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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.39 no.6 Lisboa dez. 2023  Epub 31-Dez-2023

https://doi.org/10.32385/rpmgf.v39i6.13701 

Estudos originais

O médico e a prática da Medicina Centrada na Pessoa: adaptação cultural e validação de questionário de autoavaliação retrospetiva

The doctor and the Patient-Centered Medicine practice: cultural adaptation and validation of a retrospective self-assessment instrument

Luiz Miguel Santiago1  2  5 
http://orcid.org/0000-0002-9343-2827

Mariana Ramalho3 

Pedro Lopes Ferreira4  5 

1. MD, PhD. Clínica Universitária de Medicina Geral e Familiar, da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Coimbra, Portugal.

2. Assistente Graduado Sénior. USF Topázio, ACeS Baixo Mondego. Coimbra, Portugal.

3. MD. Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Coimbra, Portugal.

4. PhD. Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Coimbra, Portugal.

5. Centro de Estudo e Investigação em Saúde da Universidade de Coimbra. Coimbra, Portugal.


Resumo

Introdução:

A autoavaliação do médico de medicina geral e familiar (MGF) sobre o seu desempenho em Medicina Centrada na Pessoa (MCP) deve ser avaliada para melhoria.

Objetivo:

Realizar a adaptação cultural e validação concorrente do Questionário Inglês de Moira Stewart, para autoavaliação médica do desempenho em MCP.

Método:

Após autorização da autora e parecer ético efetuou-se a tradução para o português europeu, retro-tradução para inglês e adequação linguística. Foi efetuada análise de validação concorrente com a dimensão «Explorar a saúde, a doença e a experiência da doença» do questionário Sobrecarga da Gestão da Multimorbilidade em Medicina Geral e Familiar (SoGeMM-MGF), aplicando-o a médicos internos e especialistas em MGF em amostra representativa, multicêntrica e de conveniência.

Resultados:

Questionário com forte consistência interna (α de Cronbach=0,895), coeficiente de correlação intraclasse para medidas médias de 0,600 e um único fator explicando 56,51% da variância e um tempo médio de resposta de 72±37 segundos. A pontuação média global foi de 31,3±4,0 [9 a 36], o homem significativamente pontuando mais, p=0,039. Por local de trabalho verificou-se diferença, p=0,001 entre USF A e B e p=0,002 entre USF A e UCSP, pontuando melhor os médicos em USF A, seguidos dos médicos em modelo USF B e correlação positiva, moderada e significativa entre os somatórios das escalas (Pearson ρ=0,491; p<0,001).

Discussão:

Este questionário é oportunidade para melhoria do desempenho médico da MCP melhorando o cuidado de saúde e a satisfação do médico.

Conclusão:

Foi possível adaptar e validar o questionário em língua portuguesa para avaliação retrospetiva do desempenho em MCP pelo médico.

Palavras-chave: Medicina centrada na pessoa; Medicina geral e familiar; Autoavaliação retrospetiva; Adaptação cultural; Validação concorrente

Abstract

Introduction:

The general practitioner’s evaluation of his/her performance in Patient-Centered Medicine (MCP), must be explored to improve it.

Aim:

To perform the cultural adaptation and concurrent validation of an English questionnaire by Moira Stewart for doctor self-assessment of MCP practice.

Methods:

After authorization by the author and ethical approval, the translation into European Portuguese, back-translation into English, and linguistic and cultural adaptation were conducted. Concurrent validity analysis was performed with a dimension of the Sobrecarga da Gestão da Multimorbilidade em Medicina Geral e Familiar (SoGeMM-MGF), applying it to interns and specialists of general practice/family medicine (GP/FM) in a representative, multicentric, convenience sample.

Results:

The questionnaire showed strong internal consistency (Cronbach’s alpha=0.895), and intraclass correlation coefficient for average measures of 2.5; p<0.001, one only factor explaining 56.51% of the variance with a self-fulfillment time of 72±37 seconds. The mean global score was 31.3±4.0 [9 to 36], with males significantly scoring higher, p=0.039; by GP/FM unit of work, significant differences were found, p=0.001 between USF A and B and p=0.002 between USF A and UCSP, USF A scoring higher followed by USF B. A Pearson ρ=0.491; p<0.001 correlation was found between both questionnaires.

Discussion:

This questionnaire is an opportunity for improvement of the doctor’s performance, ameliorating the health care provided and the doctor’s satisfaction.

Conclusion:

The adaptation and validation for European spoken Portuguese of the questionnaire by Moira Stewart was possible for retrospective evaluation of the GP/FM doctor MCP performance.

Keywords: Patient-centered medicine; General practice; Self-assessment; Concurrent validation study

Introdução

A Medicina Centrada na Pessoa (MCP) decorre do modelo e método clínico centrado na pessoa (MCCP), explora o binómio saúde/doença e a experiência da doença, ensaia a compreensão do doente/pessoa no seu todo, procura entendimento entre médico e doente/pessoa e visa a melhoria da relação médico/doente.1 Esta abordagem pode desencadear maior satisfação da pessoa/doente e do médico que a realiza. (1 Alguns estudos centrados na perspetiva do doente têm sido realizados com o intuito de determinar se a prática clínica está a seguir esta abordagem, (2-4 mas importa também saber a perspetiva dos médicos no que respeita ao seu próprio desempenho da MCP na consulta do doente/pessoa.

Embora o nível de literacia em saúde do doente/pessoa esteja a evoluir, o que lhe confere capacitação para gerir melhor a sua saúde/doença, o médico continua a ser visto pelo doente como uma fonte primária de informação em saúde, para além de um modelo a seguir. Assim, a saúde física, mental e emocional do próprio médico pode ter impacto negativo no seu desempenho na consulta (tanto em contexto presencial como não presencial), na comunicação de informação em saúde e na qualidade da prestação de cuidados de saúde ao doente. Nalguns estudos foi reportada uma relação entre erros médicos e burnout5-7 e, de acordo com Shanafelt e colaboradores, (8 aumenta cerca de duas a três vezes a probabilidade de médicos em burnout reportarem o seu desempenho na consulta como subótimo. A comunicação inadequada com o doente e a falta de empatia podem ser características de burnout, indo contra os princípios da MCP. (4,9-11

O bem-estar físico, mental e emocional é complexo e multifacetado devido a fatores individuais, profissionais e organizacionais e o bem-estar do médico não somente beneficia o próprio, como pode ser vital para a prestação de cuidados de saúde. (12 É importante identificar e reconhecer os fatores intrínsecos e extrínsecos que comprometem a saúde e bem-estar dos médicos, pois também podem causar impacto no sistema de saúde, como a redução de produtividade, baixas médicas, absentismo e reforma precoce. (13-14

A incerteza associada à gestão da multimorbilidade de doentes, por exemplo, pode originar sobrecarga nos médicos de medicina geral e familiar (MGF), sendo a multimorbilidade um problema de saúde comum nos adultos portugueses (com prevalência maior nos idosos) que frequentam consultas de MGF. (11 Dada a sua relevância para o desempenho terapêutico, Prazeres e colaboradores11 desenvolveram um questionário de medida com dezasseis questões - Sobrecarga da Gestão da Multimorbilidade em Medicina Geral e Familiar (SoGeMM-MGF) -, que permite ao médico e aos decisores em saúde perceber se a gestão da multimorbilidade está a afetar o bem-estar do médico.

Santiago e colaboradores15 criaram e validaram um questionário capaz de aferir a autoperceção genérica da prática médica no exercício da MCP, destinado aos médicos especialistas em MGF. Este questionário não é, no entanto, restrito apenas à prática da consulta, permitindo assim avaliar outros aspetos que se conseguem medir apenas ao longo do tempo.

Para uma melhor gestão da consulta médica em MGF, segundo a MCP, é agora relevante fazer uma análise retrospetiva da consulta que permita a autoavaliação de desempenho dos médicos de MGF, especialistas ou internos de especialidade. Para tal é necessário dispor de questionários cultural e linguisticamente validados para uso em Portugal. Pela pesquisa efetuada não existe tal questionário validado em português europeu.

Stewart e colaboradores desenvolveram um questionário para autoavaliação, em retrospetiva, da realização de “boa” consulta em MCP, composto por nove questões, em língua inglesa. (16

Neste contexto, o presente trabalho teve por objetivos a tradução para língua portuguesa e adaptação cultural do questionário desenvolvido por Stewart e colaboradores16 e a sua validação concorrente com uma dimensão/componente do questionário SoGeMM-MGF, (11 para utilização em autoavaliação retrospetiva de consulta por médicos de MGF.

Método

Desenho do estudo

Tradução e adaptação cultural. Procedeu-se à obtenção da versão portuguesa do questionário de Stewart e colaboradores, (16 originalmente em língua inglesa (após obtenção de autorização da autora principal), por um processo de tradução/retroversão, de acordo com as recomendações para a tradução de questionários propostas pelo Scientific Advisory Committee of the Medical Outcomes Trust. (17

Os autores da tradução eram nativos da língua portuguesa, com elevado nível de fluência em língua inglesa, para além de estarem familiarizados com a terminologia médica. A tradução foi analisada por um painel de peritos, quatro doutorados e especialistas em MGF e a versão de consenso foi seguidamente sujeita a retroversão para a língua inglesa por tradutores bilingues independentes, não conhecedores da versão original nem da intenção do estudo.

A adaptação cultural resultou da aplicação a uma amostra piloto de médicos de MGF, o grupo-alvo ao qual o questionário se destina, para conhecimento de problemas quanto à compreensibilidade e agradabilidade.

Fiabilidade. Para analisar a fiabilidade (ou fidedignidade) optou-se pela análise da consistência interna através da determinação do coeficiente de alfa de Cronbach e das correlações item-total e do coeficiente de correlação intraclasse.

Validação estrutural. Procedeu-se a análise fatorial exploratória pela análise de componente principal. Analisou-se a matriz de componentes rodada para estudar a relação entre os itens e fatores extraídos. Considerou-se que as correlações do item com o fator superiores a 0,71 eram excelentes. (18

Validade concorrente. A análise de validação concorrente foi feita com a dimensão/componente «Explorar a saúde, a doença e a experiência da doença» do questionário de avaliação SoGeMM-MGF, desenvolvido por Prazeres e colaboradores (sob autorização do autor). (11

Valores normativos. Os pontos de corte foram encontrados retirando 1,96 desvios-padrão à média da pontuação no questionário, de acordo com a fórmula Pc = x- - (1,96 * s).

Seleção dos participantes

O convite a médicos à participação no estudo foi feito através da rede de contactos do Núcleo de Estudos em Medicina Centrada na Pessoa, da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, tendo esses mesmos médicos convidado colegas seus não frequentadores de ações do referido núcleo. Foram também convidados tutores da Unidade Curricular de Medicina Geral e Familiar, da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra.

Para a análise da correlação entre os questionários foi feita a sua aplicação em consultas de MGF (a primeira consulta do dia em que acederam ao questionário), numa amostra de 94 médicos, especialistas e internos de MGF, para assegurar a existência de pelo menos dez respostas por cada pergunta.

Recolha de dados

O questionário administrado aos participantes, amostra representativa, multicêntrica e de conveniência, continha questões de autopreenchimento em escala tipo Likert com quatro alternativas de resposta, com um tempo médio total de resposta estimado em quatro minutos. Foi também incluído um conjunto de questões para a caracterização demográfica e profissional dos médicos inquiridos relativamente à idade, sexo, posição na carreira (interno/especialista) e tipologia de local de trabalho.

A explicação do estudo, bem como o consentimento informado, foram previamente facultados aos participantes. A participação no estudo foi voluntária. Os médicos participantes acederam a uma ligação informática para o servidor onde se encontrava o questionário. O consentimento informado, livre e esclarecido era pedido aos participantes no início do questionário online, só podendo avançar para as questões após assinalarem o consentimento. A proteção, anonimato e sigilo dos intervenientes foi garantida pela codificação dos dados recolhidos, os quais foram guardados em base de dados protegida por palavra-passe. Como critério de inclusão foi estabelecida a resposta a todas as questões de ambos os questionários.

O estudo foi previamente aprovado pela Comissão de Ética da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra e foi desenvolvido segundo os princípios éticos da Declaração de Helsínquia.

Análise de dados (estatística)

A análise estatística foi desenvolvida através do software IBM SPSS Statistical Package for the Social Sciences, v. 27.0 (IBM Corporation, Armonk, New York, USA).

Realizou-se análise estatística descritiva, correlacional e testes paramétricos. Definiu-se como estatisticamente significativo um valor de p<0,05. Em relação à análise da consistência interna foi considerado aceitável o valor do coeficiente alfa de Cronbach se ≥0,7. O coeficiente de correlação intraclasse foi considerado bom para valores superiores a 0,75. A análise de correlação foi considerada fraca se o valor de p fosse inferior a 0,3, moderada entre 0,3 e 0,7 e forte se superior a 0,7.

Para ambos os questionários foi estudado o valor da soma das respostas por cada respondente, MCP entre 9 a 36 e SoGeMM-MGF de 8 a 32 pontos.

Resultados

No processo de adaptação cultural, após tradução e retroversão do questionário de Stewart e colaboradores, (16 e numa amostra de N=7 médicos, 57,0% do sexo masculino, 86,0% com idade inferior a 40 anos, 71,4% trabalhando em modelo USF, observou-se agradabilidade de leitura, facilidade de compreensão, construção de frases com total anuência e capacidade de medir o pretendido, não tendo sido sugerida qualquer alteração de linguagem.

Analisou-se a consistência interna com o teste alfa de Cronbach, na versão “se item apagado”, que obteve o valor de 0,895, tendo variado entre 0,880 e 0,890. A correlação item total corrigida foi, em todos os itens, superior a 0,3, valor considerado como «bom» por Bryman e Cramer.19 O coeficiente de correlação intraclasse para medidas médias foi de 0,600, estatisticamente significativo (F(144,1152)=2,500; p<0,001), considerando-se moderado.

Na análise fatorial exploratória observou-se, pelo teste de KMO e Bartlett um valor de p<0,001, garantindo a análise e que todos os nove itens do questionário MCP saturavam apenas numa dimensão e cada um deles superior a 0,5. A existência de um único fator explicou 56,51% da variância (unifatorial).

A versão adaptada foi a constante da Tabela 1.

Tabela 1 Questionário MCP (em cada questão assinale apenas uma opção) 

No trabalho de validação concorrente participaram 94 médicos de MGF. A caracterização demográfica e profissional destes participantes revelou que 67% eram do sexo feminino, que n=75 (79,8%) eram médicos especialistas em MGF, tendo a maioria idade inferior a 40 anos (N=42; 44,7%). Trabalhavam em Unidade de Saúde Familiar (USF) 59,6% (Tabela 2).

Tabela 2 Caracterização dos participantes (N=94) 

Legenda: UCSP = Unidade de cuidados de saúde personalizados; USF =Unidade de saúde familiar.

A pontuação média para o questionário sobre MCP foi de 31,3±4,0 com variação entre 22,0 e 36,0, numa escala de 9 a 36 pontos. Para SoGeMM-MGF foi de 29,0±2,8, com variação de 24,0 a 32,0, numa escala de 8 a 32 pontos.

A validade concorrente foi analisada com a dimensão/componente «Explorar a saúde, a doença e a experiência da doença» do questionário SoGeMM-MGF, que obteve neste estudo um valor de coeficiente alfa de Cronbach de 0,862.11

Verificou-se uma correlação positiva, moderada e significativa (coeficiente de Pearson ρ=0,491; p<0,001; n=94) entre os valores das duas escalas.19

A Tabela 3 mostra as respostas obtidas por categoria de resposta ao questionário MCP e à dimensão «Explorar a saúde, a doença e a experiência da doença» no SoGeMM-MGF. A maioria dos médicos selecionou a resposta 4 («Completamente/Muito satisfeito/Muito bem») em todas as nove questões, à exceção das questões 5 e 9 em que a maior parte optou pela pontuação 3 («Bastante/Satisfeito/Bem»). A categoria 2 («Um pouco/Satisfatório/Pouco satisfeito») foi escolhida sobretudo nas questões 5, 7 e 9.

Tabela 3 Respostas aos Questionários MCP e SoGeMM-MGF 

Legenda do Questionário MCP: 1. Nada/Nada satisfeito/Nada; 2. Um pouco/Pouco satisfeito/Satisfatório; 3. Bastante/Satisfeito/Bem; 4. Completamente/Muito satisfeito/Muito bem. Legenda do Questionário SoGeMM-MGF: 1. Raramente; 2. Poucas vezes; 3. Muitas vezes; 4.Quase sempre.

No Questionário SoGeMM-MGF, a opção 4 («Quase sempre») foi a mais escolhida (Tabela 3).

Pela Tabela 4 e quanto ao Questionário MCP foram observadas diferenças significativas por sexo na pontuação total média obtida (t=xxx; p=0,039), sendo a pontuação mais alta a do sexo masculino.

Tabela 4 Pontuação por sexo, idade, posição na carreira e local de trabalho 

Legenda: UCSP = Unidade de cuidados de saúde personalizados; USF = Unidade de saúde familiar.

No que diz respeito à idade verificou-se não haver diferença significativa (p=0,172).

Em função do tipo de Unidade de Saúde de trabalho, USF modelo A ou B e UCSP, a pontuação média revelou diferenças significativas, com p=0,001 entre USF modelo A e USF modelo B e p=0,002 entre USF modelo A e UCSP.

A diferença de pontuação, em média, obtida por internos e especialistas não tem significado estatístico (p=0,770).

Numa pontuação possível a variar entre 9 e 36 para o Questionário MCP observou-se uma pontuação média total de 31,0±4,0, com uma amplitude entre 22 e 36. Face ao significado estatístico por sexo determinaram-se os pontos de corte (Tabela 5). Verificou-se que 98,9% dos médicos pontuaram acima do ponto de corte, indicando uma autoavaliação da consulta ótima em MCP, à exceção de uma médica (1,1%) que pontuou abaixo de 23.

Tabela 5 Valores nominativos - Ponto de corte por sexo 

Legenda: Pc = Ponto de corte.

Discussão

Alguns estudos contribuíram para melhor esclarecer os componentes do cuidado clínico centrado na pessoa. (1 De acordo com Stewart e colaboradores, de um modo geral, esses estudos evidenciaram que o cuidado centrado na pessoa influencia positivamente os resultados em saúde e que as intervenções que melhoram a comunicação centrada na pessoa têm efeito na modificação do comportamento dos profissionais de saúde, tendo inicialmente sido estudada a perspetiva da pessoa e, posteriormente, a do médico. (1-2

No presente estudo foi adaptado um questionário de autoavaliação médica do desempenho na consulta acabada de realizar. Efetuou-se a tradução para a língua portuguesa e a adaptação cultural do questionário de Stewart e colaboradores,16 com nove itens (Questionário MCP), analisou-se a validade deste questionário concorrentemente com a dimensão/componente «Explorar a saúde, a doença e a experiência da doença» do Questionário SoGeMM-MGF, desenvolvido por Prazeres e colaboradores, por versar área atinente e ter sido especificamente realizado para o contexto da MGF. (11

A consistência interna do Questionário MCP no presente estudo é excelente, com um valor de alfa de Cronbach de 0,895. Relativamente ao capítulo/dimensão «Explorar a saúde, a doença e a experiência da doença» do Questionário SoGeMM-MGF, o valor calculado foi Bom com um alfa de Cronbach=0,862, tendo sido obtido para este questionário no global aquando da validação portuguesa um valor de alfa de Cronbach de 0,89.

Na autoavaliação retrospetiva da consulta, a pontuação total média foi de 31±3,96, num máximo de 36, existindo diferença significativa entre sexos, com o sexo masculino a apresentar pontuação mais elevada. É agora necessário perceber o porquê desta diferença.

As pontuações 3 («Bastante/Satisfeito/Bem») e 4 («Completamente/Muito Satisfeito/Muito Bem») foram as mais escolhidas para classificar as nove questões do questionário, podendo interpretar-se como uma autoavaliação retrospetiva elevada da consulta por parte dos médicos participantes.

De entre as pontuações menos positivas, como a pontuação 2 («Um pouco/Satisfatório/Pouco satisfeito»), esta foi selecionada por médicos (entre 10-18%) relativamente a três das questões: “Como considero que discuti com a pessoa o papel de cada um?”; “Como considero que explorei com a pessoa a adesão terapêutica?”; e “Em relação ao(s) problema(s) de saúde de hoje, até que ponto discuti questões pessoais ou familiares que pudessem estar a afetar a sua saúde?” Estas dimensões devem, assim, ser as componentes da MCP a ser preferencialmente exploradas para a melhoria da comunicação com a pessoa/doente, da prestação do cuidado de saúde e maior satisfação do médico com o seu trabalho.

São, assim, alguns os desafios e, simultaneamente, as oportunidades para a melhoria contínua da realização do MCCP.

Mas, para um conhecimento progressivo da pessoa como um todo no seu contexto social, indo ao encontro das suas necessidades e expectativas, serão eventualmente precisas várias consultas, num processo que se constrói ao longo do tempo numa relação contínua de confiança. Desta forma, a autoavaliação retrospetiva médica da consulta que acabou de realizar-se pode servir de indicador para definir um plano de melhoria para a(s) próxima(s) consulta(s), bem como de aprendizagem quanto ao que fazer em cada consulta em particular se marcada pela pessoa. Porém, vai exigir trabalho diferente do médico, obrigando a redirecionar a sua gestão do tempo para poder construir o plano de atuação conjunto. Tal pode contribuir para ganhos em saúde da pessoa/doente, para a satisfação do próprio médico no trabalho, para benefício da sua própria saúde e até para o melhor controlo do tempo. Menor carga de consultas de repetição por pessoa, evitando-se o “doente frequente” ou “grande utilizador” será outro ganho. A carga de trabalho do médico de MGF não é apenas com a doença, mas com a pessoa que sofre de várias em simultâneo, a multimorbilidade, ou que tem aspirações ou de saúde ou medo de doença, sendo assim este método de consulta fonte de melhoria. (3,11,15-16,20

O aumento da incidência de burnout nos médicos de MGF esteve na base do desenvolvimento de uma revisão sistemática dedicada à análise dos fatores influenciadores da satisfação no trabalho dos médicos de MGF. (21 Concluiu-se que os fatores mais referidos pelos médicos de MGF como contribuidores para a satisfação eram a diversidade no trabalho, o relacionamento e contacto com os colegas no trabalho e o envolvimento no ensino de estudantes de medicina; os fatores supressores de satisfação mais apontados foram a baixa remuneração, o número de horas excessivo de trabalho, a sobrecarga de tarefas administrativas, a falta de tempo nas consultas e a falta de reconhecimento do desempenho. (21 O MCCP pode permitir esta melhor gestão do tempo. (11,20

Recentemente desenvolveu-se um estudo transversal em 34 países, de análise da satisfação no trabalho em médicos de MGF. (22 Numa escala de 1 a 4, o nível médio em Portugal encontrava-se entre 2-2,5, sendo o 22.º em 34 países. É nos países do Sul da Europa que os médicos de MGF têm níveis mais baixos de satisfação no trabalho e é nos países com produto interno bruto mais alto que existe associação positiva com a satisfação no trabalho. Apesar das diferenças entre países ao nível dos sistemas de cuidados primários de saúde, a conclusão principal deste estudo foi a de que existia uma tendência crescente de insatisfação no trabalho em MGF e que eram precisas intervenções direcionadas a contrariar esta tendência, sob pena de efeitos adversos na saúde destes médicos, na sua prestação de cuidados de saúde e nos próprios sistemas de saúde. (22

A ligação emocional do médico com a pessoa, enfatizada no MCCP, poderá ser facilitadora na consulta para o médico seguir o caminho mostrado pela pessoa, incrementando a tomada de decisão partilhada. (1 A empatia é vista pela pessoa e médicos de MGF como fundamental na comunicação entre ambos e existe evidência de que a empatia facilita a relação médico-consulente e aumenta a satisfação de ambos. (23-24 De acordo com a literatura, os principais fatores limitadores da empatia na consulta de cuidados de saúde primários são a duração da consulta e a sobrecarga de trabalho do médico, sendo que a necessidade de estender a duração da consulta é referida tanto pelos consulentes como pelos médicos. (9 Na opinião dos investigadores, o ensino de uma atitude empática na cultura de medicina está subvalorizado, mas esta pode ser desenvolvida. (9

Um outro estudo qualitativo comparou os pontos de vista dos doentes e dos médicos no que toca à empatia no contexto de MGF. (24 Vários obstáculos foram destacados por ambos, estando associados a: i) funcionamento da própria unidade de prestação de cuidados de saúde e à empatia do pessoal; ii) a comunicação médico-pessoa; iii) as diferenças nas expectativas versus a realidade, da pessoa e do médico; iv) a pressão do tempo de duração da consulta; e v) a capacidade empática do próprio médico. (24

O bem-estar individual, pessoal e profissional do médico poderá afetar a sua capacidade de ser empático, de ter relação terapêutica com a pessoa, mas, por outro lado, ser empático pode protegê-lo de burnout e ter um efeito positivo na satisfação no trabalho. Defendem os autores que o médico deveria participar regularmente em ações de aconselhamento intercolegial para ajudar a reduzir o isolamento profissional, aumentar a sensibilidade face aos doentes, diminuir a incidência de burnout e aumentar o bem-estar.

No presente estudo, a autoavaliação retrospetiva da consulta realizada pelo médico de MGF será certamente o reflexo destas circunstâncias pessoais e profissionais. Os resultados mostraram a necessidade de mais tempo de consulta para discutir com a pessoa o papel de cada um, explorar com a pessoa a adesão ao plano terapêutico e melhor conhecer o contexto sociofamiliar da pessoa que pode afetar a sua saúde/doença. A aprendizagem e a prática do método ajudarão à melhoria destas respostas? Estudos futuros deverão dar resposta a estas questões.

Os resultados do presente estudo evidenciaram diferenças significativas entre sexos e, também, significativas entre os locais de trabalho (USF A, USF B e UCSP) na pontuação. Vários estudos têm mostrado resultados inconsistentes relativamente às diferenças de género na qualidade de vida ao nível profissional. Uma meta-análise revelou que as mulheres médicas revelam níveis de exaustão emocional/burnout maiores do que os homens, o que pode explicar-se por uma tendência para oferecer uma maior capacidade empática. As mulheres referem, com maior frequência, que o seu trabalho médico afeta a sua vida pessoal, o que contribui também para o burnout. (25 Enquanto no estudo de Santiago e colaboradores15 as mulheres médicas exibem maior sensibilidade para a procura de entendimento com o doente, no presente estudo, a pontuação mais baixa obtida pelo sexo feminino na autoavaliação de desempenho da consulta acabada de realizar pode dever-se a desgaste emocional, mais do que a uma capacidade menor de praticar MCP, considerando também a época pandémica em que o trabalho foi realizado.

Relativamente à influência do local de trabalho, os médicos de USF tipo A (vs USF tipo B e UCSP) revelaram ser, neste estudo, aqueles com maior pontuação de desempenho em MCP na consulta acabada de realizar. Também no estudo de Santiago e colaboradores, (15 aqueles que trabalham numa USF são os que procuram um maior entendimento com a pessoa.

Não se verificaram diferenças significativas entre ser interno ou especialista e o grupo etário.

Todos os resultados obtidos são apenas válidos para a amostra de estudo, mas será relevante estender a aplicação deste questionário a um número maior de médicos de MGF. Será agora necessária a realização de estudos prospetivos que permitam perceber o impacto clínico nas pessoas que consultam e nos médicos que executam consulta segundo o MCCP e a MCP, eventualmente confrontando com os resultados sentidos pela Pessoa que consulta usando questionário específico. (26

Conclusão

A adaptação cultural do questionário desenvolvido por Stewart e colaboradores16 para autoavaliação retrospetiva de desempenho de MCP na consulta e a sua validação concorrente permitiu disponibilizar um novo questionário, em língua portuguesa europeia, que pode ser um indicador das necessidades de desenvolvimento profissional para aumentar a satisfação no trabalho, em prol da saúde da pessoa e do próprio médico.

O presente questionário apresenta boa fiabilidade e validade e permite ao médico avaliar retrospetivamente o desempenho na consulta, segundo a MCP, assim como analisar as principais insuficiências para planear a próxima consulta. A capacitação, o empoderamento e a visão holística são áreas a merecer reflexão.

Contributo dos autores

Conceptualização, MA e LMS; metodologia, MLA, LMS e PLF; software. MA, LMS e PLF; validação, MA, LMS e PLF; análise formal, MA, LMS e PLF; investigação, MA e LMS; recursos, MA e LMS; gestão de dados, MA, LMS e PLF; redação do draft original, MA, LMS e PLF; revisão, validação e edição do texto final, MA, LMS e PLF; visualização, MA, LMS e PLF; supervisão, LMS e PLF; administração do projeto, MA e LMS.

Conflito de interesses

Os autores declaram não possuir quaisquer conflitos de interesse.

Financiamento do estudo

O estudo não foi objeto de qualquer financiamento.

Referências bibliográficas

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Recebido: 09 de Fevereiro de 2023; Aceito: 20 de Julho de 2023

Endereço para correspondência Luiz Miguel Santiago E-mail: luizmiguel.santiago@gmail.com

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