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Revista Crítica de Ciências Sociais

versão On-line ISSN 2182-7435

Revista Crítica de Ciências Sociais  no.107 Coimbra set. 2015

 

RECENSÕES

Soto, Alejandro (2014), Goles y banderas. Fútbol e identidades nacionales en España

 

Pedro Almeida

Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra, Colégio de S. Jerónimo, Largo D. Dinis, Apartado 3087, 3000-995 Coimbra, Portugal pedroalmeida@ces.uc.pt

 

Soto, Alejandro (2014), Goles y banderas. Fútbol e identidades nacionales en España. Madrid: Marcial Pons Historia, 318 pp.

2014

 

A discussão teórica sobre o fenómeno do futebol no domínio das ciências sociais surgiu apenas nos finais da década de 1960, na Grã-Bretanha, abrindo caminho a uma nova área de investigação. Apesar da variedade de perspetivas teóricas, o enfoque centrou-se, essencialmente, na questão da violência no contexto britânico. A partir da última década do século xx, os estudos estenderam-se a outras realidades empíricas com a publicação dos primeiros trabalhos sobre as culturas de adeptos na Europa do Sul e América Latina. Embora estas abordagens procurem realçar especificidades e diferenças relativamente ao contexto britânico, a preocupação central continua a ser o estudo da violência.

Apesar de algumas publicações abordarem as conexões entre futebol, projetos políticos e identidade nacional, a forma como a modalidade tem servido de arena social para a produção e promoção das identidades nacionais não se encontra, ainda, suficientemente bem explorada. Partindo deste défice teórico e analítico, Alejandro Soto explora a forma como o futebol constitui uma arena privilegiada de configuração, reconfiguração e disputa das identidades nacionais.

O livro encontra-se dividido em sete capítulos, conjugando um marco cronológico e temático. No primeiro capítulo, o autor introduz o leitor na importância do ‘efeito cumulativo dos meios’, recuperando a ideia, já desenvolvida por outros investigadores, relativa ao papel dos meios de comunicação social na promoção e consolidação das identidades nacionais. Destaca-se, assim, a capacidade dos media em ‘falar sobre a nação’, convertendo-se num poderoso instrumento de disseminação das narrativas futebolísticas e, por conseguinte, da própria identidade nacional. Este efeito cumulativo, que se tem vindo a acentuar desde a década de 1940 até à atualidade, tem tido um papel decisivo no lugar central que o futebol ocupa na representação da cultura popular espanhola.

O segundo capítulo é dedicado à exploração daquilo que Soto apelida de ‘narrativa da fúria e do fracasso’, discurso hegemónico do século xx, que relaciona o futebol com a identidade nacional, projetando no povo espanhol atributos antagónicos. Trata-se de uma narrativa que combina um conjunto de características positivas, tais como a ‘paixão’, ‘coragem’ ou ‘valentia’ com um discurso fatalista, que atribuía o insucesso desportivo das equipas e da seleção a uma espécie de ‘maldição histórica’ que teimava em perseguir o povo espanhol. Ao longo do texto evidencia-se o duplo sentido da ‘fúria’ espanhola. Se, para os espanhóis, a ‘fúria’ era um termo positivo, que associava um estilo de jogo ‘aguerrido’, ‘ardente’ e ‘macho’, as representações exteriores iam no sentido oposto. De facto, de acordo com os discursos dominantes na imprensa britânica, holandesa, italiana e francesa, a forma ‘furiosa’ de jogar das equipas espanholas não era mais do que um reflexo do próprio povo: violento, irracional, selvagem e subdesenvolvido.

Depois de, no capítulo seguinte, se analisar a questão da redefinição da narrativa dominante, resultante da queda do franquismo, o quarto capítulo explora, com maior detalhe, as identidades espanholas das décadas de oitenta e noventa. Abandonando, progressivamente, a ‘narrativa da fúria e do fracasso’ os governos socialista e popular, juntamente com os media, continuaram a usar o futebol como fator de unidade nacional, procurando, agora, vincular o país e o povo espanhol à modernidade.

As transformações das identidades nacionais desde o novo milénio até à atualidade são abordadas no capítulo cinco. De acordo com o autor, esta época ficou definitivamente marcada pela ‘morte’ da ‘narrativa da fúria e do fracasso’. Alejandro Soto mostra que, da mesma forma que a ‘fúria’ atribuída às equipas espanholas proporcionou a projeção de determinadas características no próprio povo, a conquista de títulos (especialmente da seleção nacional), aliados a um estilo de jogo ‘moderno e técnico’, criou condições para a emergência de novos discursos celebratórios da nação. A consolidação desta ‘obesidade patriótica’ terá facilitado um processo de “recuperação popular do Estado-Nação espanhol e a normalização das expressões patrióticas” (p. 243).

O capítulo seis é dedicado à análise das transformações das identidades nacionais na Catalunha nas últimas décadas. Num território marcado pela disputa simbólica entre a identidade catalã e espanhola, destaca-se o papel desempenhado pelo Barcelona, desde a governação de Primo de Riviera, enquanto aglutinador do ‘catalanismo’. Embora os discursos dominantes apresentem, por um lado, o Barcelona como representante da nação catalã democrática, e por outro, o Real Madrid como a essência do autoritarismo e do centralismo, essa narrativa mascara uma realidade mais complexa. Segundo a leitura do autor, o resultado dessa confrontação nacionalista não resultou na rejeição do ‘espanholismo’, mas sim na afirmação de uma ‘dupla identidade’: catalã e espanhola. Para suportar este argumento, Soto apoia-se, em parte, nas manifestações populares nas ruas das cidades catalãs, aquando da celebração dos títulos recentemente conquistados pela seleção espanhola. No entanto, tal como o próprio autor reconhece, a estrondosa vaia dos adeptos do Barcelona e do Athletic de Bilbao ao hino nacional, na final da ‘Copa do Rey’ de 2012, sugere a existência de um elevado grau de animosidade relativamente aos símbolos estatais.

O último capítulo explora o papel do Athletic de Bilbao e da Real Sociedad, enquanto fontes de identificação coletiva, através das suas participações na defesa da autonomia do nacionalismo basco, das suas relações com o Herri Batasuna e com o PNV, na participação ativa nas campanhas de libertação dos presos políticos, no ensino do euskera, bem como o seu papel na criação da seleção nacional basca. A politização dos clubes expressa-se, também, por exemplo, no facto do Athletic de Bilbao seguir uma política de governação única no contexto do futebol (que consiste em contratar apenas jogadores de origem basca ou que tenham sido formados nas ‘escolas’ do clube), tornando-o num ícone da identidade basca. Numa sociedade altamente politizada, os principais clubes bascos produziram laços fortíssimos com a região, ao mesmo tempo que operam como espaços nos quais se reproduz uma narrativa que apresenta Espanha como o ‘outro’ nacional, militarista, centralista e repressor, independentemente do regime político em vigor.

Soto destaca, igualmente, o significado político e cultural das celebrações das conquistas da seleção espanhola protagonizadas, maioritariamente, pelas camadas mais jovens da população. A repressão fascista, a que se seguiu a hegemonia nacionalista basca, aliada à violência política da ETA, tornou a sociedade hipersensível aos símbolos nacionais. Neste contexto, as celebrações das ‘identidades proibidas’ no espaço público indiciam a emergência de uma nova narrativa que desafia a hegemonia absoluta da identidade basca, ao mesmo tempo que contribuem para uma redefinição da própria identidade nacional.

Partindo da ideia de ‘nação’, enquanto um complexo conjunto de metáforas, mitos e imagens que se reproduzem no âmbito discursivo, o livro mostra, de uma forma muito bem documentada, o poder do futebol não só na reprodução, como também na contestação das narrativas nacionais dominantes e na consequente criação de contranarrativas. Está-se, efetivamente, perante uma obra de interesse inegável, que enriquece o debate teórico dos estudos sobre futebol e sociedade. Pena é que Soto não tenha explorado a questão racial e o seu impacto na produção em torno das ideias de nação. Ainda que, ao longo do livro, se sublinhe que a ideia de uma Espanha ‘branca e católica’ tenha feito parte da narrativa nacional franquista, esse debate não é aprofundado. Além disso, sugere-se, implicitamente, que esse discurso ‘racializado’ seja, apenas, produzido pela extrema-direita e pela direita conservadora. Tendo em consideração a temática explorada na obra, a introdução de perspetivas críticas sobre ‘raça’, racismo e colonialismo, vinculadas às narrativas futebolísticas, contribuiria, inquestionavelmente, para um novo entendimento acerca do processo de produção das identidades europeias.

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