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Revista Crítica de Ciências Sociais

versão On-line ISSN 2182-7435

Revista Crítica de Ciências Sociais  no.117 Coimbra dez. 2018

https://doi.org/10.4000/rccs.8126 

ARTIGO

“Temporalidades emaranhadas”: desafios metodológicos da dinâmica dos protestos em rede de 2013 no Brasil*

“Entangled Temporalities”: Methodological Challenges of the Dynamics of the 2013 Networked Protests in Brazil

“Temporalités enchevêtrées”: challenges méthodologiques de la dynamique des protestations en réseau de 2013 au Brésil

 

Regina Helena Alves da Silva*, Paula Ziviani**

* Centro de Convergência de Novas Mídias, Universidade Federal de Minas Gerais Avenida Presidente Antônio Carlos, 6627, Belo Horizonte – MG, Brasil regina.helena@gmail.com

** Centro de Convergência de Novas Mídias, Universidade Federal de Minas Gerais Avenida Presidente Antônio Carlos, 6627, Belo Horizonte – MG, Brasil pziviani@gmail.com

 

RESUMO

Os protestos sociais que seguiram a conquista do Brasil para sediar a Copa do Mundo 2014 desafiaram a capacidade de compreensão de todos. Os eventos de junho de 2013 – conhecidos como “Jornadas de Junho” – abriram um infinito mar de possibilidades, avançando pelas ruas e na internet. As “Jornadas” constituíram um acontecimento-núcleo de diversas questões que se fundiram em um determinado intervalo de tempo. O objetivo deste artigo é refletir sobre a dinâmica, o tempo e as temporalidades que explodiram neste contexto. Destina-se a abordar a articulação da ação política com as tecnologias, as redes digitais e os meios de comunicação, isto é, discutir e problematizar a dinâmica da interação entre espaços públicos urbanos e redes intermidiáticas nas recentes mobilizações políticas brasileiras.

Palavras-chave: Brasil, contestação social, espaço urbano, meios de comunicação

 

ABSTRACT

The social protests that followed Brazil’s being selected to host the 2014 World Cup challenged the populace’s ability to understand it all. The events of June 2013 – known as “June Days” (Jornadas de Junho) – opened a totally new world of possibilities, which extended from the Internet to the streets and back. These Jornadas were a core-event of various issues that melded together during a given time interval. The aim of this article is to reflect on the dynamics, the time, and the temporalities which burst forth in this context. It is intended to address the interaction of political action with technologies, digital networks and the communication media. That is, discuss and problematize the dynamics of articulation between public urban spaces and inter media networks in the recent events of Brazilian political mobilization.

Keywords: Brazil, media, social protest, urban space

 

RÉSUMÉ

Les protestations sociales qui résultèrent de la nomination du Brésil comme siège de la Coupe du Monde de Football 2014 ont mis au défi la capacité de compréhension de tout un chacun. Les évènements de juin 2013 – connus comme “Journées de Juin” (Jornadas de Junho) – offrirent une infinité d’occasions qui se firent jour dans la rue et sur internet. Les “Journées” furent un évènement-nucléaire de maintes questions qui se forgèrent en un laps de temps donné. Le but de cet article est de se pencher sur la dynamique, le temps et la temporalité qui explosèrent dans ce contexte. Il a pour fin d’aborder l’articulation de l’action politique aux technologies, aux réseaux numériques et aux moyens de communication, c’est-à-dire, de débattre et de mettre en cause la dynamique de l’interaction entre espaces publics urbains et réseaux inter-médiatiques au cours des récentes mobilisations politiques brésiliennes.

Mots-clés: Brésil, espace urbain, médias, protestation sociale

 

1. Contextualização e abordagem metodológica

Os recentes protestos sociais – nomeadamente em Madrid (2011), Tiananmen (1989), Tahrir (2011) até Maidan (2013) e Hong Kong (2014) – ocorreram no espaço público urbano e se organizaram, em geral, em torno do direito à cidade, da melhoria das condições de vida e da ampliação dos espaços democráticos (Lefebvre, 2012; Harvey, 2014). No seu desenrolar destacaram, por um lado, a relevância política das ruas e praças enquanto tecnologia política e, por outro lado, o papel da mídia, da internet e das redes sociais e a sua relação com os movimentos sociais. Os casos são numerosos e diferenciados.

No Brasil, os protestos se deram, inicialmente, em torno do aumento do preço das tarifas de transporte público e se alastraram à questão da moradia e dos direitos sociais em geral.

A conquista para sediar um evento globalmente popular como a Copa do Mundo da FIFA 2014 e, posteriormente, os Jogos Olímpicos de 2016 colocou o Brasil no centro do mundo. Uma onda de protestos desafiou a capacidade de compreensão de todos. Acostumados que estávamos a movimentos sociais bem definidos com relação à reivindicação e ao campo de atuação, nos deparamos com um infinito mar de possibilidades avançando pelas ruas e na internet.

Uma análise mais abrangente dos acontecimentos registrados no Brasil em junho de 2013 é capaz de localizá-los num contexto mundial de aumento dos protestos a partir de 2006 em praticamente todos os continentes. A pesquisa realizada pela Columbia University em parceria com a fundação Friedrich-Ebert-Stiftung em Nova Iorque corrobora tal afirmação. Foram levantados e analisados 843 protestos ocorridos em 84 países entre janeiro de 2006 e julho de 2013, o que representa, de acordo com o estudo, 90% da população mundial (Ortiz et al., 2013). Interessante ressaltar que 112 protestos ocorreram na primeira metade do ano de 2013, nomeadamente os que se verificaram no Brasil.

Os protestos na Tunísia em 2010 foram o ponto de partida de uma série de revoltas populares que eclodiram, posteriormente, em diferentes países do Norte de África e Oriente Médio. Um estudo sobre o uso das mídias sociais no mundo árabe realizado pela Dubai Press Club em parceria com a Mohammed bin Rashid School of Government mostra que, durante a Primavera Árabe, o número de usuários do Facebook nos países afetados quase duplicou entre fevereiro de 2010 e 2011. Isto é, no período de um ano, os usuários desta rede social passaram de 14,8 milhões para 27,7 milhões, segundo os dados apresentados pela pesquisa. Especificamente na Tunísia, o Facebook teve um aumento de 200 mil novos cadastrados entre novembro de 2010 e janeiro de 2011. No início das manifestações no Cairo, em janeiro de 2011, uma página do Facebook que anunciava um dos protestos ganhou mais de 55 mil adesões em menos de 24 horas. O relatório aponta ainda que nove em cada dez tunisianos e egípcios afirmaram ter usado o Facebook para organizar os protestos e aumentar a participação da população nas manifestações. Quando os movimentos começaram a ganhar força, o potencial de mobilização das redes sociais não passou despercebido e, em 28 de janeiro de 2011, o governo de Hosni Mubarak desconectou por cinco dias praticamente todo o acesso a` internet no Egito (Mourtada e Alkhatib, 2014).

Os dados acima referidos nos levam a crer que a propagação do movimento conhecido como Primavera Árabe teria tomado outras proporções sem os recursos proporcionados pela internet. As mídias sociais foram utilizadas para organizar protestos, comunicar e sensibilizar a população em favor das causas levantadas, assim como para denunciar à comunidade internacional as tentativas de repressão e censura na internet por parte dos Estados.

Os protestos ocorridos em Londres em agosto de 2011 também registraram influência das mídias sociais (Baker, 2012; Denef et al., 2013). A revista The Economist (2011) chegou a apontar a tecnologia, mais especificamente o serviço de mensagens do celular BlackBerry,1 como o responsável pela desordem urbana em Tottenham, no norte de Londres, e que dias depois se espalhou para outras cidades como Birmingham, Liverpool e Manchester. A importância dada ao serviço acabou por resultar na decisão do Ministro do Parlamento de Tottenham que determinou a suspensão do serviço de mensagens, assim como na sugestão do Primeiro Ministro Britânico no sentido de desconectar o serviço BlackBerry Messenger como forma de prevenção de novos protestos (Baker, 2012).

Em todos os exemplos o destaque dado à tecnologia digital é intrigante, uma vez que o uso da mídia social ajuda a explicar a velocidade com que os motins foram orquestrados em várias cidades. No entanto, a utilização desta mídia não nos esclarece porque tais protestos ocorreram em determinados lugares e em outros não. O nosso entendimento é que tais análises não podem ignorar o uso das ruas e do espaço público como tecnologia política aliada às novas tecnologias, e não apenas o contrário.

Nossa proposta consiste em discutir e problematizar a dinâmica de articulação entre as redes urbanas (a cidade e suas ruas e praças) e as intermidiáticas (internet e as redes sociais) nos recentes processos de mobilização política no Brasil. Entendemos que esse fenômeno é fruto da apropriação social das ferramentas digitais e do espaço urbano. Apropriação que, entre outros aspectos, se caracteriza por agenciamentos múltiplos e em rede, pela sobreposição de mediações sociotécnicas e pela complexificação da circulação de ideias na interface entre internet e ruas.

Nossa aproximação metodológica aborda esse momento que ficou conhecido como “Jornadas de Junho” como um acontecimento-núcleo de diversas questões que se fundiram em um determinado intervalo de tempo. Isto é, partimos do entendimento de que neste momento vários tempos foram intercruzados num só tempo. Grupos anarquistas e entre eles o de maior visibilidade foi representado pelos ativistas que optaram pela tática black bloc; movimentos voltados para a luta dos direitos civis, como o das mulheres e dos LGBT;2 grupos reunidos em torno da violação dos direitos humanos por conta da realização dos megaeventos no país; integrantes da luta pelo direito à moradia, como as Brigadas Populares; grupos voltados para a questão da mobilidade urbana, como o Tarifa Zero e o Movimento Passe Livre (MPL);3 movimentos pela luta da preservação da paisagem urbana contra a especulação imobiliária, como o Ocupe Estelita, entre vários outros.

O objetivo aqui não é tratar especificamente dos movimentos sociais, suas identidades e reivindicações, mas abordar a dinâmica, o tempo e as temporalidades que explodiram nesse acontecimento aparentemente único na história brasileira, quando assistimos provavelmente à maior onda de protestos populares no país desde a sua redemocratização pós-ditadura civil-militar implantada pelo Golpe de 1964.4

Ao contrário da forma com que a mídia tradicional tentou mostrar as manifestações – como algo único, passageiro e sem demandas claras –, propomos falar de algo que possui outro tempo que não episódico e fugaz. Nossa forma de olhar para a questão requer um tempo multifacetado, emaranhado, ou seja, dinâmico, mutável, com múltiplos aspectos e características. Os protestos, quer através das passeatas que percorrem as ruas, quer através das ocupações de prédios públicos e praças, são compostos por uma multiplicidade de grupos e demandas. Grupos esses que se autoinfluenciam numa dinâmica entre a rua e a rede com seus diferentes tempos e temporalidades.

Estes grupos se unem na luta por direitos sociais e principalmente pelo direito à cidade, no sentido proposto por David Harvey (2014), um movimento por um direito difuso. Ou seja, um interesse que abrange um número indeterminado de pessoas unidas pelo mesmo fato, que não pertence a nenhuma classe ou grupo especificamente, e que se manifesta tanto na rua quanto na rede.

 

2. Brasil e os megaeventos: intensificação das práticas urbanas neoliberais

A partir do momento em que o Brasil foi escolhido para sediar grandes eventos, como a Copa do Mundo em 2014 e as Olimpíadas em 2016, as cidades brasileiras passaram a ser alvo de constantes intervenções urbanas. Associada à lógica de remodelação do espaço urbano, os megaeventos impactaram e transformaram as cidades a partir do modelo de gerenciamento empresarial (Vainer, 2000). Foram implementadas várias ações de cerceamento do espaço público e de violação dos direitos humanos pelo Estado, aliado às organizações promotoras dos megaeventos. Neste processo de transformação, os espaços públicos e urbanos foram geridos com base nas regras do mercado impostas pelas empresas privadas responsáveis pela realização dos eventos e em nome da viabilização dos mesmos.

De acordo com o Comitê Popular da Copa do Mundo e das Olimpíadas do Rio de Janeiro – CPCMO (2013, 2014), desde 2010, em torno de 150 mil famílias tiveram que deixar suas casas em função dos megaeventos. O mapa das remoções no Rio de Janeiro (Figura 1) mostra as famílias que foram retiradas das áreas centrais e turísticas e colocadas na periferia extrema da cidade. As remoções foram levadas a cabo nas regiões turísticas e mais valorizadas, próximas aos locais onde seriam realizados os eventos esportivos. Os pontos do lado direito no mapa – ícone denominado “favelas com remoção” – representam os locais originais das favelas e os ícones no formato de casa (a maioria do lado esquerdo no mapa) são os locais onde os moradores foram reassentados, longe do centro, do oceano e das áreas ricas da cidade.

 

 

As ações de cerceamento do espaço público e de violação dos direitos humanos não aconteceram apenas no Rio de Janeiro. Segundo os dossiês apresentados pela Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa – ANCOP (2014) e pelo CPCMO (2013, 2014), o direito à moradia foi o mais violado nas 12 cidades-sede5 da Copa do Mundo. Em todas as cidades-sede, com exceção de Brasília e Manaus, se realizaram desapropriações e deslocamentos de pessoas durante os anos de preparação para a Copa do Mundo, com acusações de violação de direitos humanos (ANCOP, 2014). O relatório elaborado pelo Centre on Housing Rights and Evictions – COHRE (2007), uma organização governamental com sede na Suíça, denuncia o que chama de dark side dos megaeventos, algo que comumente tem efeito oposto aos ideais universais de promoção da paz, solidariedade, cooperação e diálogo propagados em suas cerimônias de abertura.

No Brasil, as remoções e ações de violência decorrentes da governança dos megaeventos foram denunciadas pela relatoria da ONU e pela Anistia Internacional (Rolnik, 2011). Segundo avaliação da ANCOP (2014: 21), as remoções tiveram como propósito “limpar o terreno para grandes projetos imobiliários com fins especulativos e comerciais”, já que a maioria das comunidades afetada está localizada em regiões cujos imóveis sofreram algum tipo de valorização ao longo do tempo. Dessa forma, o processo de reestruturação urbana decorrente da realização da Copa do Mundo, em praticamente todas as cidades, fez reforçar e acelerar práticas já existentes de expulsão da população de baixa renda de áreas centrais para as periferias, ou de áreas onde houve ou está previsto haver uma melhora significativa das condições de moradia.

A temporalidade do megaevento pressupõe um calendário célere para as construções e a finalização de necessidades das cidades e do evento, mas coordenado pelo tempo da longa duração do uso do que seria instalado como infraestrutura. Assim, os eventos tentam instituir uma dinâmica de aceleração do tempo para o crescimento e desenvolvimento econômico de um país. Os problemas urbanos do Brasil foram, portanto, atravessados pela urgência da organização dos megaeventos e o seu tempo instantâneo/efêmero de realização. A vida dos brasileiros foi impactada de diferentes formas, pelo que antigos problemas sociais – transporte, moradia, corrupção, segurança, educação e saúde – vieram à tona e se intercruzaram num só momento. Essas faltas cotidianas da população que faziam parte do tempo futuro da promessa de solução, com a urgência das obras foram ficando cada vez mais acirradas e o legado dos megaeventos – apresentado como justificativa da paralisação do presente para soluções futuras – se revelou insuficiente.

Os brasileiros se depararam com a revelação de que o megaevento se transformou num negócio, algo que representa muito mais do que uma competição esportiva entre países e a confraternização entre nações. Os megaeventos são utilizados hoje como alternativa de ampliação das condições de competitividade no mercado global. As justificativas para sediá-los são as promessas de multiplicação da riqueza para o país, possibilidade de novos investimentos financeiros, aprimoramento da infraestrutura do lugar com a realização de intervenções urbanas, entre outras. As transformações verificadas na sua estruturação marcam principalmente a entrada de corporações privadas na organização e promoção da competição – como a Federação Internacional de Futebol (FIFA) e o Comitê Olímpico Internacional (COI). Nesse sentido, os megaeventos passam a operar em prol de determinados interesses e lógica de atuação próprios que, quando colocados em prática, ao invés de promover o desenvolvimento do país que os sediam, acabam por acentuar velhas fragmentações e fissuras sociais, bem como potencializar antigas relações de conflito existentes no território.

 

3. A cobertura da mídia: os diferentes tempos

Os projetos de melhoria na infraestrutura e serviços de telecomunicações, nos aeroportos estrangulados pelo crescimento econômico do país e pelo aumento da capacidade de viagens da população, a remodelação e construção de portos e uma nova mobilidade urbana nas cidades-sede eram promessas que contavam com um imenso apoio popular (Silva e Ziviani, 2014). No entanto, várias camadas da população começaram a questionar os gastos excessivos num país ainda com muitas falhas nos serviços públicos. A população começou a perceber que a organização da Copa do Mundo no Brasil inverteu prioridades sociais em detrimento da realização de uma “festa”, que favorecia muito poucos.

Nesse momento, o que vem sendo chamado desde a década de 1990 de “urgência das ruas” se conformou, no Brasil, como uma onda de protestos desencadeada primeiro em São Paulo, quando o MPL foi às ruas para contestar o aumento das passagens de ônibus. Exatamente um ano antes da Copa do Mundo, em 2013, o Brasil realizou a Copa das Confederações, torneio entre seleções nacionais organizado também pela FIFA que, desde 2001, tem lugar no mesmo local onde ocorre a Copa do Mundo, como uma espécie de ensaio geral. A cerimônia de abertura da Copa das Confederações aconteceu no dia 15 de junho de 2013, no Rio de Janeiro, cinco dias depois do primeiro ato convocado pelo MPL contra o aumento da tarifa de ônibus na cidade de São Paulo e que deu início a uma onda de protestos que se alastrou pelo país.

A manifestação, que inicialmente foi organizada em função do aumento de R$ 0,20 no valor da passagem do transporte público urbano na capital paulista, consistiu na pedra de toque para levar as pessoas às ruas. A violência com que a manifestação foi reprimida desencadeou toda uma repercussão que acabou por detonar um processo de reordenação e surgimento de movimentos na cena pública em torno de uma grande multiplicidade de reivindicações. Ao aumento das passagens somaram-se diversas reinvindicações, tanto políticas quanto econômicas.

A grande imprensa vinculou os protestos à ideia de “onda”. O infográfico do G1 Brasil (2013)6 mostra o número de pessoas que se manifestaram nas ruas, identificando um pico no dia 20 de junho de 2013, após o que a “onda” vai se espraiando até formar uma pequena marola três meses depois. A “onda” apresenta uma dinâmica temporal linear e constante durante o mês de junho, mas uma espacialidade que se expande em determinados momentos, isto é, revela territórios que, por sua vez, comportam em si outras temporalidades e espacialidades. Os protestos assumiram diferentes configurações conforme o lugar/a cidade em que ocorreram, pelo que não podem ser vistos como algo único e passageiro, tal como previamente sugerido pela mídia.

Umas das dificuldades da grande mídia é a de captar o “tempo real”, o tempo instantâneo das manifestações. A captura “em tempo real” que produz o espetáculo “ao vivo” se dá, em alguma medida, através das mídias “alternativas”. Nesse momento, surge no cenário das manifestações a Mídia NINJA,7 que se destaca pelo envio de imagens dos acontecimentos que incluem participação nas manifestações, contando com um repórter-manifestante que produz imagens “ao vivo” e convoca os participantes para discutirem as cenas produzidas. Além das imagens em movimento, surgiram as mensagens curtas propagadas no Twitter enviadas por aqueles que participam das manifestações, como, por exemplo: “Protesto no Rio de Janeiro agora! Acompanhe ao vivo: twitcasting.tv/blackninjarj” (Black Ninja RJ, 2013) e “Protestos Brasil: notícias em tempo real de todos os protestos que estão acontecendo pelo Brasil. Demorou, mas o país acordou!” (Protestos Br, 2013).

Este é o tempo dos múltiplos – das diferentes percepções e experiências vividas – que emergem em ações não combinadas, mas que se tornam compartilhadas ao produzirem vários pontos de vista “sobre” e “em” um acontecimento. Este tempo é apropriado por vários grupos de jovens estudantes de jornalismo que produzem várias páginas no Facebook de acompanhamento dos acontecimentos em diferentes cidades.

O mais efetivo foi o BH nas Ruas, cuja página no Facebook se propôs a fazer uma cobertura colaborativa das manifestações populares (Facebook BH nas Ruas, 2015). Em dois dias, a página criada por alunos da Universidade Federal de Minas Gerais passou a ter 30 mil seguidores, e ao longo das Jornadas agregou quase 100 mil pessoas que acompanharam, comentaram e postaram informações sobre as manifestações. O BH nas Ruas contou com 300 colaboradores-repórteres e cobriu notícias sobre a cidade, as demandas dos grupos de trabalho, as tomadas de decisão e de ações estratégicas dos movimentos.

No site da BBC Brasil várias visualizações do Twitter tentam captar o tempo rápido das redes sociais em torno da convocação e participação das pessoas nos protestos. Milhares de tweets foram monitorados, como forma de mostrar a intensa atividade das pessoas na internet durante a sua permanência nas ruas.

As informações divulgadas pela BBC Brasil revelam a crescente participação dos brasileiros no Twitter durante os protestos que aconteceram no país em junho de 2013. O ato do dia 13 de junho realizado na cidade de São Paulo registrou o maior confronto com a polícia do estado, que reprimiu violentamente a manifestação, causando ferimentos inclusive em jornalistas da mídia tradicional, presentes para realizar a cobertura do protesto. Diante da repressão, o movimento acaba por tomar dimensões nacionais, espalhando-se para várias outras cidades do país nos dias 16, 17, 18 e 19 de junho. Consequentemente, houve também um aumento do número de perfis de Twitter que participaram das discussões sobre as manifestações entre os dias referidos, como demonstra a notícia “Análise do uso do Twitter revela ‘mapa’ de protestos no Brasil”, BBC Brasil, de 11 de julho 2013: de 9450 perfis no dia 15 de junho, passou-se para 26 019 a 16 de junho, para 167 809 no dia seguinte, 83 384 a 18 de junho e 30 441 a 19 de junho.8

Outra tentativa da grande mídia para o “acompanhamento” dos acontecimentos, perante a impossibilidade de “estar junto” de cada uma destas ações, deu-se através da criação de linhas de tempo das várias ações por cidade, bem como a marcação das cidades que convocaram e também nas quais ocorreram manifestações, por meio da utilização de mapas. O portal de notícias brasileiro G1, mantido pelo Grupo Globo, criou um mapa interativo com o número de manifestantes em todos os estados e principais cidades do país (G1 Brasil, 2013). No mapa é possível visualizar a estimativa da quantidade de pessoas que foram às ruas diariamente em cada cidade: por exemplo, no dia 20 de junho de 2013, em Maceió (Alagoas) – cerca de 10 mil; em Manaus (Amazonas) – cerca de 100 mil; em Salvador (Bahia) – cerca de 20 mil; em Fortaleza (Ceará) – cerca de 40 mil; em Brasília (Distrito Federal) – cerca de 60 mil; em Vitória (Espírito Santo) – cerca de 100 mil; em Recife (Pernambuco) – cerca de 52 mil; em Rio de Janeiro (Rio de Janeiro) – cerca de 300 mil; em São Paulo (São Paulo) – cerca de 100 mil; etc.9

Como foi possível perceber, a cobertura dos eventos de caráter urgente, ou seja, que sofrem alteração de forma constante, impõe outro desafio. As inúmeras visualizações, figuradas em variadas reportagens nos grandes jornais e nas postagens nas redes sociais, revelam as dificuldades metodológicas no entendimento das interações possíveis a partir da ideia de urgência das ruas e agora também das redes. Os infográficos procuram organizar a informação e disponibilizá-la para uma melhor avaliação dos acontecimentos, mas são todos posteriores ao tempo em que eles aconteceram. Buscam ainda representar o número de pessoas que se manifestam nas redes sociais em um determinado momento. Os gráficos e os mapas quantificam as mensagens, as cidades e o número de ações de manifestantes, mas em nenhuma dessas visualizações apresentadas – as postagens dos manifestantes nas redes sociais e os infográficos elaborados pela imprensa – aparecem as reivindicações das pessoas que foram às ruas.

 

4. “Temporalidades emaranhadas”: movimentos que foram às ruas

Na busca pelo entendimento das Jornadas de Junho é recorrente olharmos para o passado, na esperança de que este nos forneça indícios que nos auxiliem na produção de qualquer inteligibilidade das questões do presente. O tempo-surpresa do presente, o tempo atual, o contemporâneo, segundo Agamben (2009: 72), “(...) é também aquele que, dividindo e interpolando o tempo, está à altura de transformá-lo e de colocá-lo em relação com os outros tempos, de nele ler de modo inédito a história”. As Jornadas colocam em ação uma relação especial entre os tempos. Buscamos na história recente do país outros acontecimentos que possam ter elementos capazes de nos indicar alguma legibilidade para a surpresa, uma luz capaz de clarear ainda que minimamente a obscuridade do presente. “É como se aquela invisível luz, que é o escuro do presente, projetasse a sua sombra sobre o passado, e este, tocado por este facho de sombra, adquirisse a capacidade de responder às trevas de agora” (ibidem).

Então no confronto de tempos diversos – o tempo do evento, efêmero e urgente, versus o tempo da cidade e dos problemas sociais e urbanos do país, que é de longa duração, resistente e incessante – percebemos um emaranhado de temporalidades. Percepção que se dá no sentido de recusar a efeméride e a fugacidade do presente, a fim de dar um sentido amplo ao acontecimento. Nesse movimento identificamos atravessamentos do tempo presente: como vimos, vários e diversos movimentos que há muito tempo já tomavam as ruas das cidades somaram-se a novas formas de organização e a uma grande diversidade de reivindicações.

Sabemos que muitos dos grupos que se manifestaram neste momento no Brasil são movimentos sociais ligados a formas já consideradas tradicionais de organização, que possuem formato já definido de atuação na cena política e nas relações com o Estado, como por exemplo o movimento LGBT e o do direito das mulheres. Uma luta por direitos civis, por conta do momento político e das questões que tramitavam no Congresso Nacional na época.10 No confronto do presente com outros tempos, esses movimentos foram atravessados por formas relativamente recentes de luta pelos direitos da cidade, como o Movimento Passe Livre.

Mas um grande número de grupos que surgiram nas ruas neste período foram conformados em torno de questões do tempo presente: lutas pelo espaço público das cidades, ameaçado por projetos de gentrificação; luta contra as intervenções causadas pelos megaeventos (Copa e Olimpíadas) e lutas locais contra inúmeros projetos de prefeituras que propõem a densificação, verticalização e destruição de espaços comuns. Novas formas de resistência e contenção de práticas políticas que legitimam a exclusão e o mercado, que instalam novas feições de autoritarismo.

Os protestos revelam uma cidade comunicante e uma gramática política renovada na relação da rua com a rede intermidiática. A rua, o espaço vivido das cidades, foi palco e lugar do acontecimento. Na mesma medida, o espaço urbano foi um elemento ativo de modelação dessas dinâmicas, uma vez que a cidade constituiu também foco principal das reivindicações. Ou seja, as cidades não foram apenas o cenário das manifestações, mas também o seu motivo. As condições da “pradaria” (as nossas cidades) é um dos fortes motivos do “incêndio”, e não apenas seu lugar de acontecimento (Vainer, 2013).

Muitos dos grupos mais ativos nas redes sociais na internet tomam a insurreição como uma forma de combate para rechaçar todas as formas de poder. Justamente por constituir sede dos megaeventos esportivos, o país se tornou notícia de destaque na mídia nacional e internacional. A visibilidade dada aos protestos trouxe para a cena pública estes movimentos, que surgiram na internet em decorrência da escolha do Brasil para sediar a Copa da FIFA e as Olimpíadas. Isso acabou por conformar uma porta de entrada, permitindo que parcelas da população tomassem contato com as lutas populares, principalmente a luta por moradia e transporte público. São lutas históricas pelo direito à cidade, cujos movimentos atuavam dentro de um espaço político restrito e pouco compreendido pela maioria da população. A partir da integração das lutas através da rede conformada pelos eventos há um aumento do grau de engajamento na rede.

Como veremos nos dois exemplos explorados a seguir, ambos têm em comum o papel das redes sociais na comunicação e na visibilidade, servindo de ferramentas de organização, mobilização e difusão dos protestos. Por outro lado, as redes contribuem para uma rápida expansão territorial das ações e uma descentralização da luta. Estes são espaços importantes e que interagem, sendo que oferecem a oportunidade de as pessoas, que nunca se movimentaram nesse sentindo, conseguirem participação ativa nos processos de mobilização e ação no seio do espaço urbano.

4.1. Dois exemplos: Belo Horizonte e Recife

Ao tomarmos como base a relação entre movimentos com reivindicações de mais longa duração e grupos conformados em torno da Copa/Olimpíadas, dois tipos de ocupações do espaço da cidade e da cena pública que dizem dessa interligação nos chamam a atenção. O primeiro possui uma demanda histórica, que se traduz na luta pela terra urbana e pela moradia, como o caso dos grupos que atuaram na ocupação da Prefeitura de Belo Horizonte, em 2013. O outro se configura a partir de demandas das urgências da cidade, que tem como foco principal barrar o projeto de transformação do Cais José Estelita, próximo ao centro histórico da cidade de Recife, localizada no nordeste do país. Estes grupos e formas de ação permanecem até hoje tensionando as duas cidades.

No primeiro caso, em julho de 2013, a Prefeitura de Belo Horizonte foi ocupada por movimentos pelo direito à moradia, cujo propósito era pressionar o governo para que suspendesse as ações de despejo e garantisse a regularização fundiária de suas comunidades. As Brigadas Populares e o Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), junto com as ocupações de sem-teto, reivindicavam a suspensão imediata das ações de reintegração de posse e demolição de suas casas por parte do poder público local.

Estes movimentos, que representavam cerca de 5 mil famílias em condições precárias de moradia na cidade, ocuparam a Prefeitura sem nenhum aviso prévio a nenhum outro grupo ligado às manifestações. Os grupos que se estruturaram em torno dos protestos foram, aos poucos, rodeando a Prefeitura, organizando estratégias para ampliar as denúncias feitas pelos ocupantes e dar visibilidade às ações da polícia. Uma tentativa de impedir, dessa maneira, uma desocupação violenta, como é comum nas relações entre o Estado e estas comunidades.

Às táticas ditas tradicionais, de organização da luta do movimento pelo direito à moradia – como a ocupação, uso de faixas e passeatas – se somaram outras ações de resistência e visibilidade, como a projeção de frases11 que denunciavam o embate em prédios públicos da cidade, especialmente na fachada do edifício da Prefeitura. Uma ação pequena, mas de grande peso simbólico, dada a sua capacidade de sintetizar no formato da imagem diferentes pontos de vista da mesma causa, a de produzir um encontro decisivo dos tempos: “essa colisão de um presente ativo com o seu passado reminiscente”, em que o ontem coincide com o agora como o “lampejo e a esperança intermitentes dos vaga-lumes” (Didi-Huberman, 2014: 130).

No encontro dos dois grupos – os integrantes do movimento por moradia com os demais grupos que rodearam a Prefeitura – um ativista com o celular nas mãos transmitia, em cada canto do prédio e ao vivo, o seu ponto de vista sobre a ocupação. Assim, diferentes pontos de vista são produzidos, causando transformações no formato da imagem, no sentido proposto por Benjamin (2006) sobre a imagem dialética. Uma imagem que transpõe “o horizonte das construções totalitárias” (Didi-Huberman, 2014: 118). A imagem gerada por muitos pontos de vista transforma o formato que tínhamos de uma câmera ligada a uma forma de transmissão – a de um repórter, num único lugar. São produzidos no momento vários pontos de vista “em tempo real” com os quais se interage em “tempo real”. São imagens de um mesmo lugar, mas também de lugares diferentes. Uma outra forma de controlar a cena, já que participamos dela. Uma “arte de fraturar a linguagem, de quebrar as aparências, de desunir a unidade do tempo” (Agamben apud Didi-Huberman, 2014: 70) e de produzir “cenas de dissenso” (Rancière, 2005).

Assistimos então a uma sobreposição de temporalidades ou “temporalidades emaranhadas”: o tempo passado das lutas históricas, o tempo presente dos grupos ligados à Copa e o “tempo real” de transmissão das imagens e acompanhamento da cena. Um reconhecimento das montagens temporais necessárias para toda a reflexão sobre o contemporâneo, segundo Didi-Huberman ao citar as considerações de Agamben acerca da apreensão do tempo presente. Descobrimos assim, na ocupação em Belo Horizonte, um “espaço de imagens” capaz de “organizar o pessimismo” (Benjamin, 2006) pela ressurgência de certas imagens e com a graça dos “vaga-lumes” (Didi-Huberman, 2014).

Já o movimento Ocupe Estelita12 se organiza em torno de uma demanda nova, iminente: a urgência de se preservar a cidade que se quer no futuro. A luta não é pelo direito à moradia, mas pelo direito à memória, a memória que se quer ter dos lugares da cidade. Trata-se de uma luta pela preservação da paisagem urbana, da memória do sentido que o Cais José Estelita tem para a cidade do Recife. Uma luta para impedir que o Projeto Novo Recife avance, transformando a orla da cidade num complexo imobiliário, hoteleiro e comercial com uso estritamente privado do local. Trata-se de uma área de aproximadamente 10 hectares, localizada na Bacia do Pina, no centro da cidade, onde um consórcio composto por grandes construtoras e empreiteiras pretende construir 12 torres de edifícios que incluem até 40 andares, transformando completamente a paisagem do lugar.13

O local, um pátio ferroviário com vários armazéns de açúcar antigos e abandonados pelo poder público, faz parte da história da cidade. Situada entre um bairro de classe média-alta com uma avenida na beira-mar repleta de edifícios de luxo e o Recife Antigo (nome dado ao centro histórico), a área tem sido alvo de investidas da especulação imobiliária por parte de grandes construtoras. Em 2008, o consórcio imobiliário Novo Recife adquiriu em leilão a área da antiga Rede Ferroviária Federal. No projeto, os armazéns históricos do cais dariam lugar a edifícios residenciais e comerciais, além de estacionamento com capacidade para aproximadamente 5 mil veículos. A proposta causou indignação na população e a sociedade civil passou a se organizar para impedir o seu avanço.

Apesar da mobilização social, no início de 2013 o consórcio conseguiu autorização da Prefeitura de Recife para começar as obras de demolição dos armazéns. Numa das noites de maio de 2014, dias antes do começo da Copa do Mundo no país, as empreiteiras deram início à demolição do cais.

Por volta da meia noite, a ação chamou a atenção de um dos ativistas que passava pelo local, que enviou as imagens pelo celular para outros integrantes do movimento. A notícia rapidamente se espalhou pelas redes sociais. Ao longo da madrugada foram mobilizadas cerca de 200 pessoas, que se dirigiram ao local para impedir a continuidade do processo de demolição. Com esse objetivo, passaram a noite no cais de modo a evitar que os tratores fossem novamente ligados e voltassem a derrubar os armazéns. A ocupação daquela noite prolongou-se por mais 58 dias e mobilizou centenas de pessoas. Além do acampamento no local, foram organizadas ações culturais, shows, aulas públicas, rodas de debate sobre urbanismo, assembleias, feira de livros, piqueniques, entre outras atividades que tinham como propósito mostrar à população o potencial e a importância histórica, ambiental, social e cultural do cais para a cidade (Bueno, 2014).

O processo de especulação imobiliária no país não é algo novo nem recente. No entanto, a escolha estratégica de fazer uso dos megaeventos como política de desenvolvimento e reestruturação urbana das cidades brasileiras fez aflorar e acelerar práticas de privatização do espaço público já em curso no Brasil.

Os novos espaços públicos contemporâneos, resultantes das intervenções promovidas pelos megaeventos, ao serem privatizados, se distanciam de seus usos sociais e procuram limitar as possibilidades de apropriação. São recorrentes nas intervenções urbanas as ações de higienização dos espaços considerados essenciais à realização do evento. Estas ações procuram fazer a assepsia dos espaços da cidade destinados ao turismo ou dos que são necessários à circulação dos produtos a serem consumidos, promovendo a remoção e/ou repressão de populações ou práticas que não se enquadrem no conceito dominante de espetáculo, consumo e cultura (Silva e Ziviani, 2014).

Com o intuito de barrar tal processo crescente de privatização e sob o slogan “A cidade é nossa. Ocupe-a”, o movimento convoca a população para “estar junta” na defesa ao direito à cidade, e convoca todos os outros movimentos, grupos e pessoas para tomarem posse da cidade. O movimento #OcupeEstelita incita à ocupação do cais, conformando um outro tipo de ação onde a cidade é chamada a lutar pela sua imagem. Aqui temos uma reimaginação às avessas, constituída pela resistência às imagens de cidade que os megaeventos tentam impor. Um novo sentido para a ideia de paisagem urbana, representada pela luta contra as empreiteiras e os megaempreendimentos imobiliários em favor de uma paisagem que respeite a identidade e a história da cidade. A cidade diz “Não ao Novo Recife, sim ao Nosso Recife”.14

 

5. Temporalidades difusas

Terminar com o #OcupeEstelita nos aponta para a compreensão de um espaço público que neste momento passa a ser um lugar de representação e ação, um espaço institucional e insurgente, um meio caminho em tensão entre um desenho rígido e regulador e um flexível e espontâneo.

O uso das ruas como lugar da batalha se funda na proposta de transformação deste espaço. A rua passa a ser disciplinada e disciplinadora da multidão a partir do século xix, pelo que as ruas de nossas cidades atuais, pensadas como espaço institucional e regulado, não são vistas como lugares para os corpos jogarem pedras nem construírem barricadas, não são lugares para o enfrentamento político e econômico. Mas quando tomada pelos grupos de ação direta, anarquistas, insurgentes e espontâneos, passa a ser o espaço do vivido, da explicitação dos conflitos da desigualdade, o lugar da partilha – a partilha do comum, mas de um comum que é desigual (Rancière, 2005). Isso porque se o espaço é fruto do jogo das relações que o constroem (Massey, 2008), este não será nunca algo posto, único, monolítico. Ou seja, nele estão implicados, invariavelmente, traços de poder, conflito, “participação em um conjunto comum” e “divisão de partes exclusivas” (Rancière, 2005).

O planejamento das cidades ressalta, em seu discurso, o bem comum, sem considerar que o comum é ocupado por muitos e de formas diferentes. Tais políticas partilham determinadas mensagens, que ao mesmo tempo produzem um controle de enunciados, uma redução da pluralidade em circulação, fazendo circular uma única narrativa. Os protestos que agitaram o país em 2013 ocorreram em diferentes tempos, espaços e dinâmicas: na forma de passeatas que caminhavam por pontos estratégicos da cidade; na mobilização ocorrida através das redes sociais pela internet; ou nas ocupações que expressavam e marcavam no espaço, tanto físico quanto simbólico, a tensão presente entre os interesses dos megaeventos e os interesses dos habitantes da cidade. Nesse aspecto, as Jornadas de Junho surgem como um acontecimento-núcleo de várias outras questões que acabam por garantir um aumento da pluralidade de narrativas, ou seja, uma temporalidade difusa em que os contornos não estão bem definidos.

A rua passa a ser o espaço por excelência da visibilidade do enfrentamento e as novas tecnologias servem para o registro, a conexão “ao vivo”, a internet como o lugar da transmissão do espetáculo que a performance da ação nas ruas quer contrapor à espetacularização capitalista. Estas manifestações mudam a cena urbana, rompem o pacto do consenso, emergem várias vezes como “vandalismo”, como destruidoras da cidade. Mas estão propondo um uso das ruas como forma de visibilidade da luta de classes e de exposição dos atos do outro contra o qual lutamos.

As cidades ressurgem, portanto, não apenas como campo de transformação do urbano, mas como espaços sociais políticos transformadores. Os mesmos eventos – no caso a Copa do Mundo e as Olímpiadas – que potencializam as intenções de acumulação do capital em nossas cidades, são os que, ao serem colocados em prática, abrem novas possibilidades de ação política que oportunizam a articulação de redes e movimentos sociais na busca pelo direito à cidade.

 

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Artigo recebido a 30.07.2017 Aprovado para publicação a 17.07.2018

 

NOTAS

* Este texto é uma versão ampliada da apresentação oral proferida na Reframing Media/Cultural Studies in the Age of Global Crisis Conference, na University of Westminster, Communication and Media Research Institute (Londres, 19 e 20 de junho de 2015). A expressão “temporalidades emaranhadas” foi retirada da obra de Georges Didi-Huberman (2014: 69), Sobrevivência dos vaga-lumes, no momento em que o autor cita o modo como Agamben compreende o contemporâneo

1 O serviço BlackBerry Messenger (BBM) permite com que seus usuários enviem mensagens gratuitas para todos os seus contatos simultaneamente.

2 Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgênero.

3 O MPL teve a sua constituição formalizada em 2005, mas o movimento é fruto de campanhas e fatos históricos importantes como a Revolta do Buzu (Salvador, em 2003) e as Revoltas da Catraca (Florianópolis, em 2004 e 2005). O MPL, caracterizado como movimento horizontal, autônomo, independente e apartidário, atua pela luta em prol da mobilidade urbana e contra o carro (transporte individual e privado) – símbolo do capitalismo, na concepção do movimento. Dessa forma, os seus membros consideram que a bandeira do movimento é uma luta contra o sistema, contra o modo de produção econômico-político da sociedade atual, sendo a tarifa zero uma afirmação do direito à cidade, e luta pela democratização efetiva do acesso ao espaço urbano (Locatelli, 2013).

4 O Brasil passou por dois processos de transição política que colocaram fim aos regimes ditatoriais e ficaram conhecidos como redemocratização: o primeiro deles ocorreu em 1945, ano em que cessou a ditadura do Estado Novo (1937-1945); já o segundo ocorreu com o fim do Regime Militar que permaneceu no país por 21 anos, especificamente, entre 1964 e 1985.

5 São elas: Belo Horizonte, Brasília, Cuiabá, Curitiba, Fortaleza, Manaus, Natal, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo.

6 Ver G1 Brasil (2013), terceiro infográfico (intitulado “Quantas pessoas foram às ruas”) disponível em http://g1.globo.com/brasil/protestos-2013/infografico/platb/. Consultado a 18.04.2015.

7 Mídia NINJA (Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação) é um projeto vinculado à Pós TV (uma web TV criada pelo Circuito Fora do Eixo) composto por um grupo de “repórteres” que transmite ao vivo (live streaming), através de um celular de última geração conectado a uma rede 3G ou 4G, por horas a fio, imagens das manifestações, em especial dos conflitos entre manifestantes e a polícia. Com o avançar das manifestações, novos “ninjas” (nem sempre vinculados a esse projeto, mas com constante apoio técnico e de divulgação dele) foram surgindo e oferecendo diferentes leituras e ângulos dos acontecimentos (Mídia NINJA, 2015; Bainbridge, 2014).

8 Ver BBC Brasil (2013), último gráfico disponível em http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2013/07/130710_protestos_tweets_hashtags_cc_mdb. Consultado a 18.04.2015.

9 Ver G1 Brasil (2013), segundo infomapa “Protestos de junho e julho”, do dia 20/06, disponível em http://g1.globo.com/brasil/protestos-2013/infografico/platb/. Consultado a 18.04.2015.

10 Faz-se menção aos projetos de lei que tramitavam no Congresso Nacional: 1) o Estatuto do Nascituro, que dentre outras ações proíbe o aborto em qualquer situação, inclusive em caso de estupro; 2) o projeto de lei mais conhecido como “cura gay”, cuja a proposta suprimia a resolução do Conselho Federal de Psicologia que proíbe os profissionais de participarem de terapia para alterar a orientação sexual.

11 “Quando morar é um privilégio, ocupar é um direito” foi a frase mais projetada no momento.

12 Facebook Movimento Ocupe Estelita (2015) e Direitos Urbanos Recife (2015).

13 Ver imagens da orla da cidade de Recife, do Cais José Estelita e do movimento Ocupe Estelita em Direitos Urbanos (2012) e Araújo (2014).

14 Facebook Movimento Ocupe Estelita (2015).

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