imprensa regional, tem cinco livros publicados: E o Homem Novo?, (2O Doente co-autor da sua doença, (1À Conquista da Liberdade, (3 Os “Acasos” na construção da Vida4 e Confissões. (5

Mas a dimensão Humana do Dr. Mário da Silva Moura excede em muito o seu vastíssimo currículo, resumido atrás.

Conheci o Dr. Mário Moura em 1984, num importante evento da APMCG com a presença do Dr. John Horder, fundador do Royal College of General Practitioners, e desde essa altura se estabeleceram entre nós laços de profunda amizade, que se foram fortalecendo com o convívio mais frequente, quando integrei a Direcção da APMCG.

Mas a verdadeira oportunidade para nos conhecermos de uma forma mais próxima, pessoal e intimista, surgiu quando, por várias ocasiões, ambos viajámos para países da América do Sul, para participar em actividades do CIMF, à data Centro Internacional de Medicina Familiar das Américas, Espanha e Portugal, actualmente Confederação Iberoamericana de Medicina Familiar - WONCA Iberoamericana.

Os voos partiam de Madrid às cinco ou seis horas da manhã e a nossa ligação Lisboa-Madrid fazia-se pelas dezanove horas do dia anterior.

Tínhamos pelo menos seis horas de espera no aeroporto de Madrid e, com a nossa bagagem já despachada para o destino final, havia tempo e a oportunidade para conversar e ir jantar à cidade.

Apanhávamos um autocarro que nos deixava na Plaza Cibeles e, a pé, íamos jantar às Puertas del Sol, regressando ao aeroporto muito a tempo da hora de embarque.

Entre muitos episódios curiosos que ocorreram nessas viagens, alguns deles reveladores da personalidade do Dr. Mário Moura, conto este, que se passou numa noite de verão, ao regressarmos das Puertas del Sol, enquanto esperávamos pelo autocarro que nos havia de levar ao aeroporto.

Estávamos sentados num banco de jardim a conversar, quando de repente se junta à nossa volta um grupo de adolescentes muito agitados, que, aproximando-se de nós, diziam entre si: “Es el, es el, es el…”

Ficámos um pouco inquietos por não sabermos quem es el, mas o Dr. Mário Moura, com a sua calma proverbial, perguntou-lhes o que queriam e eles aos gritos disseram que queriam um autógrafo.

Mas um autógrafo porquê, perguntou-lhes o Mário Moura, desvendando eles então o motivo: tu és Ernesto Cardenal (padre, monge beneditino, poeta, escultor Nicaraguense, político, revolucionário apoiante e depois dissidente da Frente Sandinista de Libertação Nacional, figura-chave da Teologia da Libertação, que nos anos 80 chegou a ser Ministro da Cultura) e nós queremos um autógrafo.

Com imensa paciência e sem negar a identidade, o Dr. Mário Moura, fingindo que procurava uma caneta, tirou o passaporte do bolso e mostrou-lhes que estavam enganados e que ele, apesar da eventual parecença, não era quem eles pensavam.

E lá foram eles jardim fora a rir, numa grande algazarra.

E nós também a rir de tão inesperada parecença, não tão descabida quanto isso.

Foi durante essas horas de viagem, só os dois, que partilhámos as nossas ideias sobre a Medicina Familiar, mas sobretudo conversamos sobre as nossas histórias de vida, as aspirações, os desejos, os desencantos e as esperanças que tínhamos no futuro.

O Dr. Mário Moura, tal como é um exímio orador, é um excelente contador de histórias e eu, muito mais novo e com menos experiência de vida e por isso com menos histórias para contar, era um atento e ávido ouvinte.

Histórias da sua vida clínica, quer no Hospital quer na “Caixas”, no consultório, na Fábrica Cimenteira, no Centro de Saúde de Setúbal.

A história fantástica da sua conversão tardia à religião Católica, ele que tinha sido um convicto ateu, com textos publicados afirmando esse ateísmo.

De como deu testemunho dessa conversão por esse país fora, em palestras que tiveram milhares de católicos e não católicos como ouvintes.

Do seu amor infinito à esposa, a Ana Maria, uma mulher de excepção, e das enormes preocupações e saudades que o assaltavam quando estava por algum tempo longe dela, sempre com o receio de que pudesse precisar de alguma coisa e ele não estava lá para corresponder.

No seu livro Confissões, o Dr. Mário Moura oferece-nos uma surpreendente narrativa dessa história de Amor e Paixão entre o autor e a sua mulher de toda a vida, da sua relação muito próxima com os filhos e netos e dos almoços semanais, só interrompidos pela sua ausência.

Falávamos sobre a sua necessidade, quase compulsiva, em intervir socialmente, em ter um papel activo na vida cívica e política, em pessoa ou através de artigos na imprensa regional, local e até nacional.

A necessidade de se dar, se empenhar, se comprometer com causas que entendia justas.

De estar próximo e de servir o Outro, nomeadamente os mais desfavorecidos.

O Dr. Mário Moura é o que eu chamo de Homem completo: íntegro, de uma ética irrepreensível, com uma cultura vastíssima, cidadão comprometido social e civicamente, profissional de excelência, reconhecido pelos pares, agraciado com vários prémios e condecorações.

Marido, pai, avô, cidadão de excepção.

Enquanto Presidente da APMGF deixou a sua marca em tudo o que fez e disse. Foi figura tutelar e mestre pelo exemplo, para todos os que com ele privaram e privam.

O Dr. Mário Moura, a quem tenho a honra de chamar Amigo, representa uma estirpe de homens bons que, mais do que exercer a profissão de médico, contribuiu para definir o que é ser-se médico e sobretudo ser-se Médico de Família.

Nota

De acordo com a vontade expressa pelo autor, o texto não segue o novo acordo ortográfico.

Referências bibliográficas

1. Moura MS. O doente co-autor da sua doença. Largebooks; 2008. ISBN 9789899601208 [ Links ]

2. Moura MS. E o Homem novo? Cáritas Diocesana de Setúbal; 1995. [ Links ]

3. Moura MS. À conquista da liberdade. Âncora Editora; 2013. ISBN 9789727803811 [ Links ]

4. Moura MS. Os "acasos" na construção da vida: contos médicos que dão sentido à utopia, à fé e ao amor, como exemplos de Liberdade e Humanidade. Book Link Editora; 2017. ISBN 9789899947160 [ Links ]

5. Moura MS. Confissões. Manufactura; 2023. ISBN 9789725594629 [ Links ]

Recebido: 30 de Outubro de 2023; Aceito: 30 de Outubro de 2023

Endereço para correspondência Eduardo Mendes E-mail: emendes@netcabo.pt

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