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Revista Crítica de Ciências Sociais

versão On-line ISSN 2182-7435

Revista Crítica de Ciências Sociais  no.119 Coimbra set. 2019

 

RECENSÃO

Tooze, Adam (2018), Crashed: How a Decade of Financial Crises Changed the World

 

Vicente Ferreira

Estudante da Licenciatura em Economia no Instituto Superior de Economia e Gestão da. Universidade de Lisboa Rua do Quelhas 6, 1200-781 Lisboa, Portugal vicentecbaf@gmail.com

 

Tooze, Adam (2018), Crashed: How a Decade of Financial Crises Changed the World. New York: Allen Lane, Penguin Books, 706 pp.

 

Há momentos de descontinuidade profunda na história das sociedades, que marcam o mundo de forma decisiva e estão condenados a ocupar um lugar de destaque na memória coletiva. A grande recessão de 2007-2008 foi certamente um desses momentos. Depois da violenta crise financeira, nada seria como dantes. É esse o tema central do recente livro de Adam Tooze, Crashed: How a Decade of Financial Crises Changed the World.

“A história que o livro conta”, como explica o autor, “é a de um descarrilamento” (p. 15).1 O livro organiza-se em quatro partes: “A formação da tempestade”, sobre o desenvolvimento dos desequilíbrios estruturais que originaram a crise; “A crise global”, que discute o colapso e as respostas imediatas; “Zona euro”, com foco no continente europeu; e “Réplicas”, sobre a década que se seguiu. Embora já muito tenha sido escrito sobre o assunto, este é um dos relatos mais informados, completos e abrangentes sobre a Grande Recessão e as suas consequências. A obra combina o foco nas dinâmicas do sistema financeiro com uma discussão dos conflitos dentro dos países e entre países. A análise do autor integra as esferas financeira, (geo)política e socioeconómica da história da última década (sendo a última, talvez, a menos tratada ao longo do livro). Poucos autores o terão conseguido fazer com a eloquência de Adam Tooze, historiador económico e professor na Universidade de Columbia, nos Estados Unidos da América (EUA).

Tooze começa por recordar como a maioria dos economistas previram a “crise errada”, por estarem apenas focados nos desequilíbrios comerciais entre os EUA e a China e ignorarem os riscos intrínsecos do próprio sistema financeiro. O autor parte depois para uma análise detalhada dos mecanismos financeiros complexos por detrás da crise e das diferentes respostas (programas de estímulos à economia ou de austeridade). A cronologia que o autor apresenta não se resume aos principais desenvolvimentos da crise nos EUA e nos países da Europa Ocidental, mas também na Rússia, na Europa de Leste, na China e noutros países asiáticos, ocupando uma parte substancial do livro com uma discussão das diferentes respostas das autoridades e dos conflitos geopolíticos.

Nas décadas que antecederam a crise, na zona euro, as diferenças nos modelos de crescimento e nas estruturas produtivas dos diferentes países originaram desequilíbrios entre países excedentários e deficitários.2 O afluxo de capitais para os segundos alimentou bolhas especulativas (no imobiliário ou nos mercados bolsistas) e tendências de endividamento cumulativo. O extraordinário desenvolvimento de Wall Street e dos lucros do sistema financeiro norte-americano podem também ser compreendidos pela necessidade de captar capitais para financiar os défices dos EUA, oferecendo ativos de maior risco com retornos compensadores para os investidores. Os bancos europeus foram os principais envolvidos nestas operações financeiras de risco, tornando-se bastante dependentes do mercado financeiro norte-americano num contexto de financeirização do capitalismo ocidental.3

Embora a quebra dos preços das casas e dos créditos subprime tenha sido a causa imediata da crise, Tooze recorda que esta tem origem na intensificação dos laços financeiros transatlânticos entre os EUA e a Europa nas décadas anteriores à crise, facilitada pela vaga de desregulação do setor que permitiu aumentar significativamente o fluxo de capitais e a alavancagem dos bancos. Os acontecimentos de 2007-2008 nos EUA, a quebra da confiança no sistema e o consequente congelamento do crédito, do qual todos os bancos e instituições estavam dependentes, fariam ruir o castelo de cartas do sistema financeiro, provocando a recessão mais profunda desde a Grande Depressão de 1929. “Nunca antes, nem sequer na década de 1930, tínhamos assistido à iminência da implosão de um sistema tão amplo e interdependente” (p. 9), escreve Tooze. A queda do Lehman Brothers, em setembro de 2008, seria apenas o início.

A crise da dívida privada foi transformada numa crise da dívida pública através da absorção das perdas financeiras pelos Estados. No livro Austeridade: a história de uma ideia perigosa, Mark Blyth descreveu esta operação como o maior embuste (“bait and switch”) da história contemporânea.4 No caso da zona euro, a austeridade foi o mecanismo de socialização destas perdas, passando o encargo para as populações. A agudização da crise e a generalização do desemprego foram, por isso, resultado de escolhas políticas das instituições europeias. Nas palavras do autor, este foi “um espetáculo que deve inspirar indignação. Milhões de pessoas sofreram sem nenhuma razão para isso” (p. 15).

Em linha com a tradição da economia política institucionalista, Tooze reconhece como utópica a ideia de que existem mercados como entidades politicamente neutras e cujo funcionamento não depende de regulações, normas e hábitos sociais. Ao expor os desequilíbrios do processo de financeirização e a necessidade de recurso ao financiamento do Estado para evitar situações de insolvência dos bancos, a crise acabou também com o mito da desregulação virtuosa – esta “derrota histórica” foi a única forma de salvar um sistema em falência.

A política monetária expansionista da Reserva Federal norte-americana teve, por isso, um papel crucial para evitar o aprofundamento da crise global, permitindo resgatar as instituições financeiras norte-americanas e oferecer liquidez aos bancos europeus (que precisavam urgentemente de reservas de dólares) através de medidas opacas como as currency swap lines. Se dúvidas houvesse sobre a hegemonia do dólar no sistema financeiro internacional, estas ficaram desfeitas com a atuação da Reserva Federal como “emprestador de último recurso” da economia global. Tooze destaca a importância deste facto que, em conjunto com o poderio militar, continuam a garantir o papel dos EUA como principal potência mundial (ainda que ameaçada pela ascensão da China). Na zona euro, a rigidez de Angela Merkel e do governo alemão levou a que bloqueassem qualquer tipo de atuação contracíclica do Banco Central Europeu até que fosse demasiado tarde e a crise já tivesse devastado os países da periferia, com consequências sociais e políticas profundas (na Grécia, o país mais afetado, a taxa de desemprego jovem continua hoje próxima de 40%).

Por outro lado, a resposta expansionista da China à crise global merece a análise de Tooze. Ameaçada pela desaceleração do comércio, que afetou as suas exportações, a China desenvolveu um plano de resposta através de um reforço significativo do investimento público (de cerca de 12,5% do PIB) aliado a uma política monetária expansionista que permitiu atingir altas taxas de crescimento e emprego, ajudando a contrariar a tendência de recessão global.

Quais as consequências da Grande Recessão no rumo recente do capitalismo ocidental? A pergunta ocupa a discussão da última secção do livro, embora a resposta seja complexa e o autor procure evitar leituras deterministas. Mais de dez anos depois da crise, a política monetária expansionista pode ter evitado danos ainda maiores, mas não resolveu os problemas mais profundos, limitando-se a contribuir para recuperar os ganhos do sistema financeiro, sem que tenha havido alterações substanciais no campo da regulação. Além disso, a austeridade (aplicada sobretudo na zona euro) é responsável pela lenta recuperação destas economias e pela acentuação das desigualdades sociais. É difícil não associar os efeitos devastadores da crise e das escolhas políticas de preservação do sistema à erosão dos partidos tradicionais e à ascensão de candidatos alternativos, mobilizando a revolta social. A eleição de Donald Trump nos EUA e a ascensão dos partidos de extrema-direita por toda a Europa são exemplos desta “grande crise da modernidade” (p. 616). As elites ocidentais tradicionais estão a pagar o preço de sujeitarem a democracia à disciplina dos mercados financeiros.

 

NOTAS

1 Todas as traduções são do autor.

2 Storm, Servaas; Naastepad, C. W. M. (2016), “Myths, Mix-Ups, and Mishandlings: Understanding the Eurozone Crisis”, International Journal of Political Economy, 45(1), 46-71.

3 Lapavitsas, Costas (2013), Profiting without Producing; How Finance Exploits Us All. London: Verso.

4 Blyth, Mark (2013), Austeridade: a historia de uma ideia perigosa. Lisboa: Quetzal Editores. Tradução de Freitas e Silva.

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