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Revista Nutrícias

versão On-line ISSN 2182-7230

Nutrícias  no.16 Porto mar. 2013

 

ARTIGO DE REVISÃO

Perfil Lipídico da Carne Vermelha e Doença Cardiovascular

Lipid Profile of Red Meat and Cardiovascular Disease

 

Elisabete Oliveira1; Fernando Pichel2

1Licenciada em Ciências da Nutrição
2Coordenador, Unidade de Nutrição, Centro Hospitalar do Porto, E.P.E.

Endereço para correspondência

 

RESUMO


As doenças cardiovasculares são a principal causa de morte, por doenças não transmissíveis, matando mais que os tumores e as doenças respiratórias crónicas. Tratando-se de uma doença tão relevante, que em Portugal é responsável por 37% das mortes anuais, existe um conjunto de medidas criadas para intervir sobre os principais factores de risco: a tensão arterial elevada, a obesidade, a hiperglicemia e a hiperlipidemia. Algumas destas medidas focam-se na mudança do estilo de vida, nomeadamente na alteração de certos hábitos alimentares como o consumo de carne, especialmente, de carne vermelha. Este alimento é considerado uma fonte de ácidos gordos saturados e colesterol, componentes que intervêm na aterogénese, uma doença que contribui para as doenças cardiovasculares. No entanto, o perfil de saturação dos ácidos gordos da carne vermelha varia de acordo com um conjunto de factores extrínsecos e intrínsecos ao animal que a originou. A análise da literatura mais recente revela duas conclusões opostas: uma meta-análise conclui que não há associação entre o consumo de carne vermelha e a mortalidade por doenças cardiovasculares, enquanto que dois estudos coorte prospectivos concluem que existe uma associação positiva. Quanto à relação entre os ácidos gordos e o risco de doenças cardiovasculares há estudos que afirmam não existir uma associação entre o consumo de ácidos gordos saturados e as doenças cardiovasculares. Os ácidos gordos monoinsaturados também não estão associados com as doenças cardiovasculares, estando apenas os ácidos gordos polinsaturados associados à redução do risco de doenças cardiovasculares.

Palavras-Chave: Perfil lipídico, Carne vermelha, Doença cardiovascular, Ácidos gordos saturados, Gordura

 


 

ABSTRACT

Cardiovascular diseases are the leading cause of death for non-communicable diseases, killing more than tumors and chronic respiratory diseases. Having such impact, and being responsible for 37% of Portuguese deaths annually, there are a set of measures designed to intervene on the main risk factors: high blood pressure, obesity, hyperglycemia and hyperlipidemia. Some of these measures focus on changing lifestyle, particularly in changing food habits and consumption of meat, especially red meat. This food is considered a source of saturated fatty acids and cholesterol, components involved in atherogenesis, a disease which contribute to cardiovascular diseases. However, the saturation profile of red meat’s fatty acids changes according to a set of extrinsic and intrinsic factors related to the animal. The analysis of recent literature reveals two opposite conclusions: a meta-analysis concludes that there is no association between red meat consumption and mortality from cardiovascular diseases, while two prospective cohorts conclude that there is a positive association. As for the relationship between fatty acids and cardiovascular diseases risk, there are studies concluding that there is no association between the consumption of source of saturated fatty acids and cardiovascular diseases. Also monounsaturated fatty acids are not associated with cardiovascular disease being polyunsaturated fatty acids the ones associated with the reduction of such risk.

keywords: Lipid profile, Red meat, Cardiovascular disease, Saturated fatty acids, Fat

 


 

INTRODUÇÃO
As doenças cardiovasculares (DCV) são a principal causa de morte, por doenças não transmissíveis, em todo o mundo, sendo a tendência para o agravamento desta doença positiva. Estima-se que o número anual de mortes por DCV aumente de 17 milhões, em 2008, para 25 milhões em 2030 o que demonstra a necessidade de se implementar medidas preventivas que impeçam este acontecimento (1). Algumas dessas são recomendações que incentivam a redução do consumo de gordura saturada e de colesterol, de modo a que haja uma alteração positiva na concentração das lipoproteínas e dos lípidos plasmáticos. Por este motivo, a população é aconselhada a reduzir o consumo de alguns alimentos, nomeadamente, de carnes vermelhas.
Em Portugal, verifica-se que o consumo de carne per capita, por ano é liderado por um tipo de carne vermelha, a carne suína, seguindo-se a carne de animais de capoeira e a de bovinos. Esta preferência tem sido constante ao longo do tempo, mas a redução do consumo de carne vermelha (de porco e bovina) é evidente desde 2009, assim como é perceptível o ligeiro aumento, desde 2006, do consumo de carne branca (de animais de capoeira) (2). Apesar destas alterações, os portugueses ainda não se enquadram nas recomendações alimentares já que, em 2011, cada habitante consumiu diariamente cerca de 290g de carne desafiando as recomendações alimentares de 45 a 135g por dia, não só de carne, mas também de peixe e ovos (2, 3).
Estes dados salientam a importância de se analisar o impacto do consumo de carne vermelha na incidência das DCV. Com este estudo pretende-se analisar a literatura mais recente focando a relação existente entre o perfil lipídico da carne vermelha e as DCV.
Doenças Cardiovasculares
Mundialmente as DCV são a maior causa de morte por doenças não transmissíveis (48%) seguidas pelos tumores (21%) e pelas doenças respiratórias crónicas (12%) (1). Portugal não é excepção e as DCV são responsáveis por 37% das mortes anuais (4). Trata-se de uma doença multifactorial, resultante do actual estilo de vida, que se caracteriza por vários factores de risco metabólicos/fisiológicos, nomeadamente: a tensão arterial elevada, a obesidade, a hiperglicemia e a hiperlipidemia (1). Estes contribuem para o desenvolvimento de placas ateroscleróticas, a chamada aterosclerose, uma doença que progride numa série de estádios, sendo o primeiro a deposição de colesterol na parede da artéria (5, 6). Na aterogénese, as duas classes de lipoproteínas mais importantes são as lipoproteínas de baixa densidade (LDL) e as lipoproteínas de muito baixa densidade (VLDL) (7). É por esta razão que níveis elevados de LDL são um factor preditor de futuros eventos cardiovasculares em humanos, e os níveis de colesterol plasmáticos uma medida de controlo do estado de saúde (8).
Tudo isto é influenciado pelo estilo de vida, em particular pela alimentação. Assim, a mudança de hábitos alimentares é fundamental na prevenção das DCV e, por esta razão, existe um conjunto de recomendações nutricionais e alimentares direccionadas para a população. Uma que requer especial atenção é o consumo de lípidos, principalmente o de ácidos gordos saturados (AGS).
Enquanto algumas entidades apenas recomendam que a ingestão AGS seja o mais baixa possível (9, 10), outras recomendações especificam a quantidade de AGS a ser consumida (menos de 7% ou 10% do valor energético total), salientam a sua substituição por outros ácidos gordos (monoinstaurados e polinsaturados) e aconselham uma ingestão de colesterol inferior a 200 ou 300mg por dia (11-13). No geral, as recomendações apelam à redução do consumo de AGS e de colesterol, aspecto em que os portugueses não são o exemplo, pois entre 2003 e 2008, obtiveram cerca de 16% da sua energia pelo consumo de AGS (2). Por sua vez, de 2005 a 2008, entre 33 e 50% dos adultos americanos obtiveram menos de 10% da sua energia pelo consumo de AGS (14). Como 60% destes AGS provieram da ingestão de carne e lacticínios, a importância de divulgar recomendações alimentares que incentivem a redução do consumo destes alimentos prevaleceu (15). Em particular, a carne começou a ser caracterizada não só pela sua cor, mas também pelo seu teor em AGS e colesterol.
Carne Vermelha e Doença Cardiovascular
Em 2010, a American Heart Association (AHA) publicou uma revisão sistemática e meta-análise de 20 estudos (17 coortes prospectivas e 3 caso-controlo) perfazendo mais de 1 000 000 de participantes. Os resultados demonstraram que a ingestão de carne vermelha (não processada) não está significativamente associada com o aumento do risco de doença coronária (16).
Contudo, o consumo diário de 50 g de carne vermelha processada (como chouriços e enchidos) está associado a um aumento em 42% do risco de doença coronária (16).
Outros estudos, posteriores à publicação da AHA, contrariaram estes resultados revelando a possibilidade de a carne vermelha (processada e não processada) aumentar o risco de DCV (Tabela 1). Nestes estudos concluiu-se que o risco de morte por DCV aumentava com o consumo diário de uma porção de carne vermelha (17, 18).
As associações obtidas pelos estudos observacionais avaliam diversos tipos de carne, mas a principal razão pela qual esta deve ser reduzida da dieta é devido a uma característica comum a todas: o teor em AGS, um nutriente que eleva os níveis de colesterol LDL (C-LDL), um dos factores de risco da DCV.
Perfil Lipídico da Carne Vermelha
Analisando o perfil lipídico da carne vermelha portuguesa crua observa-se que, em média, esta é constituída por 38% de AGS, 39% de ácidos gordos monoinsaturados (AGMI), 8% de ácidos gordos polinsaturados (AGPI), 4% de AGT e 0,07% de colesterol (19). Contudo, esta categorização é simplista já que os vários tipos de ácidos gordos variam qualitativa e quantitativamente de animal para animal. Por exemplo, na carne suína e bovina o ácido oleico é o ácido gordo predominante, enquanto que os ácido palmítico e o esteárico são os principais AGS (15, 20-22).
Este perfil é influenciado por uma série de factores intrínsecos e extrínsecos ao animal, como a alimentação, a genética, o corte da carne e a gordura aparada, que não só condicionam a quantidade de ácidos gordos como a qualidade dos mesmos (20, 21, 23). Vários estudos demonstraram que, em relação ao gado produzido no pasto, o gado alimentado com ração origina carne com um teor mais elevado de AGS, AGMI e AGPI (21).
Quando a alimentação dos animais para consumo é enriquecida em AGPI a carne tende a ser mais pobre em AGS e AGMI, mas mais rica em AGPI (24, 25); Assim, os animais que se alimentam no pasto produzem carnes com níveis de ácido eicosapentaenóico (EPA) e ácido docosahexaenóico (DHA) superiores aos animais alimentados com cereais, uma vez que a erva contém 60% de ácido alfa-linolénico (AGPI ómega 3) e os cereais são ricos em ácido linoleico (AGPI ómega 6) (20, 21, 26).
Para além da quantidade de ácidos gordos também a qualidade dos mesmos é afectada pela alimentação do animal. A carne proveniente de animais alimentados no pasto possui um teor mais elevado de ácido esteárico e um teor mais baixo de ácido mirístico e palmítico (23).
O consumo de carne bovina proveniente de animais alimentados no pasto, pode contribuir para o aumento dos AGPI ómega 3. Num estudo duplamente cego e randomizado, 40 indivíduos saudáveis consumiram, por dia, cerca de 67g de carne bovina. No final, quando comparados com os controlos, os casos (ou seja, os indivíduos que consumiram a carne proveniente dos animais alimentados no pasto) apresentaram valores de ácido esteárico, de ácido alfa linolénico e de DHA significativamente superiores (26).
A importância destas variações quantitativas e qualitativas dos ácidos gordos revela-se quando se analisa o modo como estes influenciam as lipoproteínas plasmáticas e, consequentemente, a DCV.
Ácidos Gordos e Lipoproteínas
O consumo de AGS aumenta o C-LDL (15, 21, 27)considerando-se que, por cada 1% de aumento na energia proveniente dos AGS, os níveis de C-LDL aumentam entre 1,3 e 1,7 mg/dL (0,034 a 0,044mmol/L) (8, 15, 28). Contudo, nem todos os AGS têm o mesmo efeito nos níveis de colesterol plasmático (21), principalmente quando se compara a substituição de ácidos gordos por hidratos de carbono (Tabela 2) ou a substituição de certos ácidos gordos por outros ácidos gordos.
Os dados da Tabela 2 demonstram que os AGS láurico (C12:0) e mirístico (C14:0) são os responsáveis pelo maior aumento do CT e C-LDL. No entanto, o ácido láurico é também o único AGS que diminui (na mesma proporção que o AGMI ácido oleico e que os AGPI) a razão CT, C-HDL devido ao aumento do C-HDL. Ademais, todos os AGS aumentam o C-LDL, mas também o C-HDL, à excepção do ácido esteárico (C18:0) que diminui ligeiramente o C-LDL (21), efeito que alguns consideram neutro (15, 21, 28-30).
Dos AGMI, o ácido oleico (C18:1), o principal ácido gordo presente na carne suína e bovina, promove a diminuição do CT, do C-LDL e da razão CT, C-HDL quando comparado com o consumo de hidratos de carbono (15). O ácido oleico é ainda responsável pelo aumento do C-HDL. Os AGPI, afetam os lípidos plasmáticos da mesma forma que os AGMI, mas com um impacto superior.
Como quando se substitui os AGS por hidratos de carbono refinados, o C-LDL diminui, mas o colesterol contido nas HDL (C-HDL) também diminui e os triglicerídeos aumentam, vários autores consideram que estes efeitos podem ser tão prejudiciais para a doença cardiovascular como o consumo de AGS (31-33).
A substituição dos AGS por outros ácidos gordos reflete-se em diferentes efeitos sobre o colesterol.
Quando os AGS são substituídos por AGMI, o C-HDL aumenta (12). Em concreto, quando essa substituição é pelo AGMI ácido oleico, ocorre a diminuição do CT e do C-LDL (15). Quando os AGS são substituídos por AGPI, o C-HDL e o C-LDL diminuem (12).
Estes efeitos são determinantes na ocorrência de dislipidemia uma vez que, níveis elevados de C-LDL acompanhados por baixos níveis de C-HDL aumentam o risco de aterosclerose enquanto que, baixos níveis de C-LDL e níveis elevados de C-HDL diminuem o risco de DCV (20).
Ácidos Gordos e Doença Cardiovascular
O consumo total de gordura não está associado com eventos ou mortalidade por doença coronária (33, 34). A associação existe quando se consideram os diferentes tipos de ácidos gordos.
No caso dos AGS são múltiplos os estudos que relacionam o seu consumo com a DCV: Numa revisão sistemática foi concluído que um maior consumo de carne, de AGS e AGPI não estão significativamente associados com a DCV (a literatura apenas satisfazia 2 dos 7 critérios de Bradford Hill) (35). Uma meta-análise analisou 21 estudos coorte prospectivas que decorreram, em média, durante 14 anos e acompanharam cerca de 348000 indivíduos inicialmente saudáveis. Com esta análise concluiu-se que não existe uma associação positiva entre o consumo de AGS e a doença coronária ou DCV (36). No Japão, um coorte prospectiva de 14 anos, abrangendo cerca de 58500 participantes, com idades compreendidas entre os 40 e os 79 anos, concluiu que o consumo de AGS esta inversamente associado com mortalidade por acidente vascular cerebral. Os participantes que consumiam entre 17,9 e 40g por dia de AGS eram aqueles que se encontravam com 31% menor risco de acidente vascular cerebral quando comparado com os indivíduos cujo consumo era inferior a 11g por dia. Este consumo mais elevado representou 11,7 e 13,9% do valor energético total nos homens e nas mulheres, respectivamente. Uma possível explicação para estes resultados baseia-se no facto de o baixo consumo de gordura saturada poder diminuir não só o C-LDL, mas também o benéfico C-HDL (37).
O maior estudo de intervenção realizado foi o conhecido Women’s Health Iniciative onde participaram 48000 mulheres pós-menopausa. As participantes no grupo de intervenção (com uma dieta baixa em gordura) consumiam 9,5% de AGS, menos AGPI e mais hidratos de carbono do que o grupo de controlo, que consumia 12,4% de AGS. Após 6 anos de intervenção, não houve diferenças significativas entre os grupos na incidência de doença coronária e DCV (38).
Os AGMI, como substitutos do consumo de AGS, também não estão significativamente associados com a mortalidade por doença coronária (34, 39). A redução do risco de DCV surge com a substituição dos AGS por AGPI (36, 38). Com a análise de 11 coortes prospectivas verificou-se que a diminuição em 5% do consumo de AGS, com simultâneo aumento do consumo de AGPI, resultava na diminuição do risco de doença coronária em 13%. Conclusões semelhantes foram obtidas numa meta-análise de estudos experimentais (39).
Os hidratos de carbono, ao substituírem os AGS, podem ser prejudicais à DCV, principalmente quando são alimentos de elevado índice / carga glicémica (35). Numa análise de 11 estudos coorte prospectivas, com cerca de 345000 participantes, associou-se o aumento do risco de doença coronária em 7%, por cada 5% de aumento no consumo de hidratos de carbono como substituto dos AGS (39).
Outras gorduras, como os ácidos gordos trans, o ácido linoleico conjugado e o colesterol, presentes em quantidades menos significativas na carne vermelha, também são analisadas no risco de DCV. Considera-se que os AGT aumentam o risco de doença coronária, e que o efeito adverso sob as lipoproteínas e lípidos plasmático é semelhante para os AGT provenientes da carne ou para os obtidos industrialmente (10, 15). Contudo, a literatura não apresenta resultados suficientes para distinguir as consequências entre o consumo de AGT presentes na carne de ruminantes e o consumo de AGT industriais (10, 41). O papel do ácido linoleico conjugado na DCV também não está definido (10).
Já o colesterol é um esteroide cujo consumo influencia o C-LDL, mas que produz um efeito pouco significativo quando comparado com o desencadeado pelos ácidos gordos, principalmente os AGS, que são o foco da prevenção da DCV (10, 12).

ANÁLISE CRÍTICA
As actuais recomendações alimentares e nutricionais baseiam-se principalmente em estudos observacionais, que apresentam certas limitações: (1) apenas permitem efectuar associações e não estabelecer relações causa-efeito; (2) tratando-se de estudos de longa duração, os métodos de produção dos alimentos podem sofrer alterações reflectindo-se numa mudança de composição quantitativa e/ou qualitativa dos nutrientes que os caracterizam; (3) a recolha dos hábitos alimentares é, normalmente, obtida pela aplicação de questionários de frequência alimentar, com regularidade aplicados uma só vez ao longo de estudos que podem decorrer durante décadas.
Alguns estudos não definem carne vermelha, o que não só dificulta a transposição dos resultados a outros países, mas também a distinção entre carnes vermelhas processadas e não processadas. Contudo, os autores que esclarecem este conceito, com frequência, consideram o bacon, o hot dog e o hamburger como carne vermelha não processada. Este problema revela-se importante, não só porque o bacon, o hot dog e o hamburger são carnes processadas cuja composição lipídica difere das outras carnes vermelhas, mas também porque são alimentos consumidos com frequência pelos americanos, o que interfere com a aplicabilidade destes estudos na população portuguesa. Assim, dado que a associação entre o consumo de carne vermelha e a mortalidade por DCV é positiva (de acordo com os estudos que consideram o hamburger carne vermelha não processada), mas modesta, seria importante analisar a relevância destes dados na população portuguesa.
Analisando o perfil lipídico da carne constata-se que existe uma complexa conjugação de ácidos gordos, uns com efeitos desejáveis no colesterol plasmático e outros com efeitos considerados prejudiciais.
O ácido oleico, o AGMI que domina na carne bovina e suína (as carnes vermelhas mais consumidas em Portugal), possui um efeito benéfico sobre os lípidos plasmáticos dado que diminui o C-LDL e o CT.
Quanto aos AGS predominantes nas carnes vermelhas, o ácido palmítico e esteárico, estes causam efeitos distintos sobre as lipoproteínas plasmáticas: o primeiro produz um efeito indesejável no C-LDL, e o segundo um efeito desejável. Portanto, 38% da gordura da carne vermelha são AGS, mas só uma porção desses ácidos gordos é que elevam o C-LDL (e também o C-HDL). Além disso, esta composição é dependente do modo de criação do animal. Se o animal se alimentar no pasto, há um aumento do AGS ácido esteárico e dos AGPI (que estão associados positivamente com a diminuição do risco de DCV).
Novos estudos revelam que o consumo de AGS não está associado com a DCV, o que coloca as justificações para a redução do consumo de carne vermelha em causa. Verifica-se que certos AGS elevam o C-LDL, um factor determinante no aparecimento da aterosclerose, por sua vez decisiva na DCV, porém esta lógica não é linear. O estudo japonês, já referido, corrobora isso mesmo e demonstra que, na população japonesa, o consumo de AGS acima dos 10% é relevante na redução do risco de DCV, já que o consumo de AGS não só aumenta o C-LDL, mas também o C-HDL. Uma análise mais pormenorizada dos alimentos fornecedores de AGS na população japonesa seria importante para compreender os tipos de AGS mais consumidos.
As recomendações salientam a importância de substituir os AGS por AGPI devido aos efeitos nefastos que advém da substituição de AGS por hidratos de carbono. Este facto é importante, dado que nos Estados Unidos da América as duas principais fontes de energia, entre 2005 e 2006, foram as sobremesas elaboradas com cereais e os pães fermentados – alimentos ricos em hidratos de carbono. No entanto, a dislipidemia não é o único factor a influenciar a DCV, pelo contrário, é um fio de uma complexa rede de doenças que interagem entre si de forma pouco perceptível. E, do mesmo modo que a carne deve ser considerada no seu todo, também a doença cardiovascular deve ser abordada de várias perspectivas.

CONCLUSÕES
A carne vermelha é um conjunto complexo de ácidos gordos que, quando separados e analisados individualmente, apresentam diferentes efeitos sob as lipoproteínas plasmáticas. Os ácidos gordos saturados têm sido divulgados como prejudiciais para a saúde devido à sua relação com a doença cardiovascular. Contudo, novos estudos concluem que não existe associação entre eles. Os ácidos gordos monoinsaturados também não estão associados com a doença cardiovascular, estando apenas os ácidos gordos polinsaturados associados à redução do risco de doença cardiovascular.
A associação da carne vermelha com a mortalidade por doença cardiovascular não é resolutiva. De modo a avaliar a relevância destes estudos para a população portuguesa seria importante continuar a analisar os hábitos de consumo, a composição nutricional desses alimentos e a relação destes com a morbilidade e mortalidade.

 

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Endereço para correspondência
Elisabete Oliveira
Rua da Portela n.º 16, 4510-116 Jovim, Gondomar elisabete.olv@gmail.com


Recebido a 10 de Outubro de 2012
Aceite a 31 de Março de 2013

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