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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versión impresa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.39 no.6 Lisboa dic. 2023  Epub 31-Dic-2023

https://doi.org/10.32385/rpmgf.v39i6.13523 

Estudos originais

Duração da consulta: fatores influenciadores e perspetivas de médicos e utentes - um estudo transversal

Consultation length: influencing factors and doctors’ and patients’ perspectives - a cross-sectional study

Catarina Neves Santos1 
http://orcid.org/0000-0003-3232-1928

Bruno Ferreira Pedrosa2 

Marília Martins2 

Fábio Gouveia3 

Fátima Franco4 

Margarida João Vardasca2  5 

Bernardo Pedro6 

Jorge Domingues Nogueira4 

1. Assistente em Medicina Geral e Familiar. USF Ramada, ACeS Loures-Odivelas. Ramada, Portugal.

2. Médico Interno de Medicina Geral e Familiar. USF Ramada, ACeS Loures-Odivelas. Ramada, Portugal.

3. Assistente em Medicina Geral e Familiar. USF Souto Rio, ACeS Baixo Vouga. Aveiro, Portugal.

4. Assistente Graduado em Medicina Geral e Familiar. USF Ramada, ACeS Loures-Odivelas. Ramada, Portugal.

5. Assistente convidada. Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Lisboa, Portugal.

6. Assistente em Medicina Geral e Familiar. ACeS Lisboa Norte. Lisboa, Portugal.


Resumo

Introdução:

O tempo de consulta é um recurso fundamental e é determinante para a satisfação de médico e utente. Uma duração de consulta superior parece associar-se a maior satisfação por parte dos intervenientes e contribuir para uma melhoria da qualidade de vida nos utentes com multimorbilidade. Contudo, não existe evidência suficiente para afirmar que um aumento do tempo de consulta é benéfico para o utente e sabe-se que são vários os fatores que podem influenciar a sua duração.

Objetivos:

Avaliar a perceção dos utentes quanto à duração da consulta, comparar a opinião de médico e utente quanto à adequação da duração e satisfação com a consulta e identificar fatores que influenciam a duração da mesma.

Método:

Estudo transversal, com componente quantitativa e qualitativa de design convergente. Para obter dados representativos da unidade em estudo, calculou-se uma amostra de 380 consultas médicas presenciais. Foram entregues questionários anónimos a médicos e utentes após o término da consulta. Realizou-se uma análise estatística descritiva e inferencial e uma análise temática dos dados qualitativos.

Resultados:

Estudaram-se 403 consultas. Os utentes percecionaram uma duração de consulta superior à real (p<0,001) e consideraram a duração como adequada numa proporção superior à dos médicos (p<0,001). A satisfação dos utentes foi maior com consultas mais longas (p=0,004), enquanto os médicos reportaram maior satisfação com durações intermédias (p<0,001). Consultas realizadas pelo médico de família ou por médicos do sexo feminino (p<0,001), utentes com mais problemas crónicos (p=0,006) e a abordagem de mais problemas na consulta ou de um novo problema em contexto de consulta programada (p<0,001) associaram-se a tempos de consulta superiores.

Conclusões:

A duração da consulta tem um papel importante na satisfação dos seus intervenientes. A autonomia das unidades e dos profissionais para adaptarem os tempos de consulta em determinados contextos poderia aumentar a satisfação de médicos e utentes.

Palavras-chave: Cuidados primários de saúde; Médico de cuidados primários; Gestão do tempo; Relações médico-paciente; Satisfação do paciente

Abstract

Introduction:

Consultation time is a fundamental resource and is crucial for doctor and patient satisfaction. A longer consultation time seems to be associated with greater satisfaction for both patients and doctors and contributes to an improvement in the quality of life of patients with multimorbidity. However, there is not enough evidence to say that an increase in consultation time is beneficial for patients and there are several factors that can influence its length.

Aims:

Assess patients’ perception of consultation time, compare the opinion of doctors and patients regarding the adequacy of the length and satisfaction with the consultation, and identify factors that influence the consultation time.

Methods:

Cross-sectional mixed-methods study with a convergent design. To obtain representative data from the health care centre under study, a sample of of 380 face-to-face medical consultations was calculated. Anonymous questionnaires were given to doctors and patients after the consultation. A descriptive and inferential statistical analysis and a thematic analysis of the qualitative data were performed.

Results:

We studied 403 consultations. Patients perceived a longer duration of the consultation than the time measured (p<0.001) and considered the duration as adequate in a higher proportion than doctors (p<0.001). Patients’ satisfaction was higher with longer consultations (p=0.004), while physicians reported greater satisfaction with consultations of intermediate duration (p<0.001). Consultations carried out by the family doctor or by female doctors (p<0.001), patients with more chronic problems (p=0.006) and the approach of more problems in the consultation or of a new problem in a scheduled consultation (p<0.001) were associated with higher consultation times.

Conclusions:

The consultation time plays an important role in the satisfaction of both patients and doctors. The autonomy of health units andprofessionals to adapt consultation times in certain contexts could increase the satisfaction of doctors and patients.

Keywords: Primary health care; Physicians, Primary care; Time management; Physician-patient relations; Patient satisfaction

Introdução

O tempo de consulta é um recurso fundamental e a sua duração representa um fator determinante para a satisfação do médico e do doente. (1-3 Nos cuidados de saúde primários (CSP) portugueses, o intervalo de tempo para duração de cada tipologia de consulta encontra-se relativamente bem definido. (4 Contudo, são vários os fatores que podem influenciar a sua duração, relacionados tanto com o médico como com o doente. (5-7 Têm-se realizado múltiplos estudos sobre a relação entre a duração da consulta e a qualidade dos cuidados prestados e a satisfação dos utentes. (2,5-6,8-10 Médicos e utentes parecerem sentir-se mais satisfeitos com consultas mais longas. (6,8,11 Em termos comparativos, os médicos tendem a ser mais críticos em relação à duração da consulta, enquanto os utentes tendem a sobrestimar a sua duração. (5,9 Alguns estudos sugerem que tempos de consulta mais curtos podem influenciar negativamente a qualidade da consulta, por prescrição errónea, cuidados menos personalizados e diminuição da satisfação dos utentes. (2,3,9-11 Por outro lado, uma maior duração de consulta parece contribuir para uma melhoria da qualidade de vida relacionada com a saúde nos doentes com multimorbilidade. (10 Em relação à duração da consulta e ao número de consultas realizadas por ano a cada utente, os estudos mostram resultados díspares. Enquanto em alguns estudos não parece existir uma relação significativa entre a duração de consulta e o número de consultas realizadas por ano, outros parecem mostrar que consultas mais longas influenciam de forma positiva a distribuição de recursos em saúde. (11-12

Existem poucos estudos relativos à realidade nacional atual que analisem os fatores que influenciam a duração das consultas e a opinião de médicos e utentes quanto à adequação dessa duração. Sendo o consumo de cuidados de saúde e a forma como se vê esse consumo influenciados pela cultura da população e pela própria organização dos cuidados de saúde, é fundamental realizar estudos nacionais sobre estas temáticas.

Assim, este estudo tem como objetivos: 1) investigar fatores passíveis de influenciar a duração da consulta; 2) avaliar a perceção dos utentes sobre a duração da consulta; 3) comparar a opinião do médico e do utente quanto à adequação da duração da consulta e os motivos levantados por ambos para consultas com duração considerada como desadequada; 4) avaliar o impacto da duração da consulta na satisfação do médico e do utente com a mesma.

Método

Estudo transversal, com componente quantitativa e qualitativa, que decorreu entre janeiro e março de 2022 na USF Ramada. A USF Ramada é uma USF modelo B localizada na Área Metropolitana de Lisboa, abrangendo um meio urbano. Esta unidade foi criada em 2010, existindo um acompanhamento regular e longitudinal dos utentes e uma relação médico-doente bem estabelecida.

Com base no número de consultas médicas presenciais realizadas nessa unidade em 2021 (33.216 consultas) obteve-se, com um intervalo de confiança de 95% (IC95%) e margem de erro de 5%, uma dimensão amostral de 380 consultas (cálculo efetuado através da plataforma online Comentto©). Tratando-se de um estudo baseado inteiramente na resposta a questionários e de forma a assegurar a representatividade da amostra em caso de não resposta aos mesmos, os investigadores decidiram aumentar a amostra em 20% (n=456). Eram elegíveis para o estudo todas as consultas médicas presenciais realizadas pelos oito médicos especialistas em medicina geral e familiar (MGF) desta unidade, tanto de tipologia programada como não programada, ao longo de todo o horário de funcionamento (8h-20h). Foram excluídas as consultas médicas presenciais realizadas fora das instalações da USF Ramada, como as visitações domiciliárias e consultas a utentes sem médico de família ou a doentes respiratórios.

Como fonte de informação foram criados questionários para médicos e utentes, submetidos previamente a pré-teste. Através do questionário médico foram obtidas as variáveis: 1) sexo do médico; 2) se o médico era orientador de formação; 3) qual a tipologia da consulta; 4) se o utente pertencia à lista de utentes do médico; 5) se o principal motivo de consulta era novo ou conhecido; 6) número de problemas abordados em consulta; 7) número de problemas crónicos codificados no processo do utente; 8) se o utente apresentava problemas do foro mental ou social; 9) se foi agendada nova consulta e em que intervalo de tempo; 10) quantas consultas médicas presenciais na USF o utente teve nos últimos 12 meses; 11) qual a duração da consulta (objetivada pelo médico através da marcação de início de consulta da plataforma informática SClínico); 12) a opinião acerca da duração da consulta; 13) os motivos para considerar a duração da consulta como insuficiente ou excessiva; 14) a satisfação global com a consulta. Através do questionário do utente extraíram-se as variáveis: 1) sexo do utente; 2) idade do utente; 3) escolaridade do utente; 4) duração subjetiva da consulta; 5) opinião acerca da duração da consulta; 6) motivos para considerar a duração da consulta como insuficiente ou excessiva; 7) satisfação global com a consulta. Todas as variáveis foram recolhidas através dos questionários, não tendo havido consulta de processos clínicos por parte da equipa de investigação.

A seleção das consultas a analisar foi realizada por conveniência, de forma cega para os intervenientes, que só tomavam conhecimento da inclusão da sua consulta no estudo após o término da mesma. À saída do utente do gabinete era-lhe explicado o estudo e fornecido o consentimento informado e o questionário, identificado por um código, que era preenchido de forma anónima pelo próprio ou por acompanhante em caso de utentes menores ou analfabetos. Aos médicos era também solicitado o preenchimento de um questionário, identificado por um código distinto.

De forma a diminuir possíveis vieses, o tamanho amostral foi dividido por proporção de tipologia de consulta (com base na proporção atual de consultas) e distribuído igualmente entre todos os médicos; a análise de cada tipo de consulta de cada médico ocorreu em pelo menos dois dias distintos. Para minimizar a ocorrência de vieses de memória, os médicos eram incentivados a preencher o seu questionário imediatamente após a consulta.

Apenas as consultas em que houve resposta a ambos os questionários - do médico e do utente - foram analisadas. Relativamente aos dados omissos, a sua existência é explícita em cada análise, não havendo exclusão de dados. No que concerne à análise estatística recorreu-se ao IBM Software Package for Social Science (SPSS Statistics®), v. 25 para Microsoft Windows ® . Para o estudo descritivo procedeu-se à análise de frequências para os dados categóricos e de medida de tendência central para os dados quantitativos (apresentando-se a média e desvio-padrão em caso de distribuição normal ou a mediana e amplitude interquartil em caso de distribuição não normal). Na estatística inferencial utilizou-se o teste do Qui-Quadrado ou o teste de Fisher para a avaliação de associações entre variáveis categóricas independentes (comparação entre a opinião do médico e do utente sobre a duração da consulta e entre a satisfação global do médico e do utente com a consulta). Para a análise de associações entre variáveis numéricas e categóricas recorreu-se, consoante a normalidade da amostra, ao teste T de Student para amostras independentes ou teste U de Mann-Whitney, bem como ao teste de Kruskal-Wallis para comparações com mais de dois grupos (avaliação da associação entre a duração da consulta e sexo do médico, se o médico era orientador de formação, sexo e escolaridade do utente, problemas crónicos do utente, existência de problemas mentais ou sociais, se o utente pertencia à lista do médico, se foi abordado um novo problema na consulta, se houve agendamento de próxima consulta e satisfação global com a consulta). Para a avaliação de associações entre variáveis numéricas utilizou-se a correlação (comparação entre a duração da consulta objetivada pelo médico e a percebida pelo utente, associação entre a duração da consulta e a idade do utente, número de consultas médicas presenciais nos últimos doze meses e número de problemas abordados na consulta). Para todas as análises inferenciais considerou-se um nível de significância de p<0,05 e um IC95%. No que se refere à análise qualitativa seguiu-se um design convergente. Após a compilação das respostas realizou-se uma análise temática de forma independente por dois investigadores, com um terceiro elemento a resolver as divergências.

O presente estudo mereceu o parecer positivo da Comissão de Ética para a Saúde da ARSLVT (n.º 2068/CES/2022).

Resultados

Das 456 consultas selecionadas, 53 foram excluídas por falta de resposta ao questionário do médico e/ou do utente. Foram analisadas 403 consultas, com a distribuição indicada na Tabela 1. Destas, 57,1% (n=230) foram realizadas por médicos do sexo feminino e 38,5% (n=155) por médicos orientadores de formação.

Tabela 1 Caracterização das consultas e dos seus intervenientes 

Legenda: AIQ = Amplitude interquartil.

Relativamente aos utentes, apresentaram uma mediana de 54,0 [32] anos; 65,1% (n=261) eram do sexo feminino e a maioria tinha o ensino secundário ou superior concluído. No que concerne à lista de problemas, 50,1% (n=202) dos utentes tinham dois a quatro problemas crónicos, sendo que 32,5% (n=131) tinham problemas do foro psicossocial. Os utentes observados tinham uma mediana de 2,0 [3] consultas médicas presenciais nos últimos 12 meses.

Em 92,6% (n=373) das consultas, os utentes pertenciam à lista do médico que a estava a realizar. Foram abordados novos problemas em 44,4% (n=179) das consultas e a mediana de problemas abordados foi de 2,0 [2]. Em 50,4% (n=203) das consultas foi agendada consulta subsequente (Tabela 1).

Duração da consulta e a sua adequação

As consultas analisadas apresentaram uma mediana de 20,0 [5] minutos, com a distribuição indicada na Tabela 2. Os utentes percecionaram uma duração mediana de 20,0 [15] minutos, verificando-se uma correlação positiva fraca entre a duração das consultas e a duração percecionada pelo utente (r=0,440; p<0,001).

Tabela 2 Duração das consultas e opinião de médicos e utentes quanto à sua adequação 

Legenda: AIQ = Amplitude interquartil; ‡ Teste x2.

Os médicos consideraram a duração da consulta suficiente em 89,3% (n=360) dos casos, proporção essa que foi significativamente superior entre os utentes (97,5%; n=393; p<0,001).

Os médicos consideraram a duração da consulta como insuficiente em 10 casos, tendo sido referidos nove motivos, sendo o mais frequente o utente com multimorbilidade (55,6%; n=5) (Figura 1). Os utentes consideraram a duração insuficiente em seis consultas, tendo referido o motivo em duas delas, nomeadamente por existir uma “falta de tempo para os profissionais” e por “a minha consulta foi interrompida por baterem à porta”.

Figura 1 Motivos apontados pelos médicos para consultas com duração insuficiente. 

Os médicos consideraram excessiva a duração da consulta em 33 casos. Dos 38 motivos referidos, os principais diziam respeito aos problemas apresentados pelo utente (39,5%; n=15): existência de problemas sociais, número elevado de problemas (“demasiados problemas para o tempo disponível”) ou patologia clínica complexa, quer por considerarem ter despendido demasiado tempo com problemas já conhecidos (“demasiado tempo para um quadro clínico que se mantém e já está devidamente orientado”; “queixas antigas”) quer por se tratar de casos complexos (“necessidade de explicar a complexidade da doença crónica”). Em 26,3% (n=10) dos casos, a perceção de duração excessiva da consulta por parte dos médicos prendeu-se com a abordagem de problemas não relacionados com a mesma, quer pela tentativa por parte do utente de abordar problemas de saúde de outros familiares, quer pela tentativa de abordar problemas que saíam do âmbito da consulta (“o utente abordou assuntos desadequados”; “motivo de consulta não urgente e inapropriado para consulta aberta”, “o utente tinha dúvidas fora do âmbito da consulta”). O terceiro motivo mais apontado por parte dos médicos dizia respeito ao perfil de “doente difícil” (“utente reverberativo em relação às queixas”; “utente difícil”; “utente ansiosa”) (Figura 2). Os utentes consideraram excessiva a duração de seis consultas, sendo que o único motivo referido foi “alarguei-me um bocadinho”.

Figura 2 Motivos apontados pelos médicos para consultas com duração excessiva. 

Duração da consulta e a satisfação dos intervenientes

Globalmente, os médicos sentiram-se insatisfeitos ou pouco satisfeitos com 10,1% (n=41) das consultas, satisfeitos com 64,8% (n=261) das consultas e muito satisfeitos com 3,5% (n=14) destas. Relativamente aos utentes, apenas 0,5% (n=2) se sentiram insatisfeitos com a consulta e 66,2% (n=261) ficaram muito satisfeitos com a mesma (Figura 3). Assim, os utentes demonstraram uma satisfação global com a consulta superior à dos médicos (Teste (2; p=0,006).

Figura 3 Satisfação global de médicos e utentes com a consulta. 

Em ambos os casos, a duração da consulta pareceu influenciar a satisfação com a mesma (Figura 4). No caso dos médicos, a satisfação era superior em consultas com duração intermédia de 15 a 20 minutos, associando-se durações de 30 minutos a uma maior insatisfação (teste Kruskal-Wallis; p<0,001). Relativamente aos utentes, quanto maior a duração percecionada da consulta maior era a sua satisfação com a mesma (teste Kruskal-Wallis; p=0,004).

Figura 4 Duração da consulta e satisfação global com a mesma. 

Possíveis fatores influenciadores da duração da consulta

Fatores associados ao médico

Verificou-se que os médicos do sexo feminino apresentavam uma duração de consulta significativamente superior à dos médicos do sexo masculino (p<0,001). Relativamente aos médicos orientadores de formação não se objetivaram diferenças significativas na duração das consultas face aos restantes médicos (p=0,520).

Fatores do utente

Constatou-se que o sexo, a idade e a escolaridade do utente não se associavam a alterações significativas na duração da consulta.

Os utentes com mais problemas crónicos tinham consultas significativamente mais longas (p=0,006), mas não se estabeleceu uma associação entre a existência de problemas psicossociais (p=0,080) ou maior número de consultas médicas presenciais nos últimos 12 meses (p=0,747) e a duração da consulta.

Fatores da consulta

Verificou-se que as consultas que eram realizadas a utentes da lista do próprio médico eram significativamente mais longas (p<0,001). De igual modo, objetivou-se uma correlação positiva fraca entre o número de problemas abordados na consulta e a duração da mesma (r=0,370; p<0,001). Na totalidade das consultas, a abordagem de um novo problema não se associou a uma maior duração da consulta (p=0,112); no entanto, quando analisadas apenas as consultas programadas, a abordagem de um novo problema associou-se a uma duração significativamente superior da consulta (p<0,001) (Tabela 3).

Tabela 3 Fatores influenciadores da duração das consultas 

Legenda: AIQ = Amplitude interquartil; N.º = Número; * Teste U de Mann-Whitney; § Teste de Kruskal-Wallis; # Correlação de Pearson.

As consultas em que houve lugar a agendamento de consulta subsequente, independentemente do intervalo até à próxima consulta, eram significativamente mais longas (p<0,001).

Discussão

O presente estudo analisou uma amostra representativa das consultas anuais na USF Ramada. Esta representatividade é corroborada pelas características sociodemográficas dos utentes deste estudo, que são sobreponíveis às da população de utentes seguida nesta unidade. (13

À semelhança do verificado noutros estudos, os utentes tendem a percecionar uma duração de consulta superior à do médico e sentem-se mais satisfeitos com consultas mais longas. (5,8-9 O que pode explicar, pelo menos em parte, o facto de se sentirem satisfeitos com a consulta e de considerarem como adequada a sua duração numa proporção superior à dos médicos. Entre os utentes que consideraram desadequada a duração da consulta, poucos foram os que manifestaram o motivo para tal opinião, pelo que não é possível extrair ilações para este fenómeno.

Apesar de a maioria dos médicos se sentir satisfeita com a consulta e considerar adequada a sua duração, contrariamente ao esperado, (5,9 os médicos sentiram-se mais satisfeitos com consultas de duração intermédia e, entre os médicos insatisfeitos com a duração, a maioria classificou-a como excessiva. Esta diferença entre os dados encontrados no presente estudo e o descrito na literatura poderá prender-se com as características organizacionais dos CSP portugueses. Ao contrário da realidade noutros países, em que os CSP são liberais e cada centro tem autonomia organizativa, em Portugal os tempos de consulta estão relativamente bem definidos e atrasos numa consulta implicam atrasos ou roubo de tempo de consulta nas subsequentes ou sobrecarga de trabalho para o médico.

A multimorbilidade do utente foi paradoxalmente o principal motivo apresentado pelos médicos para considerarem a duração da consulta como insuficiente e como excessiva. No presente estudo verificou-se que mais problemas abordados se associavam a uma maior duração da consulta e que as consultas dos utentes com mais problemas crónicos eram significativamente mais longas, o que está em linha com o descrito na literatura. (5-7 No entanto, não se objetivou uma relação entre o número de consultas médicas no ano anterior e a duração da consulta. De igual modo, as consultas em que houve lugar a agendamento de consulta subsequente demonstraram ser tendencialmente mais longas. Estes factos indiciam o grande impacto do doente complexo na duração das consultas e consumo das mesmas. Sendo as consultas médicas um recurso limitado, este fenómeno em que a duração da consulta não diminui por ser um doente conhecido (e já abordado múltiplas vezes), como descrito na literatura, (10,12 levanta sérios problemas na gestão de recursos. Pode justificar a perceção dos médicos de que o tempo de consulta foi insuficiente para abordar todos os problemas que necessitavam de atenção. Efetivamente, a evidência diz que tempos de consulta mais curtos podem influenciar negativamente a qualidade da mesma e associam-se a sobreutilização de antibióticos, polimedicação, menor identificação de problemas, menor disponibilidade dos médicos para prestar cuidados de forma holística e burnout do profissional. (2,3,9-12 No entanto, os médicos reportaram também uma desadequação entre o número de problemas que o doente esperava abordar na consulta e o que era possível no tempo disponível, principalmente na patologia crónica já conhecida e devidamente orientada, o que evidencia diferenças na agenda do médico e do utente face à consulta e pode justificar parte das discrepâncias entre a satisfação de ambos com a mesma. A interrupção da consulta foi um motivo assinalado pelos utentes para uma duração de consulta insuficiente e pelos médicos como um motivo para consultas com duração excessiva, demonstrando que é um fator que pode influenciar a duração da consulta e ter distintos impactos nos intervenientes, merecendo ser caracterizada em estudos futuros para se perceber este fenómeno.

As consultas realizadas a utentes da lista do próprio médico eram significativamente mais longas. O que pode estar relacionado com o facto da maior parte das consultas realizadas por médicos, que não o assistente do utente, terem como objetivo a resolução apenas de patologia aguda, apresentando tipicamente uma duração mediana inferior, e as realizadas pelo médico assistente se tratarem, na sua maioria, de consultas programadas com o objetivo de abordar problemas crónicos. Para além disso, há fatores da relação médico-utente que podem condicionar a duração da consulta como, por exemplo, o de não existir proximidade para expressar todo o tipo de problemas e dúvidas ou o facto de não serem abordados problemas de saúde de outros elementos do agregado familiar por não serem conhecidos pelo médico. Estas hipóteses são reforçadas pelo facto de, na totalidade das consultas, a abordagem de um novo problema não se associar a uma maior duração da consulta. No entanto, quando analisadas apenas as consultas programadas, a abordagem de um novo problema já se associa a uma duração superior, o que demonstra que o tipo de problema ou a sua forma de apresentação nas consultas programadas e, portanto, conduzidas pelo médico de família do utente, é distinto do das consultas de doença aguda. Ao contrário do indicado em outros trabalhos, não se estabeleceu uma associação entre a existência de problemas psicossociais e a duração da consulta, mas o facto dos médicos os apontarem como um dos principais motivos de consulta com duração excessiva fortalece a ideia de que podem ser um fator considerável na duração das mesmas. (5-7

Em relação às características dos intervenientes, o facto de médicos do sexo feminino conduzirem consultas mais longas está em linha com o descrito noutros estudos; no entanto, e contrariamente ao verificado na literatura, as características dos utentes não pareceram influenciar a duração da consulta. (5-7 Na USF Ramada existem médicos orientadores de formação de médicos internos de formação específica em MGF. Tendo em conta a atividade formativa é frequente a necessidade de esclarecimento de dúvidas destes médicos com os seus orientadores de formação, muitas vezes com a necessidade de interrupção das consultas dos mesmos, o que poderia culminar numa maior duração das suas consultas. Ainda assim, não se objetivaram diferenças na duração das consultas face aos restantes médicos. Contudo, isto pode estar relacionado com o facto de os médicos internos terem sido os responsáveis pela recolha de dados do presente estudo e, por isso, nem sempre terem estado a realizar consultas, o que pode ter enviesado estes resultados.

Reconhecem-se algumas limitações a esta investigação. A USF Ramada é uma USF modelo B, em que existe um acompanhamento regular e longitudinal dos utentes e uma relação médico-utente bem estabelecida, pelo que os resultados necessitam de ser testados noutras realidades. Para além disso, estes fatores promovem uma maior satisfação por parte dos médicos e utentes, o que pode condicionar a avaliação da duração da consulta e satisfação global, tanto pelo médico como pelo utente, introduzindo um viés no estudo. Relativamente ao desenho do estudo, a resposta aberta em questionários potencia a não resposta às questões e não é o método ideal para a obtenção de dados qualitativos. Contudo, os dados obtidos poderão ser importantes para levantar hipóteses e direcionar estudos qualitativos subsequentes. Apesar de anónimo e preenchido em sala à parte para garantir confidencialidade e direito à não resposta, é possível que os utentes se pudessem sentir compelidos a reportar uma maior satisfação com a consulta. No entanto, e visto que os resultados conseguidos se encontram em linha com o descrito na literatura, considera-se que esta hipótese é pouco plausível. Por último, a duração da consulta utilizada no presente estudo foi a reportada pelos médicos, que deveriam ser objetivos na sua quantificação. No entanto, e visto que o médico só tinha conhecimento da inclusão da consulta no estudo após o término da mesma, é possível que nem sempre a duração apontada pelo médico fosse exata, pelo que seria importante que em próximos estudos fosse a equipa de investigação a responsável pela medição do tempo de consulta. Assim, considera-se serem necessários estudos multicêntricos que incluam distintas tipologias de unidades de CSP, estudos qualitativos sobre os fatores que parecem influenciar a duração das consultas e estudos que avaliem outros fatores, como as interrupções da consulta.

Contudo, os dados apresentados não são de menosprezar. Poucos são os estudos nacionais que analisam os fatores que influenciam a duração das consultas nos CSP e avaliam as perceções de médicos e doentes sobre este parâmetro. Se é expectável que algumas variáveis sejam transversais a diferentes realidades, outras podem ser dependentes dos modelos organizativos dos CSP, pelo que é fundamental estudar a realidade nacional. Ainda que os resultados apresentados careçam de validação em outras unidades e distintos modelos organizativos, o facto dos resultados obtidos serem representativos das consultas anuais desta USF e de estarem maioritariamente de acordo com os reportados noutros estudos, pode presumir que poderão ser utilizados como indícios para estudos e medidas futuras.

A MGF apresenta-se cada vez mais desafiante e o presente estudo demonstra a complexidade da gestão da duração da consulta, reforçando a importância da autonomia da MGF e das unidades de saúde na gestão das agendas e na duração de consulta. Salienta ainda a importância de alocar mais tempo de consulta a utentes com multimorbilidade ou até a necessidade da criação de uma consulta, com duração superior, para doentes complexos. Assim, e apesar de uma revisão sistemática apresentada pela Cochrane Database considerar não existir ainda evidência suficiente para afirmar que um aumento do tempo de consulta é benéfico para o utente, (14 os dados obtidos revelam que a duração da consulta tem um papel importante na satisfação dos seus intervenientes e que, pelo menos em alguns contextos, poderá fazer sentido o aumento ou a flexibilização do tempo de consulta.

Conclusão

Os utentes percecionam uma duração de consulta superior à real, são menos críticos quanto à sua adequação e sentem-se mais satisfeitos com a consulta do que os médicos. Consultas realizadas pelo médico de família ou por médicos do sexo feminino, utentes com mais problemas crónicos, abordagem de mais problemas na consulta ou a abordagem de um novo problema em contexto de consulta programada associam-se a uma duração superior da consulta.

A duração da consulta tem um papel importante na satisfação dos seus intervenientes. A autonomia das unidade e dosprofissionais para adaptarem os tempos de consulta em determinados contextos poderia aumentar a satisfação de médicos e utentes.

Agradecimentos

Os autores agradecem aos médicos especialistas em medicina geral e familiar da USF Ramada por aceitarem colaborar com este estudo.

Contributo dos autores

Conceptualização: CNS, BFP, MM, FF, JDN. Metodologia: CNS, BFP, FF. Software: CNS. Análise formal: CNS, BFP. Investigação: CNS, BFP, MM, FG, MJV, BP. Redação do draft original: CNS, BFP, MM, FG, FF. Redação, revisão e validação do texto final: CNS, BFP, MM, FG, FF, MJV, BP, JDN. Supervisão: CNS. Gestão do projeto: CNS.

Conflito de interesses

Os autores confirmam não existirem conflitos de interesse

Financiamento

O estudo não foi objeto de qualquer financiamento.

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Recebido: 21 de Junho de 2022; Aceito: 25 de Abril de 2023

Endereço para correspondência Catarina Neves Santos E-mail: catarinansantos90@gmail.com

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