Introdução
A nova epidemia da doença hepática crónica está relacionada com a esteatose hepática não alcoólica (EHNA), paralelamente ao aumento da obesidade a nível mundial. A sua prevalência global é atualmente estimada em 24%, representando praticamente ¼ da população, (1 sendo mais comum no sexo masculino. (2 Esta está a tornar-se rapidamente a causa mais comum de doença hepática a nível mundial, (5-6 estimando-se que nos próximos 20 anos se torne a principal causa de transplante hepático. (7-8
Prevê-se que a sua prevalência continue a aumentar exponencialmente nas próximas décadas, concomitantemente com a epidemia global da obesidade, diabetes mellitus tipo 2 e estilo de vida sedentário. (9 No entanto, é importante salientar que esta patologia não ocorre apenas em indivíduos obesos. (5
Trata-se de uma patologia tipicamente assintomática. (10-11 Assim, o seu diagnóstico muitas vezes é realizado de forma acidental após deteção de valores anormais em estudos de rotina da função hepática ou através da realização de exames de imagem abdominal. (9
De acordo com a Associação Americana de Estudos da Doença Hepática, o Colégio Americano de Gastroenterologia e a Associação Americana de Gastroenterologia, para definir a EHNA é necessário verificar-se a presença de esteatose hepática por exames de imagem ou histologia, (9,12 que se define como a presença de conteúdo de gordura hepática excessivo acima de 5%, sem evidência de dano hepatocelular. (5,12 Também é necessário que sejam excluídas outras causas de esteatose hepática, como o consumo de bebidas alcoólicas, utilização prolongada de medicação que promova a esteatose (e.g., amiodarona, metotrexato, tamoxifeno, corticosteroides, valproato de sódio, estrogénios e nifedipina), (13-14 hepatite C e hepatite B. (5,9,12
A EHNA tem dois fenótipos distintos: o fígado gordo não alcoólico (FGNA) e a esteato-hepatite não alcoólica (ENA). O FGNA é uma condição com esteatose, mas na qual não existe inflamação, enquanto a ENA se refere a esteatose acompanhada de diferentes graus de dano hepatocelular e fibrose. (3 Esta última pode progredir para doença hepática avançada, cirrose e carcinoma hepatocelular. (1,15
Cerca de 30% dos casos de EHNA estão associados a ENA, o que lhes confere um risco aumentado de fibrose e, nestes doentes, o risco de desenvolverem carcinoma hepatocelular aumenta. Assim, a incidência de carcinoma hepatocelular em doentes com EHNA é de 0,04% em doentes sem cirrose e aumenta para 4% em doentes com cirrose. (3
A maioria dos doentes com EHNA pode ser seguida nos cuidados de saúde primários. (16 No entanto, estudos recentes têm demonstrado conhecimento insuficiente acerca desta patologia entre os médicos dos cuidados de saúde primários17 e dificuldade em identificar os doentes com fibrose significativa que precisam de intervenção por parte de consulta da especialidade. (16
Métodos
Para a realização do presente artigo de revisão foi realizada uma pesquisa bibliográfica na base de dados PubMed em outubro de 2021, utilizando os termos MeSH non-alcoholic fatty liver e primary care.
Foram selecionados artigos publicados entre 2010 e 2021, redigidos na língua portuguesa, inglesa ou espanhola e com texto integral disponível na integra. Foram obtidos 122 resultados. Após uma breve leitura do título e resumo dos artigos obtidos foram excluídos 18 por não se enquadrarem no objetivo do trabalho, ficando com um total de 104 artigos. Após leitura integral dos 104 artigos selecionados 82 referências foram excluídas, considerando-se que apenas 22 se enquadravam nos objetivos do estudo.
Resultados
Muitos métodos têm sido utilizados para o diagnóstico e abordagem da EHNA, mas o problema principal reside na diferenciação entre FGNA da ENA e posterior estadiamento do grau de fibrose hepática nestes doentes. (12
Os marcadores de fibrose não invasivos são ferramentas fundamentais, (12 sobretudo úteis para excluir fibrose. (3 Vários marcadores séricos têm mostrado uma boa relação com a presença ou ausência de fibrose hepática. (18
Estes têm a vantagem de serem fáceis de incorporar nas investigações de rotina nos cuidados de saúde primários e não requerem equipamento especializado ou treino dos profissionais e estão muitas vezes associados a baixos custos. (16,19 Assim, devem ser calculados de forma a fazer uma estratificação inicial do estadio de fibrose. (13
Ratio AST/plaquetas (APRI)
Existe uma relação inversa entre a progressão da fibrose hepática e a contagem de plaquetas, ou seja, doentes com ENA têm geralmente trombocitopenia. (12
Este foi originalmente desenvolvido e validado para a hepatite C e a sua precisão tem sido questionada no contexto da EHNA. (9 Tem uma precisão de 0,85 para fibrose avançada em pacientes com EHNA prévia. (12
Uma relação APRI <1 indica uma baixa probabilidade de fibrose, sendo seguro exclui-la com estes limites e APRI >2 indica uma elevada probabilidade de fibrose. (3,5,14,20
Doseamento de transaminases
As enzimas hepáticas (AST e ALT) têm sido associadas a inflamação e esteatose. No entanto, cada marcador isolado não se relaciona com o grau de fibrose, sendo que 80% dos doentes com EHNA apresentam níveis de AST e ALT normais. (2,5,12
O ratio AST/ALT poderia ser considerado um biomarcador ideal para a deteção de fibrose hepática, uma vez que aumenta com a progressão da doença. (12 O ratio AST/ALT normal é 0,8. Geralmente na EHNA é 1,0 ou inferior, mas quando a fibrose começa a avançar o ratio pode-se inverter, o que pode dificultar a sua interpretação.
No entanto, a idade é um fator confundidor, uma vez que com o avançar da idade os níveis de ALT diminuem, influenciando o ratio AST/ALT. (20 Assim, os níveis das transaminases não são preditores de confiança para a ENA. (20
Fibrosis-4 (FIB-4)
Este índice é calculado através de quatro variáveis (idade, AST, ALT e contagem de plaquetas) e tem uma elevada precisão para fibrose avançada em doentes com EHNA. Tem a vantagem de ser simples, barato10 e apresentar um elevado valor preditivo positivo (>95%).21 A sua principal desvantagem é o facto de a eficácia diagnóstica diminuir com a idade. (12
O seu cálculo pode ser realizado através da seguinte fórmula: Idade (anos) × AST (IU/L) ÷ Contagem de plaquetas (× 109/L) × 𝐴√ALT (IU/L). 19𝑆
Um FIB-4 <1,45 tem um valor preditivo negativo de 90% para fibrose avançada com 81% de sensibilidade. Um FIB-4 >3,25 tem um valor preditivo positivo de 65% para fibrose avançada com 97% de especificidade. (21
NAFDL Fibrosis Score (NFS)
O seu cálculo é baseado em seis variáveis (idade, IMC, hiperglicemia, contagem de plaquetas, albumina e relação AST/ALT). (12,14
Pode ser calculado através da seguinte fórmula: -1,675 + 0,037 × idade (anos) + 0,094 × IMC (Kgm2) + 1,13 × aumento da glicémia em jejum (sim = 1; não = 0) + 0,99 × AST/ALT (IUL) - 0,013 × contagem de plaquetas (× 109L) - 0,66 × albumina (g/dL).19
Em doentes com EHNA este é atualmente o marcador mais estudado. (12
Tem uma precisão de 82-85% para detetar fibrose avançada e de 88% para a excluir. (9,12
Valores de NFS >0,676 indicam uma elevada probabilidade de fibrose, enquanto NFS <-1,455 indicam uma baixa probabilidade de fibrose, sendo seguro excluí-la com estes limites. (3,5,14,20
Contudo, este é menos útil para doentes com idade superior a 65 anos, por ter uma maior taxa de falsos positivos. (13 Uma das propostas realizadas para contornar este problema é utilizar cut-offs de 0,12 em vez de -1,455 em doentes com mais de 65 anos. (21
Apesar dos vários biomarcadores estudados para a EHNA, apenas o FIB-4 e o NFS foram validados externamente em mais que um estudo com diferentes populações com resultados consistentes. (12 Numa meta-análise recente estes foram superiores aos restantes para deteção de fibrose avançada.9
Discussão
Doentes com EHNA devem ser identificados não apenas devido ao risco de desenvolverem fibrose hepática, que consequentemente pode levar ao desenvolvimento de cirrose e CHC, mas também porque têm uma mortalidade aumentada devido a eventos cardiovasculares. (22
Após estabelecer o diagnóstico, o passo seguinte deve prender-se com a avaliação da necessidade de referenciação do utente a consulta especializada. (18
Em casos de suspeita de EHNA é sempre necessário excluir outras causas de doença hepática. Assim, deve ser avaliado o consumo significativo de bebidas alcoólicas (definida como 21 bebidas ou mais por semana nos homens e 14 bebidas ou mais por semana nas mulheres) (3 e a utilização de fármacos esteatogénicos, incluindo suplementos alimentares sem prescrição médica. Devem ser despistadas hepatites virais crónicas através de serologias para hepatite B e C, (12 sobrecarga de ferro11 e avaliar a possibilidade de hepatite autoimune. Deve ainda ser realizada uma avaliação do risco cardiovascular com o doseamento da glicemia em jejum, HbA1c e ficha lipídica. (3
Após esta primeira avaliação é fundamental diferenciar a FGNA da ENA e perceber qual o grau de fibrose hepática associada. (12 Esta torna-se impreterível, pois a presença de fibrose é o preditor mais importante de mau prognóstico em doentes com EHNA. (3 Os doentes que apresentam ENA/fibrose avançada são os que têm um risco mais elevado de desenvolver cirrose, insuficiência hepática e CHC. (12
Dos scores disponíveis para avaliação de fibrose nos doentes com esta patologia, os que parecem ser mais seguros e adequados são o FIB-4 e o NFS.
Os testes não invasivos de fibrose hepática fornecem uma sensibilidade aceitável para diagnóstico de fibrose hepática avançada em doentes de risco. No entanto, estes testes têm um valor preditivo positivo insuficiente, especialmente em populações com baixa prevalência de alvo diagnóstico. Portanto, a estratégia mais apropriada parece ser a utilização destes testes como procedimento de primeira linha e, caso sejam positivos, devem ser confirmados através de testes de segunda linha, como a elastografia, realizada a nível hospitalar. (21
A vantagem de incorporar estes marcadores simples associa-se ao facto de serem métodos com custos reduzidos e com ferramentas de cálculo gratuitas acessíveis online e em aplicações para os smartphones, tornando a sua implementação simples nos CSP. (21
Na maioria dos casos de EHNA, a progressão dos estadios de fibrose é lenta. Assim, a maioria destes doentes pode ter seguimento nos cuidados de saúde primários. (5,18
Perante qualquer sinal clínico de evidência de cirrose (e.g., ascite, icterícia, aranhas vasculares, eritema palmar, ginecomastia), os doentes devem ser de imediato referenciados para cuidados especializados para melhor esclarecimento do quadro clínico e seguimento, uma vez que estes sinais são consistentes com doença hepática descompensada. (15
Em doentes com estadios de fibrose ligeira não se prevê que tenham desenvolvimento de complicações hepáticas por um período de aproximadamente vinte anos, pelo que podem manter vigilância nos cuidados de saúde primários. (6 Estes devem ser reavaliados a cada um9 a dois anos, (5 utilizando os testes não invasivos.
Por sua vez, doentes com fibrose moderada a severa devem ser referenciados a consulta hospitalar, uma vez que devem realizar um estudo mais aprofundado com elastografia ou biópsia hepática. (9
Conclusão
A EHNA é um problema de saúde cada vez mais frequente. No entanto, muitas vezes esta doença ainda é tratada como um problema ligeiro; deve, porém, ser encarado com maior gravidade pela possibilidade de evolução para cronicidade e cirrose hepática e, em última instância, para CHC.
Os cuidados de saúde primários são o local ideal para a identificação precoce de doentes com esta patologia; (22 muitos dos doentes podem depois manter o seu seguimento adequado com o seu médico de família.
O NFS e FIB-4 são ferramentas úteis para uma avaliação inicial da fibrose em doentes com EHNA7 e facilitam muito a sua deteção nos cuidados de saúde primários.
Assim, os autores sugerem a aplicação do diagrama da Figura 1 com a aplicação dos scores FIB-4 e NFS nos doentes com EHNA. Assim, aqueles cujos valores sejam NFS >0,676 e FIB-4 >3,25 devem ser encaminhados para a consulta de especialidade. Nos casos em que NFS <-1,455 e FIB-4 <1,45 dever-se-á manter o seguimento dos doentes nos cuidados de saúde primários, realizando uma reavaliação com os mesmos scores a cada um a dois anos. Caso haja alteração dos mesmos para os valores anteriormente mencionados, devem então ser referenciados a consulta hospitalar. Por fim, em relação aos doentes cujos scores se encontram em intervalo duvidoso ou nos quais apenas um dos scores é tranquilizador, dever-se-á sempre encaminhar para a consulta externa de gastroenterologia, de forma a ser realizado um estudo complementar mais detalhado.
Agradecimentos
Agradeço à minha orientadora de formação, Dra. Natalina Rodrigues, pelo apoio prestado durante a realização do trabalho e motivação, bem como à minha orientadora do estágio de gastroenterologia, Dra. Liliana Eliseu.