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Revista Crítica de Ciências Sociais

versão On-line ISSN 2182-7435

Revista Crítica de Ciências Sociais  no.103 Coimbra maio 2014

 

RECENSÃO

Báez, Fernando (2013), Los primeros libros de la Humanidad: el mundo antes de la imprenta y el libro electrónico

 

Paula Sequeiros*

Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Portugal. Instituto de Sociologia da Universidade do Porto, Portugal paulasequeiros@ces.uc.pt

 

Báez, Fernando (2013), Los primeros libros de la Humanidad: el mundo antes de la imprenta y el libro electrónico. Madrid: Fórcola, 621 pp.

 

Los primeros libros de la Humanidad: el mundo antes de la imprenta y el libro electrónico, de Fernando Báez, lançado no final de 2013 pela editora Fórcola no Estado espanhol, é a mais recente monografia do autor dedicado ao combate à destruição de bibliotecas históricas e livros raros, parte do património bibliográfico mundial.

Nascido na Venezuela em 1963, licenciado em História e doutorado em Ciências da Informação e Bibliotecas, Báez ganha particular notoriedade internacional com a História universal da destruição dos livros (2004). Nela focou o ataque ao património bibliográfico iraquiano após a invasão de 2003. Com edição portuguesa pela Texto Editores em 2009, traduzida em dezassete línguas, reescrita e reeditada em 2011, a obra passou a manual de estudo em algumas universidades dos Estados Unidos da América e da Europa. O autor tem obra premiada e o reconhecimento, entre outros, de especialistas e autores críticos como Umberto Eco, Ernesto Manguel ou Noam Chomski. Que a destruição de livros não decorre da ignorância ou do horror à cultura, mas sim do poder para destruir a memória de povos, grupos sociais, ou escritores inconvenientes é a tese central amplamente documentada. Perito em recuperação de bibliotecas antigas devastadas por conflitos militares, especialista em várias línguas clássicas e antigas, tem sido assessor em processos de recuperação e salvaguarda do património bibliográfico e histórico mundial. Membro do Centro Internacional de Estudios Árabes, define-se presentemente como ativista radical contra a censura.

Da curiosidade em pisar a terra primeira, renomeada Byblos, onde se inventara o livro no terceiro milénio AC e que aos livros dera nome, nasce o fio condutor de Os primeiros livros, produzido em três anos em investigações que se estenderam de Oriente a Ocidente, no rastro do livro e da escrita mais antigos. De uma cultura de pastoreio, nessa mesma Byblos então sob dominação egípcia, nasceu um outro nome a partir dos carateres ‘alp’ (boi) e ‘bet’ (casa), incorporados, como em muitas outras culturas, no termo português alfabeto. Esta minúcia do detalhe e do evento singular é acompanhada pelo contexto social, tecnológico, histórico ao longo de toda a obra: quem lê não tem de se perder nem soçobrar sob avalanches de dados, os fios explicativos vão sendo estendidos e ligados por vezes de forma surpreendente e reveladora.

O ritmo histórico utilizado aparece entrecortado ora por silêncios e supressões, ora por sobressaltos e acalmias que pautaram o surgimento de livros primordiais. As marcações de tempo são feitas sobretudo pelos poderes instituídos políticos, mas também religiosos, os que em cada momento decidiam sobre a gravação ou apagamento da memória materializada. A narrativa parte da atual Jbeil, ex-Biblos, antes Byblos, de um Líbano entre 2011 e 2012, cidade onde a vida de Báez esteve uma vez mais sob ameaça, juntamente com tantas outras vidas num novo conflito militar. A senda da investigação foi traçada após inquirição prévia na Maktabat al-Iskandaryah (Bibliotheca Alexandrina). Biblioteca que tão simbolicamente carregada tem estado pelas expectativas de um encontro entre o passado da Alexandrina original, acabado em destruição e arrumado numa Antiguidade Clássica, e um futuro sonhado e propagandeado como recuperação e superação – suportadas estas pelas tecnologias digitais e corporizadas no emblemático edifício inaugurado em 2002 em Alexandria, em financiamento conjunto da UNESCO e do governo egípcio para albergar a nova Alexandrina, biblioteca do futuro.

No prefácio, como um aviso, Báez introduz a expressão o “livro como metáfora do mundo”. E a metáfora é desdobrada a partir do objeto livro, da “máquina para pensar capaz de proteger a memória coletiva ou individual”, em outras metáforas – senão mesmo em outros tantos objetos ressignificados – “talismã, arquivo de vida, reflexo da natureza […], um símbolo do mundo ou o próprio mundo, versão de um código da vida como genoma da cultura, um sonho individual ou solitário e um perigo para os tiranos” (p. 26).

O fascínio pelo livro e a paixão pelo labor bibliográfico e bibliófilo ficam declarados nas páginas iniciais: nenhum desapego, pelo contrário, um envolvimento com o livro sempre cozido por linhas de discurso com forte carga emocional. Se podemos encontrar vislumbres de romantismo nesse envolvimento, é por certo um romantismo desenganado, de enfrentamentos, pessoais ou não, de dissabores e obstáculos por vezes inultrapassáveis (como superar a destruição de um livro único?) mas não demovido, antes atiçado. “Toda a memória é uma heresia nestes tempos” (p.13) e contra estes tempos escreveu Báez um livro mais.

Este viajante, como gosta de se nomear, passa para o escrever por “regiões arriscadas” do Egito a Beirute – depois de estar no Azerbaijão, Marrocos, Líbia, Tunísia, Afeganistão e Kuwait – para seguir para Islamabade e a comunidade islâmica de Quetta em Chiltan (Paquistão). Recordando que os livros viajaram em caravanas de camelos dentro daquele Oriente e depois para além dele, em volta do Mediterrâneo, para Petra, pela Rota da Seda e pela Europa, “em vagas de textos para mudar o mundo” em circuitos e em conflitos ainda abertos pela recuperação dos textos roubados pelos poderes imperiais recentes, o autor tinge a obra com as cores de uma demanda, uma busca de origens através dos continentes.

Duas grandes secções, uma para a escrita e o livro mais antigo e uma outra para o códice, primeira forma de livro manuscrito, dividem o conteúdo. O livro, sem mais, deve nesta monografia ser entendido como suporte físico da escrita – argila, tecido, papiro, cordão de quipo,1 entre outros.

Percorre-se esta história do livro temporizada pelos 5000 anos que mediaram entre as primeiras escritas e a disseminação da imprensa, e os séculos i a xv, com um enfoque nos anos do livro manuscrito. Destacando os livros sagrados (sobretudo islâmicos, judeus e cristãos) e as suas formas de contacto e influência, os livros jurídicos e literários são também abordados, com evidência para as rotas em que se entrecruzaram e se embateram saberes, práticas e interesses vinculados ao livro.

É sabido o privilégio de que gozaram os manuscritos considerados fundamentais para a denominada civilização ocidental, na preservação, cópia e difusão, por parte dos poderes instituídos. Pode-se conjeturar que a familiaridade e o conhecimento profundo que Báez tem, não só de determinadas línguas escritas antigas como de determinados autores – entre os quais o árabe e alguns autores islamitas, para além da sua especialidade em Aristóteles e Averróis – tenham facilitado também uma abordagem mais profunda dessas escritas e desses textos. Capítulos particulares dedicados a livros indonésios e chineses, aos clássicos budistas, à feitura do livro japonês, aos códices maias e astecas e aos quipos incas, bem como as frequentes e estimulantes referências transversais a culturas de África e da Ásia e ainda da América Central, os detalhes sobre venturas e desventuras de feitores de livros e de escritas colmatam muitas das interrogações que sobram no final da leitura sobre outras regiões, outras escritas e outros textos. Aqui está em jogo a tensão entre mundo globalizado e zonas de desconhecimento e “escuridão”, num intento que parece ter sido de abrangência mundial – sem alguma vez ser afirmado – e que parece ainda concretizado dentro dos limites contidos nas possibilidades deste presente.

O livro configura-se, como tal, como obra de referência destacada na História do Livro para consulta e manuseio frequente por especialistas e por quem investigue domínios afins, sobretudo pela capacidade de síntese e de interligações temáticas e não menos pela bibliografia e notas abundantes do autor.

Por fim se esclarece o sentido da Nota introdutória onde afirma que “o livro como processo e como agente de permuta social […] altera o próprio processo que lhe dá origem. […] O livro muda a história que o muda”.

 

NOTAS

* Doutorada em Sociologia pela Universidade do Porto (UP). É investigadora de pós-doutoramento no Centro de Estudos Sociais com o projeto “A biblioteca no tempo: bibliotecas dos paradigmas do impresso, do oral e do digital”. É investigadora associada do Instituto de Sociologia da UP. Tem investigado questões das bibliotecas públicas e novas tecnologias, dos usos das bibliotecas públicas, das bibliotecas prisionais e ainda da leitura, com enfoque na leitura pública e privada das mulheres.

1 Nome quéchua dado a um dispositivo de escrita da região Andina, composto por um cordão principal com cordões pendentes, coloridos, com nós; o uso que deles fez a administração do Império Inca é o mais divulgado.

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