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Revista Crítica de Ciências Sociais

versão On-line ISSN 2182-7435

Revista Crítica de Ciências Sociais  no.107 Coimbra set. 2015

 

RECENSÕES

Machado, Helena; Prainsack, Barbara (2014), Tecnologias que incriminam. Olhares de reclusos na era do CSI

 

Diana Miranda

Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais - CICS.NOVA UMinho, Instituto de Ciências Sociais - Universidade do Minho, Campus de Gualtar, 4710-057 Braga E-mail: dianam@ics.uminho.pt

 

Machado, Helena; Prainsack, Barbara (2014), Tecnologias que incriminam. Olhares de reclusos na era do CSI. Coimbra: CES/Almedina, 288 pp. 2014

 

Tecnologias que incriminam. Olhares de reclusos na era do CSI, de Helena Machado e Barbara Prainsack, publicado originalmente em inglês (Tracing Technologies – Prisoners’ Views in the Era of CSI) pela editora Ashgate, explora as representações em torno das tecnologias forenses do ponto de vista de indivíduos condenados a pena de prisão pela prática de crime. O enfoque nas perspetivas deste grupo social em concreto é particularmente inovador e esta é a primeira obra a examinar o modo como os reclusos experienciam as tecnologias usadas na cena de crime na era do CSI, seus significados e efeitos. Tal como refere Troy Duster no prefácio, é “[ampliada] a voz daqueles que até agora têm sido aparte silenciosa desse processo” (p. 18).

O crescente recurso às ciências forenses na investigação criminal tem sido alvo de atenção académica, destacando-se nos estudos sociais da genética forense e no panorama português o valioso contributo de Helena Machado (Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra). Esta obra resulta de uma investigação pioneira e uma análise empírica comparativa desenvolvida por esta investigadora e por Barbara Prainsack (King’s College, Londres), aliando-se dois estudos de caso desenvolvidos em Portugal e Áustria.

Através da ciência e tecnologia é possível obter provas com base em vestígios físicos e biológicos que permitem identificar autores de crimes. A informação que advém destes vestígios é comummente encarada de modo muito positivo na identificação criminal e as impressões digitais e perfis de DNA são alguns exemplos desta ‘tecnologias que incriminam’. Tal expressão intitula o primeiro de nove capítulos, onde é apresentada a obra e os seus principais objetivos: explorar as representações dos reclusos quanto às tecnologias de cena de crime (principalmente o recurso a perfis de DNA) e as suas visões perante as bases de dados, sua carreira criminal e o seu futuro. Para tal, foram realizadas 57 entrevistas qualitativas junto de reclusos do sexo masculino em ambos os países.

O segundo e terceiro capítulos debruçam-se, respetivamente, sobre o caso austríaco e o português e sobre as características específicas destes contextos ao nível das disposições legais em torno das tecnologias de identificação. As autoras demonstram como as especificidades de ambos os países em termos políticos, históricos e culturais influenciam as perceções dos reclusos entrevistados relativamente a estas tecnologias.

No quarto capítulo é questionada a influência dos media e as imagens culturais transmitidas em torno da infalibilidade da prova genética (nomeadamente em séries televisivas como o CSI – Crime Scene Investigation) nas representações dos reclusos sobre as tecnologias forenses. As autoras focam estas fontes de informação e os “padrões de exposição” mas também de “distanciamento crítico e reflexivo” nas representações dos reclusos sobre estas tecnologias, sendo alguns aspetos de tais cenários interpretados como irreais e ficcionais. Tal sustenta-se nas experiências pessoais dos reclusos com o sistema de justiça criminal, as suas trajetórias biográficas e o seu envolvimento com o mundo do crime e as tecnologias forenses.

As autoras continuam no quinto capítulo a desenvolver uma análise em torno dos media e do imaginário cultural das tecnologias forenses, nomeadamente a perceção generalizada do DNA como infalível. Este é encarado como uma “máquina da verdade”, uma poderosa ferramenta tida como o ‘padrão de ouro’ da identificação, sendo revelada uma crença não só na sua eficácia na identificação de criminosos mas também a sua capacidade de ilibar relativamente a autoridades abusivas. Ainda assim, os reclusos manifestaram receios quanto ao mau uso da informação genética pelas autoridades policiais e a incriminação a que estão sujeitos quer por negligência, quer por más intenções. A máquina é encarada como sendo de confiança e os erros associam-se apenas a ações humanas.

No sexto capítulo as autoras abordam a crescente criação e expansão de bases de dados genéticos para usos forenses, sendo tal usualmente legitimado pela crença de que esta tecnologia poderá ser fundamental não só para a investigação criminal, mas também para a prevenção do crime. A avaliação dos reclusos sobre o papel destas bases de dados na prevenção do crime contraria esta crença no seu poder intimidatório e efeito dissuasor. Por um lado, grande parte dos crimes é cometida sem que os riscos sejam ponderados de forma racional e, por outro, no caso dos ‘criminosos profissionais’, os reclusos perspetivam que tal tecnologia levará a que sejam tomadas mais precauções para diminuir o risco de serem detetados. De facto, o corpo assume-se não só como o principal instrumento para cometer o crime mas também como um “veículo de risco” (p. 197) que permite a identificação.

O conhecimento em torno das tecnologias forenses de identificação e a sua relevância pragmática associam-se assim a identidades profissionais e a uma hierarquia de criminosos: os que se identificam como tal e os que desejam reintegrar a sociedade (desvalorizando em termos instrumentais este conhecimento).

No sétimo capítulo é desenvolvida uma análise mais detalhada da prova de DNA e da sua importância na correção de erros da justiça, assumindo-se como um potencial ‘aliado’ na perspetiva dos reclusos. Tal temática é explorada no oitavo capítulo a propósito dos aspetos negativos do trabalho policial e da lógica dos ‘suspeitos do costume’, sendo o corpo criminal associado a um potencial estigma. As autoras referem-se aos efeitos de capacitação e incapacitação das tecnologias de DNA, servindo estas não só como forma de proteção contra erros e de contradição da lógica dos “suspeitos do costume”, mas também como fazendo parte de práticas de estigmatização.

Esta obra desenvolve-se em torno do olhar dos reclusos sobre as práticas e usos de vestígios corporais na investigação criminal. Este olhar tem por base uma perspetiva enraizada em experiências pragmáticas com a justiça e o crime, encaradas pelas autoras como “fragmentos de histórias da vida real” (p. 33). As tecnologias forenses têm impactos ao nível do autoconhecimento, noções de pertença e diferença e perspetivas futuras dos reclusos. A obra Tecnologias que incriminam apresenta uma inovadora pesquisa empírica, uma vez que constitui o primeiro passo no estudo sobre as representações de indivíduos condenados por crime em relação ao uso destas tecnologias. As autoras suscitam reflexões em torno destas tecnologias adotando uma perspetiva original, partindo de um olhar que não tem sido alvo de atenção e cuja experiência em relação às tecnologias usadas no decurso da investigação criminal tem sido ignorada ou subordinada às experiências “de outros especialistas”.

A dimensão comparativa entre os dois países e a discussão de ambos os estudos empíricos é uma importante contribuição para o debate em torno das tecnologias de identificação forense e um valioso contributo para futuros estudos empíricos e comparativos em torno dos usos destas tecnologias. Em particular, estudos de caso focados nas representações sociais do uso das tecnologias de identificação, de modo a explorar os seus impactos e efeitos. A avaliação do contributo destas tecnologias no combate ao crime é um dos aspetos que deverá ser alvo de pesquisas mais aprofundadas. Este estudo, ao colocar a tónica na perspetiva do indivíduo no qual a tecnologia de DNA é aplicada, demonstra-nos o seu ceticismo a respeito do suposto efeito dissuasor deste instrumento de identificação na prática criminal. Esta e outras considerações desafiam-nos a refletir sobre quem representa uma contribuição pertinente na discussão destas temáticas e como é importante estudar os impactos destas tecnologias tendo por base a voz usualmente silenciada daqueles que são os principais alvos destas práticas de identificação. Tal como referiu Troy Duster no prefácio desta obra: “este é um primeiro passo que deixa uma importante porta aberta”.

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