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Revista Crítica de Ciências Sociais

versão On-line ISSN 2182-7435

Revista Crítica de Ciências Sociais  no.104 Coimbra set. 2014

 

RECENSÃO

Levine, Daniel H. (2014), The Morality of Peacekeeping

 

Paula Duarte Lopes*

Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Portugal. Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, Portugal. pdl@fe.uc.pt

 

Levine, Daniel H. (2014), The Morality of Peacekeeping. Edinburgh: Edinburgh University Press, 325 pp.

 

Numa época em que as missões de paz das Nações Unidas (NU) se tornaram um instrumento privilegiado de manutenção da paz e segurança internacionais, este livro apresenta-nos uma reflexão estimulante sobre os dilemas morais que um ‘capacete azul’enfrenta, propondo um quadro normativo para estas missões. Esta discussão revela-se de uma atualidade extrema, tendo em conta a decisão recente (julho, 2014) do Supremo Tribunal Neerlandês, onde o mesmo dá razão aos familiares das vítimas e sobreviventes do massacre de Srebrenica, em 1995, afirmando que centenas de pessoas poderiam ter sido salvas se os capacetes azuis neerlandeses as tivessem protegido na sua base. Levine discute um tema filosófico de uma pertinência operacional extrema. As suas reflexões constituem pontos de partida para qualquer pessoa que se interesse sobre estes temas ou viva (ou tenha vivido) a sua operacionalização.

Levine começa por identificar um aspeto essencial das missões de manutenção de paz que as distingue da guerra: os capacetes azuis não têm inimigos no sentido convencional do termo. Consequentemente, para Levine, para um capacete azul fazer o que se espera dele, este tem de estar atento, ser comedido e criativo, e estas características constituem a base da sua proposta de quadro normativo. Isto pode parecer simplista ou demasiado idealista, mas o livro não tem nada de simples e comporta uma visão empiricamente fundamentada em exemplos concretos de diferentes missões de paz, através das vozes de capacetes azuis com experiência e treino enquanto tal, bem como alguns atores locais.

A proposta de Levine assenta numa discussão profunda e complexa dos princípios da ‘santíssima trindade’ do peacekeeping: consentimento, imparcialidade e uso mínimo da força. Esta análise percorre a evolução conceptual destes princípios desde a primeira missão de peacekeeping das NU até à atualidade. Cada princípio é discutido apresentando a evolução contextual do seu significado, baseado não só na doutrina das NU, como também nas reflexões de outros autores sobre peacekeeping e sobre o significado filosófico de cada princípio. O resultado é uma proposta de entendimento atualizado para cada princípio, alicerçando o quadro normativo apresentado pelo autor. Na última parte do livro, o objetivo global de proteger a população civil é discutido, incluindo dois estudos de caso específicos: o apoio da MONUC à Kimia II e as atividades de proteção de civis desenvolvidas pelo movimento pacífico de mulheres na Libéria durante as duas guerras civis (1990-2003).

Existe um aspeto que não consta explicitamente da proposta discutida no livro, mas que me parece constituir o elemento mais inovador desta contribuição para pensar as missões de manutenção de paz: a abordagem relacional-transformativa que perpassa todo o livro. Esta constitui uma diferença crucial de outros estudos sobre peacekeeping, especialmente quando o livro é focado na componente militar deste tipo de missões. Esta abordagem relacional-transformativa é baseada nos entendimentos atualizados dos princípios da ‘santíssima trindade’ do peacekeeping propostos por Levine. Consentimento é entendido como uma relação em curso para ser construída e não apenas garantida entre capacetes azuis e a comunidade na (e com a) qual trabalham. É entendido como um princípio variável, multinível e flexível. Imparcialidade não significa neutralidade, mas um compromisso para com o processo de paz (e não necessariamente de forma restrita para com o mandato). Este compromisso, nesta abordagem transformadora, implica envolver-se (em termos de diálogo e esforços conjuntos) da forma mais inclusiva possível com o maior número de atores possível. O uso mínimo da força é discutido recuperando a noção de ‘não iniciação’ de Hammarskjöld, no sentido de ‘não atirar a primeira pedra’. Levine posiciona o seu quadro normativo de forma clara contra a tendência atual que favorece missões de paz cada vez mais ‘robustas’. Questões de legitimidade dos capacetes azuis aos olhos da comunidade local bem como a potencial reação negativa no que diz respeito ao consentimento são utilizadas para substanciar a sua defesa do uso mínimo da força.

Ainda assim, ele reconhece que, por vezes, pode ser necessário recorrer à violência e, nesse caso, recorrer a ‘práticas de restauração das relações’ com a comunidade é considerado crucial. O objetivo do peacekeeping deve ser criar as condições para um projeto político não violento, que ‘amarre’ mutuamente o maior número possível de membros da comunidade. Levine salienta a importância da atitude dos capacetes azuis para com o uso da violência e a perceção que a comunidade constrói para além desse seu uso da violência. O exemplo dos militares portugueses em Timor-Leste ilustra bem esta abordagem relacional-transformadora, em que em situações limite, tiveram de recorrer à violência, mas, ao mesmo tempo, continuaram a organizar eventos culturais e sociais, convidando e envolvendo a comunidade local, bem como a participar em projetos sociais na comunidade local como voluntários. Esta forma de interagir permitiu que a comunidade local, em geral, os aceitasse (consentimento), os considerasse como parceiros no esforço pela paz (imparcialidade), obviamente dentro de determinados limites, e os levasse a solicitar o uso da força aos militares quando consideravam que a situação assim o justificava (aceitação do uso mínimo da força).

O livro termina com uma discussão sobre o objetivo global esperado do peacekeeping: a proteção de civis (quer este esteja incluído no mandato ou não). Esta é uma abordagem bastante realista ao peacekeeping, porque, independentemente de qualquer mandato, as comunidades locais, a ‘comunidade internacional’, bem como os/as constituintes dos países que participam nas missões esperam que os ‘capacetes azuis’ protejam a população local (e a si próprios/as). As reações aos eventos trágicos no Ruanda, na Somália, em Timor-Leste ou na Bósnia-Herzegovina substanciam esta afirmação. A proteção de civis constitui, como Levine salienta, “toda a justificação moral do peacekeeping”. E, acresce ainda, que não proteger os civis pode rapidamente determinar um colapso da ‘santíssima trindade’: perda de consentimento, perceção de parcialidade e um entendimento demasiado restrito e moralmente insustentável do ‘uso mínimo da força’, veja-se o caso do Ruanda ou de Srebrenica.

Mas a discussão no livro vai mais além para novamente salientar a necessidade de pensar esta proteção de uma forma relacional-transformativa. A ideia não é apenas de ‘proteger-de’ (se necessário), mas de ‘proteger-com’ a comunidade local, todas as fações, lados, grupos, formas e cores da comunidade local. Estar atento e ser comedido e criativo revelam-se características essenciais para se concretizar esta tarefa com sucesso. Os militares portugueses em Timor-Leste referem recorrentemente a necessidade que sentiram de ser criativos para responderem às expectativas das comunidades locais; para criarem laços de confiança com, por exemplo, os ex-combatentes; para contribuírem para a melhoria pontual das condições de vida de diferentes grupos locais. E referem também, simultaneamente, que nenhuma destas atividades constava dos mandatos das NU propriamente ditos, mas que fizeram toda a diferença para o seu envolvimento e a sua aceitação nas comunidades em que trabalhavam.

Os capacetes azuis não são enviados para um território desprovido de relações de poder ou projetos políticos, onde vêm trazer a salvação com uma nova ordem. A população local já tem a funcionar sistemas de proteção que muitas vezes incluem grupos armados. Consequentemente, necessitam de se envolver num projeto comum com a população local para criar “sistemas de proteção que deflitam ameaças de violência, intercedam em crises, e mitiguem” os impactos negativos potenciais. Isto, na minha opinião, faculta as condições para um enraizamento da paz depois de os/as capacetes azuis partirem, o que considero de importância extrema face ao número de países que volta a ser palco de violência após a retirada das missões das NU.

Este livro é também interessante pelo que não é dito. Levine apenas se foca na componente militar das missões de manutenção de paz, reconhecendo, desde o início, que estas missões combinam elementos de guerra (violência), policiamento e governação, sem nunca questionar diretamente a adequação das forças militares para estas tarefas. O quadro normativo de manutenção de paz proposto é para os militares. O problema é que os argumentos apresentados sugerem que os militares não parecem estar devidamente equipados para realizarem estas tarefas, mesmo com treino para peacekeeping. O seu treino básico é um treino militar tradicional, onde existe sempre um inimigo. Os capacetes azuis, depois de serem capacetes azuis, têm de regressar às suas Forças Armadas nacionais e serem reintegrados como soldados. No caso português, esta questão foi várias vezes mencionada, em que após o regresso dos militares portugueses em Timor-Leste, foi necessário retreiná-los para voltarem a ser soldados. Claro que os exemplos dados por Levine e os dos militares portugueses demonstram que é possível ter militares a exercerem estas funções, mas depende muito da formação de cada militar e da forma de trabalhar de cada cadeia de comando. Não tenho dúvidas que as questões abordadas por Levine soam familiares a qualquer capacete azul e às próprias populações locais onde as missões de paz das NU têm trabalhado. A sua proposta faz sentido, falta saber se a podemos operacionalizar com as estruturas que temos, ou se necessitamos de criar, por exemplo, uma divisão distinta nas forças armadas nacionais para missões de manutenção de paz.

 

NOTAS

* Investigadora do Centro de Estudos Sociais e professora auxiliar de Relações Internacionais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Os seus interesses de investigação centram-se nos estudos para a paz, em particular nas missões de paz e no nexo desenvolvimento e segurança; desenvolve ainda investigação sobre políticas de ajuda pública ao desenvolvimento e governação de recursos hídricos. Tem publicado nestas áreas vários capítulos em livros e artigos em revistas científicas nacionais e internacionais. É coautora de Mapping Research on European Peace Missions (Clingendael, 2010) e coorganizadora de Rethinking Peace and Security: New Dimensions, Strategies and Actors (University of Deusto, 2009). Publicou ainda em coautoria “The Nexus between Security, Development and Humanitarianism: A Critical Appraisal to Multidimensional Peace Missions”, in Fulvio Attinà (org.), The Politics and Policies of Relief, Aid and Reconstruction. Contrasting Approaches to Disasters and Emergencies (Palgrave Macmillan, 2012) e, em 2013, “Peacebuilding in Timor-Leste: Finding a Way between External Intervention and Local Dynamics”, International Peacekeeping, 20(2).

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