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Revista Crítica de Ciências Sociais

versão On-line ISSN 2182-7435

Revista Crítica de Ciências Sociais  no.103 Coimbra maio 2014

 

RECENSÃO

Santos, Boaventura de Sousa (2013), Se Deus fosse um activista dos direitos humanos

 

Teresa Martinho Toldy*

Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Fernando Pessoa, Portugal. Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Portugal toldy@ces.uc.pt

 

Santos, Boaventura de Sousa (2013), Se Deus fosse um activista dos direitos humanos. Coimbra: Ed. Almedina, 160 pp.

 

A religião, ao contrário dos vaticínios iluministas da modernidade, parece não ter perdido o interesse tanto académico, como político, social e cultural na atualidade. Aliás, não há academia que se preze, a nível internacional, que não a inclua, nas suas múltiplas manifestações e impactos, nas agendas de investigação e de lecionação. Portugal, infelizmente, parece constituir uma exceção, tanto do ponto de vista do conhecimentos amplo dos temas centrais aos debates académicos atuais nesta área, como no que diz respeito a leituras críticas do papel público e político das religiões. Por isso, este livro presta um bom serviço público e ao público académico e militante dos direitos humanos.

O livro parte de uma constatação e de uma intenção. Sousa Santos não pretende apenas contribuir para o desenvolvimento de uma “teoria de vanguarda” (p. 10). A sua intenção é dar conta do peso que as crenças religiosas ou a espiritualidade das várias religiões tem nos “activistas da luta por justiça sócio-económica, histórica, sexual, racial, cultural e pós-colonial” (idem). As diversas formas como a religião se cruza com estas lutas, e constitui inspiração para as mesmas, testemunha, na perspetiva do autor, que a “ideologia da autonomia e do individualismo possessivos” (p. 8), típica da Modernidade ocidental, foi posta em causa.

A emergência das várias tendências e matizes das teologias políticas (que Boaventura de Sousa Santos define como “as concepções da religião que partem da separação entre a esfera pública e privada para reclamar a presença (maior ou menor) da religião na esfera pública” – p. 9) coincidiu com a entrada dos direitos humanos nas agendas nacionais e internacionais. Ora, segundo o autor, a religião e os direitos humanos constituem “duas políticas normativas” que parecem não ter nada em comum: enquanto a primeira contesta a remissão da discussão acerca da dignidade humana (associada ao cumprimento da vontade de Deus) para o domínio privado, tal como pretendeu a modernidade, nos seus planos secularistas, a segunda, na perspetiva do autor, é individualista, secular, ocidento-cêntrica (culturalmente) e Estado-cêntrica. Como fazer “um exercício de tradução intercultural entre estas duas políticas normativas” (p. 9)? É esta a pergunta para cuja resposta Boaventura de Sousa Santos pretende contribuir.

A obra divide-se em cinco capítulos, sendo, contudo, de notar que começa com uma introdução (cf. pp. 13 a 29), na qual se discute uma questão fundamental: a da possibilidade de uma “concepção contra-hegemónica dos direitos humanos”, face ao panorama de uma “hegemonia frágil” dos mesmos (p. 13). Esta fragilidade é decorrente, segundo o autor, da coexistência contraditória de um discurso acerca da dignidade humana baseada nos direitos humanos com o facto “perturbador” de a maioria da população mundial não ser sujeito, mas apenas objeto dos discursos acerca dos mesmos. A releitura crítica das formas convencionais de interpretar os direitos humanos contribuirá para a busca de “uma concepção contra-hegemónica” dos mesmos, na qual, uma vez superadas as ilusões da teleologia, do triunfalismo, da descontextualização e do monolitismo das interpretações habituais, se recupere o seu potencial emancipatório, se dê voz e vez aos direitos coletivos de grupos sociais excluídos ou discriminados e se proceda a um diálogo com “outras concepções da dignidade humana e outras práticas em sua defesa” (p. 24).

No primeiro capítulo, dedicado à temática da “Globalização das Teologias Políticas” (cf. pp. 29 a 49), Boaventura de Sousa Santos equaciona a questão das teologias políticas no contexto da globalização. De facto, hoje (aliás, de certa forma, como sempre, dado que as religiões se perspectivam a si próprias para lá de fronteiras geográficas), a “reivindicação da religião como elemento constitutivo da vida pública” coloca-se à escala global. O autor identifica três formas de globalização – hegemónica (neoliberal), contra-hegemónica (globalização “a partir de baixo”, isto é, dos movimentos sociais) e não hegemónica (eventualmente crítica de formas hegemónicas, mas sem um projeto contra-hegemónico claro), pelo que se pergunta qual o enquadramento das teologias políticas nestas diversas formas. Boaventura de Sousa Santos começa por afirmar que “a resolução ocidental moderna da questão religiosa é um localismo globalizado, ou seja, é uma solução local que, por via do poder económico, político e cultural de quem a promove, expande o seu âmbito a todo o globo” (p. 34). É, pois, necessário analisar as consequências deste processo à escala global.

O capítulo prossegue definindo uma tipologia das teologias políticas. Retomando a ideia de que o denominador comum a todas é a reivindicação da intervenção da religião na vida pública, o texto procede a uma caracterização extremamente útil, porque complexa – recusando os simplismos correntes na análise desta temática, particularmente, quando se cruza com a questão dos fundamentalismos! – das diversas correntes da teologia política. Distingue, assim, entre teologias pluralistas e fundamentalistas, definindo as primeiras como aquelas que “concebem a revelação como um contributo para a vida pública e a organização política da sociedade, mas aceitam a autonomia de ambas” (p. 39) e as segundas como teologias, tanto cristãs, como islâmicas, nas quais “a revelação é concebida como o princípio estruturante de organização da sociedade em todas as suas dimensões” (p. 38). No fundo, ambas as correntes procuram equacionar, de formas muito diversas, a relação entre a razão e a revelação, bem como entre esta e a história. Por fim, este primeiro capítulo estabelece uma distinção entre teologias tradicionalistas e progressistas no que diz respeito ao “critério ou orientação da intervenção religiosa” (p. 43). Enquanto as primeiras intervêm na sociedade defendendo “as regulações sociais e políticas do passado” (idem), as teologias progressistas fundamentam-se na “distinção entre a religião dos oprimidos e a religião dos opressores, e criticam severamente a religião institucional como sendo a religião dos opressores” (p. 44).

Depois de definido o quadro conceptual no que diz respeito aos direitos humanos, às diversas formas de globalização e às diferentes tipologias e correntes das teologias políticas, a obra avança, nos segundo e terceiro capítulos (cf. pp. 51 a 74), para uma análise mais detalhada do “fundamentalismo islâmico” e do “fundamentalismo cristão”. O capítulo sobre o fundamentalismo islâmico começa por referir que este coloca desafios importantes à modernidade ocidental como projeto cultural. Demarcando-se claramente de uma análise redutora do Islão, que o identifica de forma grosseira com vertentes fundamentalistas, e afirmando a necessidade de olhar para o mesmo reconhecendo a “diversidade de experiências religiosas” existente no seu interior, Boaventura de Sousa Santos analisa “o Islão político fundamentalista”, afirmando que este se alimenta do fracasso dos projetos nacionalistas secularistas e ditatoriais, pelo que, “em vez de nacional e Estado-cêntrico, é transnacional e sócio-cêntrico. Transfere o projeto de renovação para uma sociedade transnacional de crentes, sujeitando o Estado a uma crítica radical, acusando-o de cumplicidade ou submissão ao imperialismo ocidental” (p. 58). O capítulo prossegue com uma análise dos desafios colocados ao Islão pelos feminismos e termina afirmando que o feminismo crítico torna “mais complexa a relação entre Islão e modernidade ocidental” (p. 63), nomeadamente, no que diz respeito à questão dos direitos humanos.

O capítulo seguinte debruça-se sobre o caso do fundamentalismo cristão, muitas vezes esquecido em estudos sobre o fundamentalismo. Depois de já ter sido referido no primeiro capítulo que o fundamentalismo nasceu no seio do cristianismo (nomeadamente, nos Estados Unidos da América – cf. pp. 37 a 38), informação extremamente valiosa para a superação de interpretações simplistas do fenómeno, Boaventura de Sousa Santos analisa expressões atuais do mesmo, sobretudo nos Estados Unidos da América e na América Latina, sob as formas das chamadas “teologias da prosperidade”, da Nova Direita e do Neopentecostalismo de expressão partidária (no Brasil, por exemplo). Chama, contudo, a atenção também para a existência de correntes dentro do catolicismo que legitimam o capitalismo (pense-se, nomeadamente, em Michael Novak e nos seus discípulos). Resumindo, nas palavras do autor, estes movimentos não decorrem de uma rejeição das estruturas económicas e políticas, “em nome de uma nostalgia teocrática pura e simples” (p. 73). Eles possuem “estratégias de envolvimento nessas mesmas estruturas, utilizando os mecanismos que lhes são próprios, com o objectivo de influenciar a sua agenda” (idem). O capítulo termina com um parágrafo que enuncia a intenção dos capítulos seguintes: analisar “os desafios colocados pelas teologias políticas aos direitos humanos e as formas como estes se relacionam com processos contraditórios de globalização” (p. 74).

No quarto capítulo, sobre “os Direitos Humanos na Zona de Contacto com as Teologias Políticas” (cf. pp. 75 a 102), Boaventura de Sousa Santos equaciona as “turbulências” geradas nas zonas de contacto, resultantes da emergência das teologias políticas e da existência de “concepções rivais da dignidade humana, da ordem social e da transformação social” (p. 75). As turbulências enunciadas pelo autor, como ele próprio afirma, “lançam uma nova luz sobre os limites da política dos direitos humanos a uma escala global” (p. 76). São elas: a turbulência entre princípios rivais; a turbulência entre raízes e opções; e a turbulência entre o sagrado e o profano, o religioso e o secular, o transcendente e o imanente. A primeira turbulência diz respeito à emergência de “outras gramáticas de dignidade humana”, após o “falhanço histórico” (p. 77) de uma compreensão e de uma prática dos direitos humanos entendida como a “universalização” do seu modelo ocidental. Esta turbulência caracteriza-se, pois, pelo conflito entre “monoculturas rivais” (p. 80), quer sejam inspiradas por um universalismo cristão de tipo medieval, quer seja por um Islão empenhado em “islamizar a modernidade” (p. 79), e revela a existência de uma injustiça socioeconómica e de uma injustiça cultural. A segunda turbulência (entre raízes e opções) decorre, segundo Boaventura de Sousa Santos, do facto de a construção social da identidade e da mudança na modernidade ocidental se basear numa equação na qual o pensamento de raízes é tudo aquilo que dá segurança e o pensamento das opções, aquilo que é substituível, transitório, indeterminado. Ora, acontece que, ao entrarem em contacto com a modernidade ocidental, as outras culturas foram obrigadas a adoptar esta lógica e a modernidade ocidental, produzindo uma injustiça histórica, “ao definir os termos do conflito […], procedeu a uma redistribuição brutal do passado, do presente e do futuro dos povos e culturas na zona de contacto” (p. 84), retirando-lhes a “capacidade de produzir futuros alternativos” (idem). O que acontece hoje em dia, no Ocidente, é uma radicalização das opções em detrimento das raízes (pense-se na desvalorização do contrato social) e, nas culturas e sociedades islâmicas, uma radicalização das raízes, em detrimento das opções (pense-se nos fundamentalismos, nos quais a única alternativa apresentada é a da raiz fundadora). Esta turbulência manifesta-se, também, na instrumentalização dos direitos humanos e na sua desvalorização nas sociedades ocidentais modernas. Curiosamente, as teologias integristas aproximam-se das perspetivas neoliberais, neste aspeto, uma vez que desvalorizam o carácter de raiz dos direitos humanos, em prol da afirmação da lei de Deus (e não das leis humanas) como legitimidade estruturante das sociedades. Por último, a terceira turbulência, segundo Boaventura de Sousa Santos, revela da forma mais drástica de todas as “clivagens entre os direitos humanos e a modernidade ocidental, de um lado, e as teologias políticas e, em particular, as teologias políticas fundamentalistas, pelo outro” (p. 90), já que manifesta a luta, protagonizada pela modernidade e as teologias (com matizes muito díspares, ainda assim!), pela (não) redução do sagrado ao profano, do religioso ao secular, do transcendente ao imanente, dependendo de que lado da barricada se equaciona o problema ou – dito de forma resumida – a luta pela (não) redução da religião ao domínio privado, em expansão, isto é, transformado “num dos campos do político” (p. 94).

Quererá tudo isto dizer que os direitos humanos devam ser descartados como algo frágil, como uma imposição ocidental incompreensível para outras culturas e outras formas de modernidade? Será possível equacioná-los numa perspetiva que supere as diversas formas de injustiça mencionadas? Haverá formas de teologia política capazes de contribuir ativamente para esta transformação dos direitos humanos num “instrumento de emancipação social” (p. 99)?

É dessa possibilidade, à luz de uma “ecologia dos saberes” (tema querido a Boaventura de Sousa Santos), que fala o último capítulo desta sua obra – “Para uma Concepção Pós-Secularista dos Direitos Humanos: Direitos Humanos Contra-hegemónicos e Teologias Progressistas” (cf. pp. 103 a 132). O autor enuncia como argumento fundamental não só a possibilidade, mas também a positividade de um diálogo entre os direitos humanos e as teologias progressistas, concebido na perspetiva de uma “ecologia de concepções de dignidade humana, algumas seculares, outras religiosas” (p. 104). Do seu ponto de vista, as teologias progressistas podem “ajudar a recuperar a ‘humanidade’ dos direitos humanos” (p. 105), na medida em que recuperam a memória libertadora de um Deus que “está envolvido na história dos povos oprimidos e nas suas lutas de libertação” (p. 106). Boaventura de Sousa Santos ilustra esta afirmação com uma visão panorâmica das diversas formas de teologia da libertação em diferentes quadrantes, tanto no contexto cristão, como islâmico. O seu denominador comum está no facto de serem teologias “contextualizadas social e culturalmente e por isso poderem contribuir para aprofundar a consciência crítica de pessoas e grupos sociais concretos, oprimidos por formas igualmente muito concretas de relações desiguais de poder” (p. 114 a 115). Elas são também teologias que criticam radicalmente o capitalismo, perpetuam a memoria passionis das vítimas da história e perspetivam uma sociedade mais justa. Assumindo-se que a religião “apenas existe como uma imensa variedade de religiões” (p. 119), o diálogo entre elas, nas e em prol das lutas pela dignidade humana, a ser desenvolvido mais do que até aqui, pode funcionar “como uma memória e um campo de experimentação para diálogos mais amplos, envolvendo concepções religiosas e não-religiosas da dignidade humana” (p. 120).

Nas últimas linhas da sua obra, Boaventura de Sousa Santos regressa à sua hipótese inicial de um Deus ativista dos direitos humanos. E conclui: “Na lógica deste livro, se Deus fosse um activista dos direitos humanos, Ele ou Ela estariam definitivamente em busca de uma concepção contra-hegemónica dos direitos humanos e de uma prática coerente com ela. Ao fazê-lo, mais tarde ou mais cedo, este Deus confrontaria o Deus invocado pelos opressores e não encontraria nenhuma afinidade com Este ou Esta. Por outras palavras, Ele ou Ela chegariam à conclusão de que o Deus dos subalternos não pode deixar de ser um Deus subalterno” (p. 135). E essa conceção, no pensar do autor, abriria a porta a uma conceção politeísta de Deus – a única, do seu posto de vista, que “permite uma resposta inequívoca a esta questão crucial: de que lado estás?” (p. 136).

Esperemos que esta obra contribua para animar o tal debate, ainda por fazer em Portugal, em torno de leituras políticas da religião e das suas articulações e desarticulações com os direitos humanos. Um livro a ler, pois. Um must no panorama nacional e internacional, já traduzido para espanhol e editado no Brasil.

 

NOTAS

* Doutorada em Teologia pela Philosophisch-Theologische Hochschule Sankt Georgen (Frankfurt) e pós-doutorada pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Professora Associada com Agregação em Estudos Sociais na Universidade Fernando Pessoa (Porto). Investigadora do CES, onde coordena o Observatório da Religião no Espaço Público (POLICREDOS). Domínios de especialização: religião; estudos feministas.

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