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Revista Crítica de Ciências Sociais

On-line version ISSN 2182-7435

Revista Crítica de Ciências Sociais  no.118 Coimbra May 2019

 

RECENSÃO

Correia, Pedro de Pezarat (2017), … da descolonização. Do protonacionalismo ao pós-colonialismo

 

David Castaño

Instituto Português de Relações Internacionais, Universidade Nova de Lisboa Rua de D. Estefânia, 195, 5.º D, 1000-155 Lisboa, Portugal davidcastano@fcsh.unl.pt

 

… da descolonização. Do protonacionalismo ao pós-colonialismo

Pedro de Pezarat Correia

Correia, Pedro de Pezarat (2017), … da descolonização. Do protonacionalismo ao pós-colonialismo. Porto: Book Cover Editora, 830 pp.

 

Publicado no final de 2017, este livro do major-general reformado Pedro de Pezarat Correia é em grande parte fruto da tese de doutoramento em Relações Internacionais – Política Internacional e Resolução de Conflitos, que por sua vez recupera algumas das ideias já expostas na longa bibliografia do autor, nomeadamente no livro Descolonização de Angola. A jóia da coroa do império português, de 1992.

Oficial de infantaria com seis comissões (na Índia, em Moçambique, em Angola e na Guiné-Bissau), Pezarat descreve o livro como “um mero contributo de um observador que se situava do lado do colonizador” (p. 12). No entanto, o autor não foi um mero observador, pois para além das comissões nos principais teatros de guerra, envolveu-se na contestação ao Congresso dos Combatentes e acompanhou de perto a formação do Movimento dos Capitães em Angola, onde se encontrava em 1974. Depois do golpe militar de 25 de abril foi responsável pela constituição da Comissão Coordenadora do Movimento das Forças Armadas (MFA) em Angola, peça central na evolução da situação política e militar na então província, que à semelhança do que sucedia na metrópole era palco de profundas tensões, fruto de diferentes visões sobre o futuro dos até à data territórios coloniais. É que, como o autor sublinhará, os militares vitoriosos do 25 de Abril apenas estavam unidos num único consenso: o de que a solução para a guerra “teria de ser política e não militar” (p. 242), sendo que a descolonização era “um projeto pouco amadurecido, carente de uma estratégia previamente definida de estudos previsionais com que se depararia” (p. 241). Esta falta de estratégia e a existência de diferentes pontos de vista estaria na origem da aceleração do processo revolucionário em Portugal, que o autor também acompanharia e no qual teria participação ativa na qualidade de membro do Conselho da Revolução e de comandante da Região Militar do Sul.

Por outro lado, apesar de se situar no lado do colonizador, é evidente o esforço que o autor faz para se colocar no lado do “outro”, ou seja, do colonizado, procurando valorizar o papel deste como o verdadeiro protagonista em todos os processos de descolonização, apontando o que considera serem “os três vícios de perspetiva com que o ex-colonizador tende a observar o fenómeno da descolonização” (p. 66). São estes a dificuldade do colonizador em compreender que “a descolonização era um processo que o colonizado tinha já posto em marcha”, em “confundir a globalidade da descolonização com a fase da transferência do poder”, e em abandonar o “ancestral e etnocêntrico complexo de superioridade” (p. 67).

Dividido em duas partes – a primeira dedicada ao processo de colonização e de descolonização e a segunda centrada no processo de transferência do poder em Angola –, o livro procura oferecer uma perspetiva multidisciplinar em que “a colonização e a descolonização se desenvolveram numa área de interceção do poder e do espaço, da política e da geopolítica, da estratégia e da geoestratégia” (p. 25).

Assim, a primeira parte começa com um “enquadramento conceptual” que agrupa colonização e descolonização no mesmo fenómeno histórico, o colonialismo, afirmando o autor que “a descolonização nasce com a aspiração de um povo a ser soberano na sua terra ocupada” (p. 21). Esta afirmação merecia um maior desenvolvimento, deixando ao leitor um conjunto de interrogações. Qual o conceito de povo utilizado? Podemos falar da existência de um povo em Angola ou em Moçambique em 1974/1975? Se sim, não são esses povos frutos da colonização portuguesa? É o nacionalismo africano credor da colonização europeia? Devemos considerar que ainda não se verificou uma verdadeira descolonização, pois tanto os movimentos de guerrilha, como a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização de Unidade Africana (OUA) sempre procuraram garantir a unidade e integridade de cada território colonial e opuseram-se a toda e qualquer tentativa separatista ou a tentativas de desmembramento nos processos de independência, como aliás é recordado na parte do livro dedicada ao problema de Cabinda (pp. 491-509)? Uma plena descolonização não implicaria a destruição dessas construções artificiais, desenhadas a regra e esquadro em 1884/85 na Conferência de Berlim?

Na primeira parte do livro, o meritório esforço de se colocar do outro lado corre o risco de não ser suficientemente calibrado, sobressaindo uma recorrente utilização de citações de conhecidos ideólogos da luta anticolonialista, que revelam visões dicotómicas onde não há espaço para cambiantes e que, entre outros aspetos, alimentam o mito do bom selvagem. Sendo verdade que a história do colonialismo é uma história de violência, um leitor menos atento pode ficar com a ideia, errada, de que antes da chegada dos europeus não existiam conflitos. Ora, se existem vícios de perspetiva de um lado também existem vícios de perspetiva do outro e ambos devem ser combatidos. Ao referir alguns teóricos do fenómeno da colonização, Pezarat cita um autor que explica o colonialismo como resposta a um problema demográfico. No caso português dificilmente se pode explicar o colonialismo com este fenómeno. Desde os primórdios se ouviram críticas ao impacto negativo da expansão, tendo ficado célebre a frase de Sá de Miranda: “que ao cheiro desta canela/o reino nos despovoa”. Por outro lado, as políticas de fixação de colonos nos territórios coloniais foram maioritariamente mal sucedidas e desde o século xix se verifica que aqueles que procuraram melhores condições de vida fora da metrópole fizeram-no maioritariamente para outros destinos que não as colónias, apesar dos incentivos promovidos pelo Estado português, por exemplo, pelas Juntas Provinciais de Povoamento.1

Esta dificuldade em fixar colonos explica o paradoxo que o livro aflora ao relacionar colonização e descolonização. É que ao contrário do sucedido nas colónias de outras potências europeias, o grande surto colonialista da terceira vaga imperial portuguesa dá-se após a Segunda Guerra Mundial, precisamente quando se começa a assistir ao fim dos impérios europeus. Este colonialismo tardio dificultava qualquer tentativa de aproximação às forças independentistas que pouco a pouco foram despontando nos diversos territórios (pp. 103-113), muito embora sem nunca terem conhecido a pujança verificada noutras colónias europeias uma vez que escasseavam os meios sociais, económicos e culturais mais propícios ao surgimento, desenvolvimento e propagação das ideias independentistas. Como sublinha Pedro Aires Oliveira, o começo da guerra em Angola em 1961 “conferiu um impulso tremendo à expansão do aparato colonial, ao investimento público (e depois privado), ao crescimento e diversificação económica e ao povoamento branco”.2 Acresce que o Estado Novo era um regime autoritário não fazendo sentido falar-se em direito à autodeterminação dos povos colonizados (p. 123) quando essa mesma autodeterminação era negada aos próprios naturais da metrópole.

Além do mito do bom selvagem, o livro acaba também por involuntariamente exacerbar outro mito, curiosamente alimentado não pelos opositores do Estado Novo mas pelos seus apologistas: o mito do “orgulhosamente sós”. Ao longo da obra, são diversas as vezes em que este mito é alimentado. Logo no prefácio refere-se o isolamento externo de Portugal “nas relações Estado a Estado e nas instâncias internacionais da ONU, da OUA e mesmo da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), remetido ao apoio de Estados diplomaticamente marginalizados” (p. 14). No capítulo 4 da primeira parte, volta a referir-se o isolamento internacional, sendo afirmado que “o único aliado fiel e permanente com que contou nesta luta foi a África do Sul e, já na parte final, os EUA (Estados Unidos da América), quando estes inverteram a sua política para a África Austral” (p. 136). Sucede que vários trabalhos de investigação têm revelado o contrário, ou seja, que apesar do aparente isolamento, o Estado Novo pôde contar com importantes apoios de países europeus no seu esforço de guerra, nomeadamente da França e da República Federal da Alemanha.3 O apoio bilateral destes dois importantes países membros da OTAN e a mudança de posição dos EUA após a pressão exercida sobre Portugal no início da presidência Kennedy, garantiram alguma tranquilidade ao regime e permitiram que nas vésperas do 25 de Abril apenas na Guiné-Bissau a situação militar fosse claramente desfavorável a Portugal. Mas, se Portugal contara com apoios externos, também estes foram fundamentais para os guerrilheiros independentistas. Pezarat defende que na Guerra Colonial se cruzaram quatro conflitos: a luta de libertação; o conflito regional; o conflito Leste-Oeste; e a guerra civil (pp. 133-138). Já antes tinha relacionado as guerras de libertação à Guerra Fria e ao mundo bipolar do pós-guerra (pp. 59-64), no entanto, a falta de uma clara hierarquização tende a menosprezar a importância do contexto internacional global, a Guerra Fria, quando todos os outros conflitos estão enquadrados por este e lhe estão subordinados, mesmo que indiretamente.

Nesse sentido, sente-se a falta de um maior enquadramento do processo de criação e desenvolvimento dos movimentos independentistas na lógica da Guerra Fria. A primeira referência ao apoio internacional concedido aos movimentos independentistas surge apenas na página 129, depois de feita a descrição do nascimento dos vários partidos e movimentos (pp. 104-110), e, novamente, na página 277, no capítulo dedicado ao início das negociações para a transferência de poderes onde se refere o treino militar de 30 cabo-verdianos feito em Cuba, no ano de 1966. Já o apoio da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) aos movimentos guerrilheiros durante a Guerra Colonial, apenas é referido quando é abordado o apoio concedido durante a fase das independências: “A URSS reforçou o apoio aos seus aliados de Angola e Moçambique, em continuação do que já havia concedido aos respetivos movimentos de libertação na guerra colonial” (p. 336). Se é verdade que, ao contrário do que difundia o regime autoritário português, Moscovo não foi o único nem o principal patrocinador desses movimentos, não é possível fazer-se uma completa análise da ação dos movimentos, da sua sobrevivência, da Guerra Colonial e da descolonização, sem referir o papel da URSS. O mesmo se pode dizer do papel da outra superpotência, os EUA, mas esse é referido tanto na primeira parte do livro, quando se descrevem as várias démarches diplomáticas empreendidas pelos norte-americanos no sentido de contribuírem para uma mudança na política colonial de Salazar (p. 114), ou quando se descreve a opção Tar Baby e a sua articulação com o Exercício Alcora, ou seja, uma aproximação dos EUA a Portugal, à África do Sul e à Rodésia (p. 120 e pp. 304-311), como na segunda parte, dedicada à transferência do poder em Angola.

Curiosamente, nesta última parte do livro verifica-se também uma certa desvalorização da lógica bipolar. Logo no primeiro capítulo, referindo-se ao apoio de Cuba ao Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), o autor defende que a intervenção dos cubanos “deve ser interpretada no quadro do conflito regional e não no da guerra-fria”, e que se tratou de “uma iniciativa na linha da solidariedade internacionalista, sem qualquer interferência de Moscovo” (p. 394). A sustentar esta tese, surge apenas uma citação de um autor que defende que Cuba não atuou como satélite ou simples peão da URSS, embora reconheça que a operação contou com o apoio logístico de Moscovo (p. 395). Para Pezarat, que reconhece que o apoio de Cuba foi decisivo para a vitória do MPLA, este apenas ocorreu para responder à invasão sul-africana, valorizando assim a lógica do conflito regional em detrimento do conflito mundial. Desta forma, é desvalorizado o papel da URSS, mas ao mesmo tempo sublinhado o papel dos EUA que, de acordo com o autor, através da Central Intelligence Agency (CIA) coordenavam “as forças combinadas da FNLA, UNITA, FLEC, SADF, zairenses, mercenários portugueses” (p. 395). Sucede que a ação de Cuba e a sua própria existência não se consegue compreender sem a devida contextualização na Guerra Fria, do mesmo modo que o tardio processo de colonização/descolonização português não pode ser entendido fora do quadro bipolar nascido no pós-guerra.

É esse enquadramento que explica como é que Portugal conseguiu suportar durante tantos anos uma guerra em três cenários distintos, que ao mesmo tempo conheceram um acelerado processo de desenvolvimento. É esse enquadramento que decifra o rumo dos acontecimentos na metrópole após o 25 de Abril e é também esse enquadramento que condiciona o processo que conduziu às independências das antigas colónias portuguesas.

Esta obra de Pedro de Pezarat Correia ajuda a compreender esse processo e constitui uma mais-valia para todos aqueles que pretendem conhecer melhor o modo de pensar e de agir dos militares que a guerra levou a progressivamente se identificarem com o adversário.

 

NOTAS

1 Castelo, Cláudia (2007), Passagens para África: o povoamento de Angola e Moçambique com naturais da metrópole. Porto: Edições Afrontamento.

2 Costa, João Paulo Oliveira e (coord.); Rodrigues, José Damião; Oliveira, Pedro Aires (2014), História da expansão e do império português. Lisboa: A Esfera dos Livros, p. 509.

3 A este propósito vejam-se os trabalhos de Fonseca, Ana Mónica (2007), A força das armas: o apoio da República Federal da Alemanha ao Estado Novo (1958-1968). Lisboa: Ministério dos Negócios Estrangeiros; de Marcos, Daniel da Silva (2007), Salazar e de Gaulle: a França e a questão colonial portuguesa (1958-1968). Lisboa: Ministério dos Negócios Estrangeiros.

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