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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.39 no.6 Lisboa dez. 2023  Epub 31-Dez-2023

https://doi.org/10.32385/rpmgf.v39i6.13792 

Relatos de caso

Hiperaldosteronismo primário: um relato de caso

Primary hyperaldosteronism: a case report

Helena Ramalho Araújo1 
http://orcid.org/0000-0003-4610-8474

Joana Pinto1 

1. USF São João do Porto, ACeS Porto Ocidental. Porto, Portugal.


Resumo

Introdução:

A HTA secundária, responsável por 10% dos casos de HTA, inclui causas como o hiperaldosteronismo primário. Pretende-se alertar para a importância do despiste de causas secundárias de hipertensão quando se observam sinais sugestivos, como a ausência de controlo tensional com três fármacos, entre os quais um diurético.

Descrição do caso:

Doente de 75 anos, do sexo feminino, com hipertensão arterial, dislipidemia, doença renal crónica e hipocalémia. Recorreu a uma consulta na sua Unidade de Saúde Familiar, na qual apresentou tensões elevadas. Os exames pedidos mostraram aumento dos níveis plasmáticos de aldosterona e renina, hipocalemia e um adenoma da glândula suprarrenal. Pela suspeita de hiperaldosteronismo primário, a doente foi referenciada para consulta de endocrinologia, na qual foi confirmado o diagnóstico. Realizou exérese do adenoma, encontrando-se atualmente normotensa.

Comentário:

Este caso demonstra como, perante um doente medicado e com mau controlo tensional, deve ser considerada a hipótese de hipertensão secundária, pois a correção da causa pode levar à normalização tensional e diminuição do risco cardiovascular.

Palavras-chave: Hiperaldosteronismo primário; Hipertensão; Relato de caso

Abstract

Introduction:

Secondary hypertension accounts for approximately 10% of cases of hypertension, including primary hyperaldosteronism. It is intended to draw attention to the importance of screening for secondary causes of hypertension when there are suspicious signs such as lack of tension control with three drugs which included a diuretic.

Case description:

75-year-old female patient with high blood pressure, dyslipidemia, chronic kidney disease, and hypokalemia. She had a consultation at her Family Health Unit, and at evaluation, she had high blood pressure. The tests showed high aldosterone and renin levels, hypokalemia, and an adrenal gland adenoma. Due to the suspicion of primary hyperaldosteronism, the patient was referred to an Endocrinology appointment, where the diagnosis was confirmed. She underwent an exeresis of the adenoma, and she is currently normotensive.

Comments:

This case demonstrates how, in the face of a medicated patient with poor blood pressure control, the hypothesis of secondary hypertension should be considered, since correcting the cause can lead to blood pressure normalization and a reduction in cardiovascular risk.

Keywords: Primary hyperaldosteronism; Hypertension; Case report

Introdução

A hipertensão arterial (HTA) constitui um fator de risco importante para mortalidade cardiovascular e, como tal, o seu diagnóstico e tratamento são de crucial importância. A hipertensão pode ser classificada como essencial ou primária quando não se identifica um agente etiológico e como secundária quando a causa é identificável. A HTA secundária, responsável por 10% dos casos de HTA, inclui causas como o hiperaldosteronismo primário, cujo tratamento pode conduzir a indubitáveis benefícios no que concerne à diminuição do risco cardiovascular.1-2 De entre as várias formas de hiperaldosteronismo primário destaca-se a hiperplasia adrenal bilateral e o adenoma produtor de aldosterona, o qual pode ser unilateral ou bilateral. (2

Pretende-se com este caso alertar para a importância do despiste de causas secundárias de hipertensão quando esta não se encontra controlada, com uma associação de três fármacos, entre os quais um diurético, (3 uma vez que a correção das mesmas pode resultar na estabilização tensional e consequente diminuição do risco cardiovascular.

Descrição do caso

Os autores descrevem o caso de uma doente de 75 anos, do sexo feminino, com o quarto ano de escolaridade e reformada. Agregado familiar constituído pelo marido, tratando-se de uma família do tipo nuclear na classe III da escala de Graffar. Apresentava antecedentes de hipertensão arterial (HTA), dislipidemia e doença renal crónica (DRC) em estadio IIIa. Encontrava-se medicada com atorvastatina 10 mg, perindopril 10 mg, amlodipina 5 mg e espironolactona 25 mg (devido a hipocalémia diagnosticada em 2015).

A doente recorreu a uma consulta programada na sua Unidade de Saúde Familiar para realizar a consulta de vigilância. Encontrava-se assintomática e ao exame objetivo apresentava pressão arterial de 170/90 mmHg, sem mais alterações de relevo. Quando questionada sobre os valores tensionais no domicílio, a doente referiu que no último mês a tensão arterial sistólica (TAS) encontrava-se sempre entre os 150 e os 160 mmHg e que a tensão arterial diastólica (TAD) era habitualmente superior a 85 mmHg. Foram consultados os exames prévios da doente, entre os quais se encontrava uma ecografia renal realizada nos seis meses anteriores, que descrevia alterações imagiológicas compatíveis com uma DRC, como o reduzido tamanho dos rins e a diminuição da diferenciação corticomedular. No processo clínico eletrónico da doente encontravam-se também registados um ecocardiograma e um eletrocardiograma recentes, sem alterações de relevo, assim como a microalbuminúria em amostra ocasional de urina com uma razão albumina/creatinina de 94 mg/g. Considerando o antecedente de hipocalémia espontânea da doente e o mau controlo tensional recente, apesar da utilização de três fármacos anti-hipertensores, foi pedido um estudo analítico com estudo da creatinina e ureia, glicose, hormona tireoestimulante (TSH), ionograma, cálcio, assim como a aldosterona e a renina plasmáticas. Foi pedido também o cortisol urinário e as metanefrinas fracionadas numa urina 24 h. De forma a orientar a doente, com base nos resultados dos exames pedidos, agendou-se uma consulta para o mês seguinte.

A doente recorreu então à consulta programada para mostrar os exames pedidos. Apresentava uma pressão arterial de 158/90 mmHg. O estudo analítico revelou uma elevação da creatinina, sobreponível ao seu valor basal, uma TSH diminuída, uma hipocalemia, uma aldosterona sérica aumentada e uma renina sérica diminuída (Tabela 1). A análise da urina 24 h não mostrou qualquer alteração. Perante estes resultados foram colocadas duas hipóteses de diagnóstico: hipertiroidismo e hiperaldosteronismo primário. Assim, foram pedidas novas análises da função tiroideia, uma ecografia tiroideia e uma tomografia axial computorizada (TAC) abdominal. Foi recomendada a AMPA e foi novamente agendada consulta com o intervalo de um mês. Na consulta seguinte, a doente trouxe os resultados dos exames pedidos e também o registo da pressão arterial no domicílio, o qual revelou uma média de 160/89 mmHg. A ecografia tiroideia mostrou um nódulo EU-TIRADS 3. A TAC abdominal mostrou um adenoma da glândula suprarrenal esquerda (Figura 1) com 15 mm de maior diâmetro. Assim, devido ao diagnóstico de hipertiroidismo subclínico e ao nódulo detetado na ecografia foi pedida uma cintigrafia tiroideia, com o objetivo de detetar a sua etiologia. Esta cintigrafia, que a doente realizou quatro semanas depois, mostrou que se tratava de um nódulo quente. Deste modo, devido à suspeita de hiperaldosteronismo primário, a doente foi referenciada para consulta de endocrinologia. Adicionalmente optou-se por aumentar a dose de espironolactona para 50 mg, de forma a corrigir o valor do potássio e a melhorar o seu controlo tensional. Adicionou-se também a dapagliflozina na dose de 10 mg, pelo benefício no prognóstico da doença renal crónica. (4 Na consulta hospitalar de endocrinologia, agendada para o dia 6/julho, foi feito novamente o despiste de causas de hipertensão secundária, pelo que o perindopril, a amlodipina e a espironolactona foram suspensos e substituídos pelo verapamil e pela doxazosina. Este estudo incluía o doseamento da paratormona, cálcio, vitamina D, cortisol, aldosterona renina, metanefrinas e normetanefrinas plasmáticas. Nesta consulta foi também iniciado o metibasol na dose de 2,5 mg.

Tabela 1 Estudo analítico pedido nos cuidados de saúde primários 

Figura 1 Tomografia axial computorizada abdominal. 

Dois meses depois, no dia 11/setembro, a doente regressou a uma consulta programada na sua Unidade de Saúde Familiar. Na consulta apresentava valores tensionais de 153/90 mmHg e no domicílio, segundo os registos, tinha uma média de TAS de 152 e de TAD de 91 mmHg. O resultado do estudo analítico realizado no hospital já se encontrava disponível no processo clínico eletrónico, mostrando valores sobreponíveis aos já obtidos previamente nos cuidados de saúde primários: a aldosterona sérica aumentada e a renina diminuída, com o restante estudo normal. Perante estes valores foi calculada a razão entre a aldosterona e a renina ativa e obteve-se o valor de 398. Assim, foi confirmado o diagnóstico de hiperaldosteronismo primário. Foi explicado à doente o diagnóstico e foram abordadas as opções de tratamento. Após todas as dúvidas esclarecidas, a doente manifestou vontade de ser submetida a cirurgia, pois desejava não necessitar de fármacos para ter as tensões controladas. Assim, foi de seguida referenciada a uma consulta de urologia no hospital da área de residência. Foi avaliada no dia 6/dezembro em consulta de urologia e submetida, dois meses depois, a exérese do adenoma da suprarrenal, o que decorreu sem intercorrências. Posteriormente, no dia 22/fevereiro, foi avaliada em consulta de vigilância na USF, encontrando-se normotensa, sem recurso a nenhum fármaco.

Discussão

Descreve-se o caso de uma doente com hipertensão secundária, em que possivelmente mais que um fator contribuía sinergicamente para o mau controlo tensional da doente: a doença renal crónica e o hiperaldosteronismo primário. No entanto, o facto de a pressão arterial ter sido normalizada após o tratamento do hiperaldosteronismo primário leva à conclusão de que este seria a principal causa do mau controlo tensional da doente.

Relativamente ao papel do médico de família, foi necessária, em primeiro lugar, uma elevada suspeição clínica, pois embora a ausência de controlo da hipertensão com três fármacos, entre os quais um diurético, e a hipocalémia espontânea constituam indicações para a investigação diagnóstica do hiperaldosteronismo primário, (1,3 esta doente tinha antecedente de nefropatia que a priori poderia justificar o mau controlo tensional. Assim, a orientação da doente ao nível dos cuidados de saúde primários, com o despiste das várias possíveis causas de hipertensão secundária, conduziu a um rápido diagnóstico. Este estudo incluiu, com base na principal hipótese de diagnóstico, o doseamento da aldosterona e renina séricas, que constituem os parâmetros utilizados no rastreio do hiperaldosteronismo primário. Por outro lado, foi também doseada a TSH, para o despiste do hipertiroidismo, e também o cálcio sérico assim como o cortisol e as metanefrinas fracionadas numa urina de 24 h, de forma a excluir diagnósticos menos prováveis, como o hiperparatiroidismo primário, a síndroma de Cushing e o feocromocitoma, respetivamente. (3), (5 Assim que a suspeita de hiperaldosteronismo primário foi confirmada procedeu-se de imediato à avaliação imagiológica através de uma TAC abdominal, uma vez que este exame está indicado para excluir o carcinoma adrenocortical produtor de aldosterona. (1 Deste modo, é de destacar a boa acessibilidade ao nível dos cuidados de saúde primários, que tornou possível o agendamento de várias consultas e a orientação célere desta patologia a nível hospitalar.

Segundo a definição europeia de medicina geral e familiar da WONCA, o médico de família é “o primeiro ponto de contacto médico com o sistema de saúde” e “utiliza de forma eficiente os recursos de saúde, através da coordenação de cuidados, através do trabalho com outros profissionais no contexto dos Cuidados de Saúde Primários, bem como através da gestão da interface com outras especialidades”. (6 De facto, este caso espelha o papel fulcral do médico de família no que concerne ao levantamento de uma hipótese de diagnóstico, à prescrição de exames, interpretação dos seus resultados e posterior orientação para uma consulta hospitalar. Por outro lado, demonstra também como a perfeita articulação dos cuidados de saúde primários e secundários contribuiu para um desfecho tão benéfico para a doente.

Contributo dos autores

Conceptualização, HRA e JP; redação do draft original, HRA e JP; revisão, validação e edição do texto final, HRA e JP.

Conflito de interesses

Os autores declaram não possuir quaisquer conflitos de interesse.

Financiamento

O estudo não foi objeto de qualquer financiamento.

Referências bibliográficas

1. Kline GA, Prebtani AP, Leung AA, Schiffrin EL. Primary aldosteronism: a common cause of resistant hypertension. CMAJ. 2017;189(22):E773-8. [ Links ]

2. Williams B, Mancia G, Spiering W, Rosei SE, Azizi M, Burnier M, et al. 2018 ESC/ESH Guidelines for the management of arterial hypertension. Eur Heart J. 2018;39(33):3021-104. [ Links ]

3. Charles L, Triscott J, Dobbs B. Secondary hypertension: discovering the underlying cause. Am Fam Phys. 2017;96(7):453-61. [ Links ]

4. Heerspink HJ, Stefánsson BV, Correa-Rotter R, Chertow GM, Greene T, Hou FF, et al. Dapagliflozin in patients with chronic kidney disease. N Engl J Med. 2020;383(15):1436-46. [ Links ]

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6. Allen J, Gay B, Crebolder H, Heyrman J, Svab I, Ram P, et al. A definição Europeia de medicina geral e familiar (clínica geral/medicina familiar). Rev Port Clin Geral. 2005;21(5):511-6. [ Links ]

Recebido: 14 de Abril de 2023; Aceito: 17 de Setembro de 2023

Endereço para correspondência Helena Ramalho Araújo E-mail: lenarujo@hotmail.com

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