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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.40 no.5 Lisboa out. 2024  Epub 31-Out-2024

https://doi.org/10.32385/rpmgf.v40i5.14162 

Legado de medicina geral e familiar

Luís Pisco: coragem e visão, em Portugal e além fronteiras

João Sequeira Carlos1  2 
http://orcid.org/0000-0002-5998-2198

1. MD. Diretor do Serviço de Medicina Geral e Familiar, Hospital da Luz. Lisboa, Portugal.

2. Coordenador da Unidade Curricular de Cuidados de Saúde Primários, Faculdade de Medicina da Universidade Católica Portuguesa. Lisboa, Portugal.


Nesta rubrica da nossa Revista, dedicada ao legado de Medicina Geral e Familiar (MGF), prestamos homenagem a pessoas ímpares que deixam uma marca indelével na história da especialidade, inspirando colegas e gerações futuras de médicos de família. É nesta dimensão que deve ser justamente colocado Luís Pisco.

Luís Augusto Coelho Pisco, nasceu no Porto e estudou medicina em Coimbra. Depois de concluir a licenciatura ruma mais a sul, fixando-se nas Caldas da Rainha, onde chegou ao topo da carreira como chefe de serviço de MGF no Centro de Saúde da Foz do Arelho. Completou também o curso de medicina do trabalho na Escola Nacional de Saúde Pública, obtendo o título de especialista. É no Oeste que ainda hoje se sente orgulhosamente enraizado e feliz.

Conheci pessoalmente o Luís numa circunstância singular, que acabaria por ficar bem gravada numa grata memória comum. Foi em 2001, no Instituto da Qualidade em Saúde. Era na altura interno do primeiro ano e a minha inquietação, com intervenções na rede de médicos de família MGFamiliar, tinha chamado a atenção do então presidente da Associação Portuguesa de Médicos de Clínica Geral (APMCG). A conversa naquela tarde de Verão culminaria com o convite para integrar a lista candidata aos órgãos sociais da Associação, em eleições a realizar no final desse ano. Luís Pisco estava a terminar o primeiro mandato como presidente e na recandidatura queria apostar na integração de internos. Reconheci naquele momento a visão de uma pessoa com objetivos claros. As palavras partilhadas revelavam uma pessoa afável, determinada e corajosa. As suas ideias apontavam para uma dinâmica transformadora e mostravam um futuro exequível para a nossa especialidade. Aquele encontro fez-me embarcar numa viagem irreversível e tornou a minha amizade com o Luís inquebrável.

A vida associativa do Luís teve uma trajetória alicerçada numa robusta vivência nacional e internacional. Quando nos conhecemos tinha já grande experiência como dirigente da nossa Associação, integrando pela primeira vez os órgãos sociais em 1988 como membro do Conselho Fiscal. Em 1990 é eleito para a direção nacional. Em simultâneo teve uma importante participação em organizações internacionais, sendo desde logo apontado pela APMCG como representante nacional na Sociedade Internacional de Medicina Geral/Societas Internacionalis Medicinae Generalis (SIMG). Em passo sincronizado, e com grande sucesso, foi membro das direções da APMCG e da SIMG, conciliando funções de 1992 a 19983. Em 1999 assumia pela primeira vez a presidência da APMCG, sem nunca deixar a colaboração internacional.

Em 2002, Luís Pisco inicia o segundo mandato como presidente da Associação, altura em que tive o privilégio de integrar a direção nacional como vogal. Foi um período de grande aprendizagem e com desafios marcantes para a MGF. Passei a conviver com maior regularidade com o Luís e a cada reunião, evento e conversa pessoal ficava mais clara a ideia com que tinha ficado no encontro inicial. Estava perante um líder da nossa especialidade, um cidadão do mundo. Uma pessoa que transmitia confiança, delegava responsabilidades, partilhava tarefas e motivava todos os elementos da equipa a atingir os melhores objetivos para benefício da Associação e da MGF.

Recordo especialmente a primeira tarefa que me foi confiada e que era um dos principais objetivos do Luís - revitalizar o núcleo de internos da Associação. A sua vontade era genuína e transmitia a todos essa determinação. A APMCG tinha de estar assente na energia transformadora da geração mais nova de médicos de família. Envolvê-los logo no internato era fundamental. Foi neste contexto que delineámos duas estratégias, nas quais a liderança do Luís foi essencial: a curto prazo, organizar o 1.º Encontro Nacional de Internos de MGF e, a médio/longo prazo, colocar os jovens médicos de família em posição de destaque na Europa.

E assim, ainda em 2002, foi possível lançar o Encontro Nacional de Internos em modo pré-evento, no 7.º Congresso Nacional de Medicina Familiar. Beja acolhia então a primeira edição, que teve uma participação maciça de internos e também de orientadores de formação. O sucesso foi imediato e estava criada uma fórmula para que o evento se repetisse ininterruptamente nos anos seguintes. O Núcleo de Internos da APMCG consolidou-se e estava em condições de apontar ao segundo objetivo estratégico - elevar a dinâmica associativa dos mais novos à dimensão internacional. O apoio do Luís foi preponderante.

A transição entre a SIMG e a Sociedade Europeia de MGF/WONCA1 Europa foi consumada em 1995. A APMCG teve um papel fundamental neste processo ao acolher em 1994, no Estoril, uma reunião conjunta da SIMG com a WONCA, considerada fulcral para a fundação da WONCA Europa2 um ano depois. Mais tarde, na viragem de século, Luís Pisco assume um lugar de destaque como membro da direção da Sociedade Europeia de MGF/WONCA Europa em dois mandatos consecutivos, 2001-2004 e 2004-2007, em representação do EQuiP (European Working Group on Quality Assurance - Sociedade Europeia para a melhoria da Qualidade em Cuidados de Saúde Primários).

É neste contexto associativo internacional que se criaram as condições para envolver Portugal na organização de uma rede europeia de internos e jovens médicos de família. Em 2003, o Luís coloca a Associação em contacto com o Colégio Holandês de MGF, num trabalho de preparação para o que viria a ser o evento percursor das pré-conferências Junior Doctor, realizado um ano depois no Congresso Europeu da WONCA em Amesterdão. Poucos meses após serem dados os primeiros passos com visibilidade, Luís Pisco convida o grupo de internos que se constituiu a reunir em Lisboa e, deste modo, 2005 marcaria a fundação do Movimento Vasco da Gama5. Tive o privilégio de integrar o núcleo fundador, reconhecendo o apoio decisivo do Luís no processo e percebendo que efetivamente a Associação sempre foi e será uma organização de projeto, de ação e intervenção. Ainda hoje se fala do importante papel de Portugal na organização de grupos de internos e jovens médicos de família em todas as regiões da WONCA.

Em simultâneo com estes desenvolvimentos internacionais, no plano interno viviam-se momentos de alguma apreensão e, no ano em que a Associação celebrava os 20 anos4, pairavam algumas ameaças nos Cuidados de Saúde Primários. Luís Pisco referiu na altura: “Sem o nosso empenho, sem a nossa colaboração ativa, sem a nossa determinação não será possível reverter a atual situação e ficaremos a assistir ao definhar inexorável daquilo que não terá passado afinal de um sonho que, coletivamente, em tempo tivemos”. Uma mudança de ciclo político em 2005 inverte a situação e gera a oportunidade de iniciar uma profunda mudança. Ainda nesse ano, Luís Pisco é nomeado pelo Ministério da Saúde para liderar a Unidade de Missão responsável pela Reforma dos Cuidados de Saúde Primários, função que desempenhou com brio e dedicação vigorosa até 2010.

Num percurso imperturbável, o Luís foi determinante na consolidação da Associação como organização de intervenção socioprofissional, de influência construtiva na política de saúde e de desenvolvimento técnico-científico. Numa perspetiva histórica poder-se-á apontar que estes princípios tiveram o seu corolário naquele momento, possibilitando a operacionalização do que a Associação sempre defendera para os Cuidados de Saúde Primários. Muitos colegas, políticos e jornalistas indicam que terá sido um dos pontos altos da APMGF6, colocando irreversivelmente a MGF e os Cuidados de Saúde Primários em lugar cimeiro da agenda do setor da Saúde.

Recentemente, na celebração dos 40 anos da APMGF, Luís Pisco apontou diversas ocasiões especiais na sua vivência associativa - os Encontros Nacionais com a presença de muitas personalidades do setor da Saúde e de titulares de cargos políticos, o lançamento da Revista e do Jornal da Associação e as diversas distinções que recebeu. Contudo, não tem dúvidas em apontar a distinção que mais o marcou. Em 2007 foi atribuído a Luís Pisco o Honorary Fellowship do Royal College of General Practitioners. Um título pessoal que consagrou coletivamente a MGF portuguesa.

Mas é justo referir outras honras que simbolizam o reconhecimento do seu empenho na defesa da MGF e de Cuidados de Saúde Primários de qualidade. No plano internacional é distinguido em 2007 com o mais alto galardão atribuído pela WONCA - Fellow of the World Association of Family Doctors. Em Portugal, no dia Mundial da Saúde de 2009, recebe a Medalha de Ouro do Ministério da Saúde.

Faltou provavelmente uma distinção que seria inteiramente merecida - o Five Star Doctor Award, prémio da WONCA concedido em apreço pela trajetória profissional de médicos de família excecionais. Numa aplicação simbólica à carreira profissional do Luís seriam cumpridos todos os critérios com elevada pontuação. É um médico de família reconhecido entre pares e na sua comunidade de pacientes, com cuidados de qualidade e rigor técnico-científico. É exímio na tomada de decisões, com princípios éticos e deontológicos irrepreensíveis. É um excelente comunicador, motivando equipas e capacitando pessoas para a melhoria contínua da saúde. É um líder, promovendo transformações positivas com envolvimento individual e coletivo em benefício da população. É um admirável gestor com trabalho intersetorial para o desenvolvimento do sistema de saúde em colaboração com diversas organizações, tendo em vista a satisfação de necessidades dos cidadãos.

Apesar de estarem mais afastadas da esfera associativa não se podem olvidar outras etapas de vida do Luís. Foi diretor do Instituto da Qualidade em Saúde (1999-2005). Colaborou como docente convidado da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, na unidade curricular de MGF (2011-2020). Foi vice-presidente do Conselho Diretivo da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (2011-2017), assumindo depois a presidência de 2017 até à sua aposentação em 2023.

Felizmente o Luís continua a participar com empenho em diversos projetos e iniciativas, permitindo que muitos continuem a beneficiar dos seus conhecimentos e da sua vasta experiência. De sublinhar o seu entusiasmo ao aceitar colaborar na organização do Congresso Mundial de Médicos de Família, que será realizado em Lisboa no próximo ano. E ainda a cooperação que mantém com o país irmão do outro lado do Atlântico. Desde o ano 2000 tem uma colaboração regular com o Brasil, em estreita ligação ao Ministério da Saúde, à Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro e à Sociedade Brasileira de Medicina Familiar e Comunitária. Tem participado em programas de formação na área da Qualidade e no desenvolvimento do Programa de Saúde da Família. É assumido publicamente por diversas personalidades o importante papel que teve na reforma da atenção primária de saúde no Rio de Janeiro.

Decorre de todas estas parcelas um somatório de grande valor. Em Portugal e além-fronteiras, o Luís teve visão, perseverança, coragem e equanimidade na busca incessante de melhores condições para o exercício pleno da MGF, contribuindo para o desenvolvimento da especialidade e para a solidez das organizações que liderou e com que colaborou. Luís Pisco tem um legado indelevelmente presente em todos nós, que será transmitido para as gerações futuras de médicos de família. Cabe-nos dar testemunho desse legado e honrá-lo na nossa profissão.

Este pequeno texto reflete uma perspetiva pessoal sobre o Luís. Uma visão entre muitas que poderiam ser dadas. Uma personalidade ímpar como Luís Pisco permite uma visão diversa sobre a sua biografia, que não se esgota num pequeno artigo. Merecia antes um livro, em que família, colegas e amigos pudessem contribuir com um capítulo. Talvez essa obra se aproximasse da magnitude do que o Luís deu ao nosso sistema de saúde, à Associação e a todos os que com ele se cruzaram e a quem continua a caminhar ao seu lado.

Referências bibliográficas

1. WONCA Global Family Doctor. Available from: https://www.globalfamilydoctor.com/Links ]

2. WONCA Europe [homepage]. Available from: https://www.woncaeurope.org/Links ]

3. Tavares JF. Os primeiros dez anos da Associação Portuguesa dos Médicos de Clínica Geral, 1983-1993. Lisboa: Departamento Editorial da APMCG; 1997. [ Links ]

4. Alves MV, Ramos V; APMGF. Medicina geral e familiar da memória, 20 anos. Lisboa: MVA Invent; 2003. [ Links ]

5. Vasco da Gama Movement. The Vasco da Gama movement: 10 years sai-ling, much more to discover. Lisboa: APMGF; 2014. Available from: https://apmgf.pt/cento_d_documentos/livro-the-vasco-da-gama-movement-10-years-sailing-much-more-to-discover/ [ Links ]

6. Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar. APMGF - 40 anos de histórias. Lisboa: APMGF; 2023. Available from: https://fliphtml5.com/pudjc/pcey/Livro_40_Anos_de_APMGF/ [ Links ]

Recebido: 22 de Outubro de 2024; Aceito: 22 de Outubro de 2024

Endereço para correspondência João Sequeira Carlos E-mail: joaosequeiracarlos@sapo.pt

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