Caro Editor,
Lemos com muito interesse o artigo Inércia terapêutica na osteoporose em mulheres pós-menopáusicas.1
Se a incidência da osteoporose no nosso país tem vindo a aumentar2 e o custo individual, social e económico das fraturas osteoporóticas é tão grande, 2 como se explica a inércia na terapêutica da osteoporose?
Para começar, a osteoporose, que é uma doença silenciosa, está subdiagnosticada, logo, subtratada. 1
É provável que o FRAX@Port, uma via validada no nosso país para decidir pelo tratamento farmacológico da osteoporose, 3 seja pouco utilizado pelos médicos de família (MF). 1
Acreditamos que outro entrave se prenda com o próprio processo de medicalizar na osteoporose, de uma grande complexidade, que de forma muito simplista, engloba: 2
Escolher o grupo farmacológico preferencial (tendo em conta, por exemplo, critérios de risco alto ou muito alto de fratura ou antecedentes de insuficiência renal) e a via de administração mais conveniente;
Decidir se é necessário suplementar com cálcio e/ou vitamina D;
Monitorizar a adesão, a ocorrência de efeitos adversos e averiguar se aquele medicamento continua a ser o mais adequado;
Avaliar a eficácia, que engloba critérios próprios de resposta em termos de densidade mineral óssea e/ou a ocorrência de novas fraturas de fragilidade;
Aferir se o utente reúne condições para drug holiday (no caso dos bifosfonatos) ou switch de grupo terapêutico;
Ponderar a pertinência de articulação com uma especialidade hospitalar, como a reumatologia.
Mas esta sequência, ainda assim, não é uma panaceia. Aliás, é transversal na literatura que os médicos se confrontam frequentemente com casos “fora da caixa”, sendo que para a melhor decisão conta em muito o juízo clínico. 2,4-5
4. Na literatura estão ainda descritos como limitadores da medicalização, por parte dos médicos, os seguintes: falta de tempo, 4 de conhecimento ou desinformação, 4 pouca valorização da doença e/ou das suas complicações, 1 parca familiaridade com os fármacos e sua gestão, 1 dúvidas sobre a eficácia da medicação, 4 medo de efeitos adversos4 ou ainda a crença que a esperança média de vida expectável para aquele utente não justifica a introdução de medicação antiosteoporótica. 1
Apesar do processo que culmina na medicalização da osteoporose (e a inclui!) ser, como se explicou, muito desafiante, não nos podemos esquecer que o MF, nomeadamente pela continuidade e por ser um agente de medicina preventiva, 6 é quem está melhor posicionado para o liderar. 4
Como se pode então combater a inércia? Sugerimos que:
Se aumente a formação no tema. 1 Seria pertinente que no programa de Internato de Medicina Geral e Familiar houvesse um estágio obrigatório de reumatologia?
Se reproduza o que os autores1 fizeram. Ou seja, investigar sobre o assunto, envolver a unidade onde se trabalha e publicar, para que o conhecimento chegue a um público mais amplo.
Os MF tenham acessível, no seu dia-a-dia, os critérios para o tratamento farmacológico da osteoporose da Sociedade Portuguesa de Reumatologia. 1
Os sistemas de registo clínico eletrónico usados na prática clínica incluam:
O cálculo do FRAX@Port. Sendo que o computador poderia preencher automaticamente alguns dos fatores de risco clínico3 que a ferramenta contém, como a idade, género, peso, altura, hábitos tabágicos e etílicos e ≥3 meses de utilização de corticoides (por interligação com a PEM).
Avisos no caso da falta de preenchimento do FRAX@Port.
Se inclua o indicador de monitorização e contratualização “Proporção de utentes com o diagnóstico de osteoporose” (n.º 222)7 na avaliação das Unidades Funcionais (UF). O indicador n.º 372,8 “Taxa de internamentos por fratura do colo do fémur” pertence ao IDG (Índice de Desempenho Global).9 Este pretende “monitorizar o impacto da ação das diferentes UF (…) na diminuição das quedas (…)”. Não obstante a importância da prevenção das quedas, estranha-se que o termo osteoporose nunca surja no BI (Bilhete de Identidade) deste indicador…
Ao nível organizacional se criem grupos multidisciplinares dinâmicos em osteoporose, como podem ser as UCF (Unidades Coordenadoras Funcionais) ou os FLSs (fracture liaison services). 5
Resposta do editor
Caras Colegas,
Levantam um conjunto de reflexões relevantes a propósito do artigo recentemente publicado na RPMGF sobre a inércia terapêutica, aqui no caso da osteoporose.
A inércia terapêutica é um problema frequente na medicina geral e familiar e que se prende com a relação médico-doente e com a intimidade de que se reveste no ambiente dos cuidados de saúde primários. Como nas nossas relações familiares e sociais, tendemos a enquadrar a realidade na simpatia com que interagimos, valorizando ou desvalorizando os factos concretos na subjetividade com que os olhamos. Aceitamos frequentemente justificações pouco racionais, como o bacalhau mais salgado do almoço, na subida tensional da consulta ou as festas de família na elevação do colesterol, o que não significa propriamente desvalorizar o risco cardiovascular, ainda que seja esse o resultado da inação, com impacto na morbilidade e até na mortalidade.
A osteoporose é, de si, uma doença desvalorizada porque acompanha o envelhecimento, pela falta de visibilidade dos sintomas, pelo viés de género, pelo caráter exógeno que as fraturas normalmente apresentam e por muito desconhecimento geral.
A parte do desconhecimento resolve-se pela formação. É discutível a necessidade da formalização de estágios curriculares específicos na estrutura nuclear do internato, mas já está prevista a flexibilidade da formação em correspondência com a avaliação das lacunas de conhecimento e treino, numa atitude de responsabilização do interno pelo seu percurso formativo e do orientador de formação na avaliação destas necessidades complementares.
A formação não se esgota no internato de especialidade. A semivida do conhecimento médio é de cerca de cinco anos e tem vindo a diminuir, sobretudo nas áreas mais expostas à inovação tecnológica e digital. Há muito a fazer na generalidade dos centros de saúde, muitas vezes mais ocupados com questões administrativas e de contratualização do que com o desenvolvimento dos seus ativos, incluindo a formação e a investigação. Faz parte do perfil dos médicos especialistas, chamados assistentes na carreira médica atual, a participação em atividades de investigação. A realidade aponta, no entanto, para uma dificuldade prática de concretização pela inexistência de condições, como uma carga horária específica dedicada, a valorização curricular e salarial e a estrutura científica de apoio. Um local onde se faz investigação é sempre um espaço atento à inovação e capaz de proporcionar melhor orientação aos seus doentes.
A medicina de hoje já não está confinada ao consultório médico. Vivemos num tempo de multidisciplinaridade, onde outros profissionais são chamados a intervir responsavelmente na área da saúde. É um bom exemplo a criação de estruturas capazes de alavancar o potencial de saúde e combater os fatores de risco, como os espaços de exercício físico pelas autarquias, os ambientes livres de fumo pela regulamentação geral do país ou as oportunidades de educação para a saúde e reforço da literacia na comunicação social ou nas telenovelas das televisões. Na área mais interna ao setor da saúde é fundamental que cada profissional assuma as funções para que se encontra capacitado, em complementaridade e cooperação, reforçando o valor dos percursos dos doentes nos serviços de saúde: a medicina geral e familiar na prevenção, rastreios e orientação da osteoporose não complicada, as especialidades hospitalares nas complicações e insucessos terapêuticos, os outros profissionais de saúde em cada uma das suas áreas de diferenciação.
Uma medicina de qualidade é aquela que é capaz de prestar os melhores cuidados aos doentes que deles necessitam. Este é um princípio ético e deontológico a que todos nos comprometemos quando entramos para a profissão médica. Não depende de sistemas de avaliação ou contratualização, ainda que ter a possibilidade de monitorizar continuamente os nossos processos possa ser um importante facilitador da melhoria. Um indicador de prevalência de osteoporose pode ter interesse para a organização de serviços pela criação de estruturas adaptadas ou de processos específicos, mas muito pouco conta para a avaliação da qualidade. Um indicador de resultado como a prevalência de quedas tem interesse para avaliar as estruturas existentes e os processos em curso, ajudando a corrigir as inconformidades, mas não pode ser um indicador de contratualização, na medida em que depende de múltiplos fatores que não apenas do trabalho dos cuidados de saúde primários. Esta é uma confusão conceptual que tem regido todo o processo de contratualização nas várias siglas que já conheceu desde a reforma de 2006. Enquanto não for corrigido, vai continuar a afastar-se de um verdadeiro sistema de qualidade e a provocar a habitual repulsa sobre os indicadores a que muitas vezes assistimos.
Paulo Santos, MD, PhD
Editor-chefe da RPMGF.














