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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.39 no.6 Lisboa dez. 2023  Epub 31-Dez-2023

https://doi.org/10.32385/rpmgf.v39i6.13760 

Estudos originais

Avaliação da desprescrição nos cuidados de saúde primários, sob a perspetiva dos médicos

Evaluation of deprescribing in primary care, from a medical perspective

Mariana B. Oliveira1 
http://orcid.org/0000-0003-2647-8566

Catarina Campos1 

Joana Lascasas2 

Vera Ribeiro da Silva1 

1. USF Foz do Minho, ULS do Alto Minho. Caminha, Portugal.

2. USF Terras da Maia, ACeS Grande Porto III - Maia/Valongo. Maia, Portugal.


Resumo

Introdução:

A desprescrição terapêutica consiste na identificação e proposta de descontinuação de fármacos cujos danos superam os benefícios, sendo esta complexa gestão geralmente atribuída ao médico de família (MF).

Objetivos:

Determinar a autoperceção dos MF quanto às suas práticas de desprescrição, bem como as barreiras e fatores facilitadores identificados pelos mesmos. Como objetivo secundário pretendeu-se a sensibilização dos MF para a desprescrição terapêutica.

Método:

Estudo observacional e descritivo, no qual foi aplicado um questionário a internos de 3.º e 4.º anos e MF num Agrupamento de Centros de Saúde da região norte de Portugal. Foi aprovado pela Comissão de Ética e a análise estatística realizada no Microsoft Excel®.

Resultados:

Obtiveram-se 63 respostas, sendo 68,3% mulheres e a idade média 42,8 anos. Dos inquiridos, 81% eram especialistas e 57,1% e 14,3% tinham formação em cuidados paliativos e geriatria, respetivamente. Sobre a desprescrição, 98% observavam frequentemente doentes com multimorbilidade e 97% com polimedicação. No entanto, 49,2% da amostra referiu aplicar a desprescrição apenas ocasionalmente. Os fármacos mais frequentemente desprescritos foram anti-inflamatórios não esteroides, estatinas e bifosfonatos. As características do utente consideradas muito importantes para a desprescrição foram: qualidade (79,4%) e esperança de vida (71,4%), deterioração cognitiva (60%) e dependência física (49,2%). Os riscos (65,1%) e benefícios do fármaco (52,4%) e a existência de guidelines (46%) foram considerados os fatores (alheios ao doente) mais importantes para a prática da desprescrição. A barreira mais frequentemente observada foi o tempo limitado para revisão terapêutica (41,3%), enquanto a má adesão terapêutica foi o fator facilitador reconhecido ocasionalmente pela maioria (69,8%).

Conclusão:

Doentes com critérios de desprescrição são frequentemente reconhecidos pelos MF, escasseando ainda alguma proatividade nesta prática. A existência de guidelines foi considerada um fator muito importante e o tempo limitado uma barreira frequente. Assim, criar linhas orientadoras e consultas específicas poderão ser estratégias de melhoria.

Palavras-chave: Desprescrição; Polimedicação; Multimorbilidade; Cuidados de saúde primários; Médico de família

Abstract

Introduction:

Therapeutic deprescribing consists of identifying and proposing the withdrawal medicines whose harms outweigh their benefits, and this complex management is usually part of the family physician (FP) role.

Objectives:

Determine FPs’ self-perceptions of their deprescribing practices, as well as barriers and facilitators. A secondary aim was to raise FP awareness of deprescribing.

Methods: Observational and descriptive study in which FPs and 3rd and 4th-year family medicine residents in a northern region of Portugal completed an online survey. The study was approved by the ethics committee, and statistical analysis was performed in Microsoft Excel®.

Results:

There were 63 responses, of which 68.3% were female, with a mean age of 42.8 years. In the sample, 81% were specialists and 57.1% and 14.3% had training in palliative care and geriatrics respectively. Regarding deprescribing, 98% frequently saw patients with multimorbidity and 97% with polypharmacy. However, 49.2% of respondents reported deprescribing only occasionally. The most commonly deprescribed drugs were non-steroidal anti-inflammatory drugs, statins, and bisphosphonates. Patient characteristics considered very important for deprescribing were: quality of life (79.4%), life expectancy (71.4%), cognitive orientation (60%), and physical dependence (49.2%). The risks (65.1%) and benefits (52.4%) of the drug and the existence of guidelines (46%) were considered the most important factors (not related to the patient) in the decision to deprescribe. The most frequently observed barrier was limited time for therapeutic review (41.3%), while poor adherence was occasionally recognized as a facilitator by the majority (69.8%).

Conclusion:

Patients with deprescribing criteria are often recognized by the FP, but there is still a lack of proactivity in this practice. The existence of guidelines was considered a very important factor and limited time was a frequent barrier. Therefore, creating guidelines and specific consultations could be strategies for improvement.

Keywords: Deprescribing; Polypharmacy; Multimorbidity; Primary health care; Family physician

Introdução

A polimedicação é o termo utilizado para definir o consumo de múltiplos fármacos, geralmente cinco ou mais, incluindo também medicamentos de venda livre.1 Consequentemente, pode ser responsável pelo aparecimento de efeitos adversos, agravamento da deterioração cognitiva, aumento do risco de quedas, diminuição da adesão terapêutica, aumento dos custos de saúde, aumento da procura de cuidados médicos por iatrogenia medicamentosa, necessidade de hospitalização ou até morte. É particularmente importante realçar que o risco de efeitos adversos aumenta com o número de fármacos prescritos, sendo de 13% com a toma de dois fármacos e aumentando para 82% com a toma de sete ou mais. (1

Num estudo realizado no Serviço de Cuidados Paliativos do Instituto Português de Oncologia (IPO) do Porto, em 2016, (2 verificou-se que doentes com sobrevida média de 15 dias apresentavam à admissão no serviço prescrição de fármacos que preenchiam critérios de medicamentos potencialmente fúteis (segundo os critérios de Fede et al.): antidemenciais (100%), estatinas (97%), protetores gástricos (50%), anti-hipertensores (27%), bifosfonatos (26%) e antidiabéticos (1%).

Assim, com o conceito da polimedicação surge a necessidade da desprescrição. Esta engloba um processo sistemático de identificação e descontinuação de fármacos cujos danos superam os benefícios, considerando o contexto particular do doente: nível de funcionamento, valores e preferências, tempo de sobrevida esperado pelo médico e objetivo terapêutico individual. (1 Identificam-se como doentes que podem beneficiar com a desprescrição aqueles com curta esperança de vida, com multimorbilidade (≥2 doenças crónicas), idosos (>75 anos) com fragilidade e doentes com função renal ou hepática em declínio com mau prognóstico. (3

Algumas das vantagens da desprescrição incluem um menor número de referenciações a unidades de cuidados intensivos, diminuição da mortalidade a um ano e ainda redução do risco de quedas para metade. (1 Contudo, o efeito adverso mais comum consiste na exacerbação da patologia subjacente, principalmente no caso de fármacos cardiovasculares (para hipertensão arterial, angina e insuficiência cardíaca), seguida de fármacos do sistema nervoso central (principalmente benzodiazepinas). (1 Num estudo em que foram descontinuados 58% dos fármacos, apenas 2% foram reintroduzidos pela recorrência dos sintomas que motivaram a prescrição inicial e 88% dos doentes reportaram uma melhoria global na saúde. (4

Na literatura estão identificadas inúmeras barreiras à desprescrição em quatro níveis: cultural, organizacional, interpessoal e individual (Tabela 1). (5 É, assim, um desafio diário para os médicos de medicina geral e familiar (MGF) a tentativa de ultrapassar estas dificuldades. Numa abordagem individualizada, o médico de família (MF) deve priorizar a revisão terapêutica dos doentes com multimorbilidade e envolver o doente na decisão. (5 Os fatores facilitadores do processo da desprescrição identificados na literatura são expostos na Tabela 1, sendo exemplos: a confiança do utente no médico, a experiência e conhecimento do médico acerca dos riscos-benefícios dos fármacos e a redução dos custos e efeitos laterais da medicação para o utente. (5-6

Tabela 1 Barreiras e fatores facilitadores no processo de desprescrição1,5-6  

Legenda: CSP = Cuidados de saúde primários; MF = Médico de família.

Assim, como etapas da desprescrição sugere-se: (1,3 1. Recolher história clínica do utente (incluindo contexto, prognóstico e terapêutica); 2. Identificar medicamentos potencialmente inapropriados: anti-inflamatórios não esteroides (AINEs), especialmente em associação com diuréticos; estatinas; antiagregantes ou hipocoagulantes; fármacos cardiovasculares, especialmente inibidores da enzima conversora da angiotensina (IECAs) em doentes com disfunção renal; fármacos hipoglicemiantes; bifosfonatos; 3. Verificar se esses fármacos podem ser reduzidos ou suspensos e partilhar com o doente; 4. Planear o processo de desprescrição de acordo com as seguintes premissas: considerar suspender imediatamente o fármaco ou reduzir gradualmente; geralmente os fármacos são desprescritos individualmente, mas nos últimos dias de vida pode ser apropriado interromper múltiplos medicamentos simultaneamente; se fármacos críticos (como na doença de Parkinson) não forem tolerados por via oral considerar vias alternativas; 5. Documentar o raciocínio da desprescrição e discutir com outros profissionais de saúde, o doente e/ou o cuidador; 6. Monitorizar o benefício ou dano do doente após suspensão ou redução de cada medicamento.

Portanto, a desprescrição é um processo personalizado, dependente do contexto do doente, da doença e dos fármacos, que visa a melhoria da qualidade de vida. Assim, é importante a sensibilização dos médicos de MGF para esta questão, de modo a promover uma prescrição individualizada e integrativa da visão holística do utente.

Os estudos existentes nesta área avaliam práticas de desprescrição noutros países, conhecendo-se pouco da sua aplicação em Portugal. Assim, este trabalho de investigação pretendeu caracterizar a perspetiva dos MF de uma região do norte de Portugal relativamente à desprescrição ao nível da MGF. Os objetivos principais foram determinar a autoperceção dos MF quanto às suas práticas de desprescrição, assim como as barreiras e fatores facilitadores identificados pelos mesmos. Como objetivo secundário pretendeu-se a sensibilização dos MF para a desprescrição terapêutica.

Método

Foi realizado um estudo de investigação, descritivo, observacional e transversal, ao nível dos cuidados de saúde primários (CSP) da Unidade Local de Saúde do Alto Minho (ULSAM). A população-alvo do estudo incluiu os MF pertencentes ao corpo clínico do Agrupamento de Centros de Saúde (ACeS) e os médicos internos de formação especializada (IFEs) de 3.º e 4.º anos de MGF. A amostra estudada englobou os médicos que aceitaram participar no estudo, respondendo à totalidade do questionário disponibilizado para o efeito.

Na ausência de um método de avaliação validado sobre o tema em estudo, os autores elaboraram um questionário com base na revisão bibliográfica realizada7-9 (Anexo 1), nomeadamente na ferramenta utilizada no estudo LESS suíço, semelhante a este. (8 O questionário elaborado englobava duas partes. A primeira, destinada à caracterização do médico prescritor, incluiu as seguintes variáveis: idade, género, categoria profissional, tempo de atividade laboral e formação (avançada ou não) na área de cuidados paliativos e/ou geriatria. A segunda parte focou-se na avaliação da desprescrição realizada, incluindo questões relacionadas com a autoavaliação do médico em relação à sua prática, os critérios considerados no ato de desprescrição e as barreiras e fatores facilitadores identificados pelo próprio. O questionário terminava adicionalmente com uma pergunta única de resposta aberta e opcional sobre fatores adicionais considerados no processo de desprescrição.

O questionário foi submetido a um teste piloto realizado aos seis MF pertencentes à Unidade de Saúde Familiar (USF) dos autores com o intuito de avaliar a sua fiabilidade e clareza. Deste modo, previamente à aplicação efetiva no estudo, foi realizada a correção e revisão da formulação das frases de modo a garantir a compreensão das questões pelos inquiridos. Adicionalmente, para avaliar a consistência interna do questionário, os autores submeteram as variáveis ordinais em estudo à fórmula do coeficiente do Alpha de Cronbach. O resultado foi muito positivo, com um coeficiente de 0,88, o que revela uma boa consistência do questionário.

Mediante colaboração do Gabinete de Comunicação da ULSAM, em abril de 2022, o questionário final de autopreenchimento anónimo foi enviado em formato online Google Forms® à população-alvo através do correio eletrónico profissional, tendo alcançado um n total de 246 médicos. Após três meses, perante a baixa taxa de adesão observada, os autores tiveram necessidade de realizar um segundo convite para participação no estudo, mediante novo envio por correio eletrónico. O questionário esteve disponível para preenchimento ao longo de seis meses, tendo sido encerrada a submissão de novas respostas em setembro de 2022.

Os dados recolhidos foram arquivados numa base de dados informática em Microsoft Excel®, protegida por palavra-passe, criada para o efeito. A análise dos dados obtidos foi realizada através do mesmo programa. À exceção da idade, para a qual foi calculada a média, nas restantes variáveis foram avaliadas as frequências relativas e absolutas de cada resposta. Para descrever a importância de determinadas características inquiridas definiu-se como respostas «muito importante», «importante», «ligeiramente importante» e «não importante». Relativamente à frequência de algumas variáveis definiu-se «frequentemente» como ≥2x/semana, «ocasionalmente» como 2x/mês a 1x/semana, «raramente» como ≤1x/mês e «nunca» como acontecimento nulo.

O presente estudo obteve parecer favorável (n.º 51/2021) pela Comissão de Ética para a Saúde da ULSAM. Ao preencher o questionário, os participantes deram consentimento informado de forma tácita. O trabalho não foi submetido à Comissão Nacional de Proteção de Dados, uma vez que os questionários eram anonimizados.

Resultados

Caracterização da amostra

Obteve-se um total de 63 respostas (Tabela 2), sendo a maioria do sexo feminino, com uma média de idades de 42,8 anos. Relativamente à categoria profissional, a maioria eram especialistas, dos quais 58,8% tinham mais de dez anos de atividade profissional como MF. No que diz respeito à formação pós-graduada dos especialistas, 29 (56,9%) apresentavam formação em cuidados paliativos, dos quais sete (24,1%) tinham formação avançada (pós-graduação, mestrado ou doutoramento) e nove (17,6%) tinham formação em geriatria, sendo avançada em cinco (55,6%). No grupo dos IFEs, sete (58,3%) apresentavam formação em cuidados paliativos, sendo em três (42,9%) formação avançada e nenhum em geriatria.

Tabela 2 Caracterização da amostra 

Legenda: n = Número absoluto; IFEs = Internos de formação especializada.

Avaliação da desprescrição

Relativamente à periodicidade da observação de doentes com características propensas à aplicação da desprescrição (Tabela 3), 62 (98%) e 61 (97%) contactam frequentemente com doentes com multimorbilidade (≥2 doenças crónicas) e polimedicados (≥5 fármacos por dia), respetivamente. Os idosos (>75 anos) que são frágeis, ou seja, que cumprem alguns dos seguintes critérios: idas frequentes ao serviço de urgência, albumina <2,5g/dL, perda de peso não intencional, úlceras de decúbito ou confinamento ao leito/domicílio, são observados, pelo menos ocasionalmente, por 51 dos participantes no estudo (81,0%). A maioria dos médicos considerou observar raramente os doentes pertencentes aos restantes grupos avaliados. Ao analisar os resultados separadamente, de acordo com a categoria profissional dos inquiridos, verificou-se discrepância na perceção de dois critérios. Os idosos (>75 anos) frágeis são observados frequentemente, de acordo com a maioria dos IFEs (n=7, 58,3%), sendo que aproximadamente metade dos especialistas (n=25, 49,1%) referiram ver estes doentes apenas ocasionalmente. Segundo seis dos IFEs (50%), os utentes com curta esperança de vida são avaliados ocasionalmente, enquanto 27 dos especialistas (52,9%) apenas avaliam estes doentes raramente.

Tabela 3 Periodicidade com que os inquiridos observam doentes com características propensas à aplicação da desprescrição, assim como barreiras e fatores facilitadores da desprescrição 

Legenda: AT = Amostra total; DPOC = Doença pulmonar obstrutiva crónica; E = Especialistas; ERPIs = Estruturas residenciais para idosos; I = Internos de formação especializada.

Em relação à aplicação da desprescrição na prática clínica (Figura 1), aproximadamente metade dos médicos inquiridos (n=31, 49,2%) referiu realizá-la apenas ocasionalmente nos utentes com algum dos critérios mencionados previamente. Esta frequência foi similar tanto em especialistas (n=25, 49%) como em IFEs (n=6, 50%). Apenas 25,4% da amostra total refere pôr em prática a desprescrição frequentemente.

Figura 1 Periodicidade com que põe em prática o processo de desprescrição. Legenda: IFEs = Internos de formação especializada. 

Quanto à determinação das classes farmacológicas mais desprescritas (Figura 2), a questão aplicada permitia a seleção de um máximo de três opções de entre seis respostas possíveis. Na amostra total, os fármacos mais frequentemente desprescritos foram os AINEs (n=49, 77,8%), as estatinas (n=47, 74,6%) e os bifosfonatos (n=38, 60,3%), sendo também estas três classes as mais desprescritas pelos especialistas (Figura 3). No grupo de IFEs em particular verificou-se uma ligeira discrepância, com os antiagregantes e hipocoagulantes a ocuparem o terceiro lugar da lista de fármacos mais desprescritos.

Figura 2 Classes farmacológicas mais frequentemente desprescritas na amostra total. Legenda: Legenda: AINEs = Anti-inflamatórios não esteroides; IECAs = Inibidores da enzima conversora de angiotensina; IFEs = Internos de formação especializada. 

Figura 3 Comparação entre as classes farmacológicas mais frequentemente desprescritas pelos especialistas e internos de formação especializada. Legenda: AINEs = Anti-inflamatórios não esteroides; IECAs = Inibidores da enzima conversora de angiotensina; IFEs = Internos de formação especializada. 

Em relação à importância das características do utente na tomada de decisão da desprescrição (Figura 4), os médicos inquiridos avaliaram a qualidade de vida (n=50, 79,4%), a esperança de vida (n=45, 71,4%), a deterioração cognitiva (n=38, 60%) e a dependência física para as atividades de vida diária (n=31, 49,2%) como muito importantes. As restantes características foram consideradas como importantes: expectativas dos familiares (n=40, 63,5%), comunicação difícil (n=37, 58,7%), expectativas do utente (n=36, 57,1%), experiências prévias do utente com a desprescrição (n=33, 52,4%) e idade (n=30, 47,6%). Sobre as potenciais consequências negativas para a saúde não houve consenso, sendo que 47,6% (n=31) dos médicos classificou como uma característica muito importante, enquanto outros 47,6% (n=31) classificaram como importante apenas. Na avaliação separada por categorias profissionais, a importância atribuída pela maioria a cada uma das características manteve-se praticamente semelhante à amostra total, com diferença apenas nas potenciais consequências negativas para a saúde. A maioria dos IFEs (n=8, 66,7%) avaliou este aspeto como muito importante, enquanto a maioria dos especialistas (n=26, 51%) considerou apenas importante.

Figura 4 Importância atribuída às características do utente na prática da desprescrição. Legenda: IFEs = Internos de formação especializada; AVDs = Atividades de vida diária. 

No que diz respeito aos fatores influenciadores (independentes do utente) na prática de desprescrição (Figura 5), os inquiridos definiram como muito importantes os riscos do fármaco (n=41, 65,1%), os benefícios do fármaco (n=33, 52,4%) e a existência de guidelines/linhas de orientação de desprescrição (n=29, 46%). Por outro lado, a comunicação/colaboração interprofissional (entre médicos prescritores e farmacêuticos), o tempo despendido, o livre acesso ao fármaco por ser de venda livre e a existência de ferramentas que facilitem a desprescrição foram apontados como fatores apenas importantes. Com-parando o ponto de vista das diferentes categorias profissionais registaram-se diferenças quanto à importância da existência de ferramentas que facilitem a desprescrição e quanto à comunicação/colaboração interprofissional. Ambos os pontos foram classificados como muito importantes pela maioria dos IFEs, enquanto a maior parte dos especialistas atribuiu uma menor importância.

Figura 5 Importância atribuída aos fatores influenciadores (independentes do utente) na prática da desprescrição. Legenda: IFEs = Internos de formação especializada. 

Barreiras e fatores facilitadores

No que concerne às barreiras identificadas à prática da desprescrição (Tabela 3), o tempo limitado para revisão terapêutica foi frequentemente reconhecido pelos médicos na prática clínica, tanto na avaliação global dos 63 participantes (n=26, 41,3%) como na avaliação específica por categorias profissionais. Pelo contrário, 25 participantes (39,7%) referiram que o facto dos doentes se encontrarem institucionalizados em Estruturas Residenciais para Pessoas Idosas (ERPIs) era um fator limitante raramente observado na prática da desprescrição, o que também foi compatível com os resultados da avaliação nos dois grupos. As restantes barreiras descritas na Tabela 3 foram reconhecidas ocasionalmente durante a atividade clínica dos médicos inquiridos. Na avaliação específica por categorias profissionais, outras barreiras reconhecidas frequentemente pela maioria dos IFEs (n=6, 50%) foram o receio de eventos negativos com a suspensão do fármaco e o desconhecimento da razão de utilizar certos fármacos, ao contrário da maior parte dos especialistas que apenas verificaram a sua existência ocasionalmente. Por último, a prática cultural (por parte do médico) de uma medicina preventiva foi ocasionalmente reconhecida por 27 especialistas (52,9%), enquanto os IFEs (n=5, 41,7%) apenas observaram esta barreira raramente.

Por último, sobre os fatores facilitadores da desprescrição verificou-se que todos os fatores expostos no questionário foram reconhecidos ocasionalmente na prática clínica dos médicos (Tabela 3). A má adesão terapêutica foi reconhecida ocasionalmente por 44 dos 63 participantes (69,8%), seguida dos custos para o doente, a expetativa de redução dos efeitos laterais e a ausência de indicação clínica, todos reconhecidos ocasionalmente por 31 dos médicos (49,2%). Estes resultados foram similares tanto na avaliação global como na avaliação por categorias profissionais, sendo que o único fator que gerou alguma discórdia nas respostas foi a expetativa de redução de efeitos laterais, uma vez que 50% dos IFEs consideraram reconhecer este fator frequentemente, enquanto a outra metade considerou reconhecer ocasionalmente.

Discussão

Este estudo permitiu caracterizar as práticas de desprescrição dos MF da ULSAM, tratando-se de um dos estudos pioneiros nesta área em Portugal. No que diz respeito à caracterização da amostra verificou-se que os MF inquiridos apresentavam um maior nível de formação na área de cuidados paliativos quando comparada com a área da geriatria, situação que poderá ser explicada pelo surgimento mais tardio das formações em geriatria. Ainda sobre a formação pós-graduada verificou-se que a maioria dos participantes com formação eram especialistas. Algumas das razões para justificar o maior nível formativo dos especialistas nestas áreas poderão ser o maior número de anos enquanto profissional e, portanto, de tempo para realizar formações desde o início da sua atividade e a maior capacidade de adequar as necessidades formativas ao seu contexto profissional.

Relativamente aos critérios para desprescrição, de acordo com o presente estudo, os doentes com multimorbilidade, os polimedicados e os idosos frágeis são alguns dos exemplos mais frequentemente reconhecidos ao nível das consultas de MGF. No entanto, apesar dos utentes com critérios de desprescrição serem frequentemente reconhecidos, a desprescrição só é aplicada apenas ocasionalmente. Este resultado suporta as conclusões do estudo suíço “The LESS Study” (8 em que apesar de 84% dos MF observarem doentes com critério de desprescrição frequente ou muito frequentemente, apenas 30% desprescreve com a mesma regularidade. Conclui-se, assim, que existe ainda falta de proatividade por parte dos MF na prática da desprescrição. Os autores consideram ser necessária a aplicação de medidas que capacitem e sensibilizem os profissionais de saúde para este processo.

Verificou-se que as classes farmacológicas mais frequentemente desprescritas pelos MF são os AINEs, as estatinas e os bifosfonatos. Esta seleção está de acordo com os resultados do estudo LESS, (8 que verificou que os fármacos mais desprescritos pelos MF eram os de prevenção cardiovascular, nomeadamente as estatinas, havendo tendência a manter os analgésicos como o paracetamol.

Em relação às características do doente na tomada de decisão da desprescrição foi interessante verificar que a maioria dos médicos priorizou e classificou como muito importante a qualidade e a esperança de vida, a deterioração cognitiva e a dependência física, dando uma menor importância a aspetos como a idade do utente e as expectativas dos familiares. Estes resultados podem ter sido influenciados pela forma de atuação do MF, cujas características e competências nucleares incluem, segundo a árvore da WONCA, (10 a abordagem holística dos utentes e o cuidado centrado na pessoa. Ainda assim, os autores reconhecem que mais estudos, com outra população-alvo e comparando diferentes especialidades médicas, são necessários para suportar esta afirmação. Os autores sugerem como estudo futuro um questionário aplicado a nível nacional, inquirindo médicos de medicina geral e familiar, medicina interna e cuidados paliativos, garantindo uma amostra maior e mais diversa. Quando se comparam os resultados do presente estudo com os do estudo LESS8 verifica-se que uma percentagem similar de ambas as amostras classificou como pelo menos importante a qualidade de vida (97% desta amostra vs 98% do LESS), a esperança de vida (95% vs 96%) e a idade do utente (71% vs 73%). Por outro lado, uma frequência distinta de ambas as amostras classificou como pelo menos importante a comunicação difícil (83% desta amostra vs 56% do estudo LESS), as potenciais consequências negativas para a saúde (95% vs 76%) e as expectativas dos familiares (78% vs 49%) e do utente (94% vs 63%).

Quanto aos fatores influenciadores da prática da desprescrição, a maioria dos MF definiu como pelo menos importante os riscos (98%) e os benefícios (95%) dos fármacos, bem como a existência de guidelines/linhas de orientação de desprescrição (89%). Estes dados estão congruentes com os do estudo LESS8 relativamente à importância dos riscos (99%) e benefícios (98%) dos fármacos; contudo, diferem na existência de guidelines, uma vez que apenas 64% da amostra do estudo LESS a considera pelo menos importante. Uma vez que um dos papéis fundamentais do MF inclui a gestão da medicação crónica dos seus utentes, os autores consideram que os primeiros dois fatores (riscos e benefícios do fármaco) estão já bem presentes na decisão médica diária, sendo, portanto, necessário apostar na criação de documentos com linhas de orientação para a desprescrição, de forma a responder às necessidades sentidas pelos médicos e evidenciadas neste estudo. Em relação à influência do tempo despendido, 71% da amostra considera-o pelo menos importante, o que contrasta com os 19% do estudo LESS. (8 Esta diferença poderá ser explicada pela sobrecarga de trabalho a que os MF em Portugal estão sujeitos, levando à atribuição de uma maior importância a este fator.

No que concerne às barreiras para a desprescrição, importa referir que Portugal surge em décimo lugar num estudo publicado no British Medical Journal Open, (11 onde foram analisados os tempos médios das consultas de MGF em 67 países, apresentando cerca de 15,9 minutos por consulta. Além disso, de acordo com os Censos de 2021, (12 Portugal é o segundo país da União Europeia com um maior índice de envelhecimento. A complexidade, pluripatologia e polimedicação inerente aos doentes com idades avançadas poderão ser algumas das justificações para o tempo limitado para revisão terapêutica ter sido a barreira mais frequentemente reconhecida na prática clínica dos inquiridos no presente estudo. Desta forma, os investigadores consideram que a existência de uma consulta específica para gestão terapêutica pode ser uma proposta para ultrapassar esta barreira. Por outro lado, a institucionalização em ERPIs foi descrita como uma barreira raramente observada na prática clínica, o que poderá ser explicado pelo facto destas instituições apresentarem frequentemente médicos a título particular, não sendo, portanto, tão habitual que estes doentes recorram ao seu MF. Uma medida para superar esta barreira poderá ser o estabelecimento de uma melhor articulação entre as ERPIs e as unidades dos CSP da mesma área geográfica, de modo a melhorar o acompanhamento destes doentes por parte dos seus MF.

Adicionalmente, é interessante perceber que a prática cultural de uma medicina preventiva (por parte do médico) não foi frequentemente reconhecida como uma barreira, o que poderá estar relacionado com a abordagem holística e abrangente praticada atualmente pelos MF, que condiciona a integração de toda a informação do utente para a tomada de decisão e não apenas o aspeto da prevenção isoladamente. Por último, os autores consideram que o facto dos especialistas terem um conhecimento mais detalhado da sua lista de utentes e terem um maior nível de experiência na prescrição farmacológica poderão ser as justificações para que o desconhecimento da razão de utilização de certos fármacos e o receio de eventos negativos com a suspensão do fármaco tenham sido barreiras avaliadas como frequentes pela maioria dos IFEs e apenas ocasionais pelos especialistas.

Concluindo, os autores consideram que este estudo permitiu melhorar a perceção sobre as práticas de desprescrição em MGF em Portugal, até então desconhecida pela escassez de estudos publicados no país sobre o tema. Finalmente, a abordagem desta temática alertou os MF para a importância do processo de desprescrição como parte de uma prescrição racional na sua prática clínica diária.

Limitações

Sendo um estudo com aplicação regional, os dados obtidos não poderão ser extrapolados para a prática nacional. No entanto, a metodologia utilizada poderá servir de base para futuros estudos noutras regiões do país ou mesmo a nível nacional. Por outro lado, apesar de ter sido realizado previamente um teste piloto e realizado um teste de consistência interna pelo método de Alpha de Cronbach, a validação deste questionário foi limitada, o que pode comprometer a obtenção de conclusões mais fidedignas e a replicação direta do mesmo em futuros estudos.

De acordo com os dados do Gabinete de Comunicação da ULSAM, o questionário foi enviado a 227 MF e a 19 IFEs do 3.º e 4.º anos de MGF, a exercerem atividade na ULSAM à data do estudo, tendo-se obtido um total de 63 respostas. Assim, verificou-se uma taxa de resposta de cerca de 25,6%, que os autores consideram ser abaixo do desejado e, portanto, uma das limitações do estudo. Uma das possíveis causas para esta baixa adesão pode ter sido o facto de algumas das questões do questionário apresentarem um certo caráter identificativo como, por exemplo, o nível de formação em geriatria e/ou cuidados paliativos, o que poderá ter condicionado a desistência de alguns elementos da população-alvo. Adicionalmente, o facto de ter sido utilizada uma amostra de conveniência, apenas com os MF que aceitaram responder ao questionário, também constitui uma limitação, pois não se trata de uma amostra representativa da população.

Considerando a categoria profissional, apesar de se observar um maior número de respostas por parte de especialistas, a taxa de resposta dos IFEs foi de 63,2%, substancialmente superior à dos especialistas, 22,5%. Ainda assim, o baixo número de respostas de IFEs foi também uma limitação que condicionou a comparação estatística entre as duas categorias profissionais. Neste sentido, os autores optaram por não aplicar testes de avaliação de diferença com significado estatístico entre os grupos.

Conclusão

A desprescrição é um processo individual e contínuo, que tem em conta o balanço entre os riscos e os benefícios do fármaco e que implica uma decisão partilhada entre o médico, o doente e familiares. O MF, pelas características inerentes à sua prática clínica, estabelece frequentemente uma relação de confiança médico-doente e mantém uma avaliação longitudinal do utente, razões que facilitam o seu papel neste processo. Utentes com critérios de desprescrição são frequentemente reconhecidos pelos MF; no entanto, existe ainda falta de proatividade nesta prática. A implementação em todas as Unidades de Saúde Familiar/Unidades de Cuidados de Saúde Personalizados de uma consulta específica orientada para gestão terapêutica destes doentes poderia ser uma forma de melhorar esta prática tão importante.

Agradecimentos

Os autores agradecem à Dra. Vânia Sá Araújo, Dra. Encarnación Frá e Dra. Cristina Mendes a orientação e apoio na realização deste trabalho.

Contributo dos autores

Conceptualização, MBO; metodologia, MBO e CC; validação, MBO e CC, análise formal, MBO e CC; investigação, MBO e CC, recursos, MBO e CC; gestão de dados, MBO e CC; redação do draft original, MBO e CC, revisão, validação e edição do texto final, MBO, CC e VRS.

Conflito de interesses

Os autores declaram não possuir quaisquer conflitos de interesse.

Fontes de financiamento

Os autores declaram não ter recebido quaisquer subsídios ou bolsas para a ela-boração do presente artigo científico.

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Recebido: 31 de Março de 2023; Aceito: 13 de Setembro de 2023

Endereço para correspondência Mariana B. Oliveira E-mail: mariana.brito.oliveira@gmail.com

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