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Revista Crítica de Ciências Sociais

versão On-line ISSN 2182-7435

Revista Crítica de Ciências Sociais  no.119 Coimbra set. 2019

 

RECENSÃO

Kuttner, Robert (2018), Can Democracy Survive Global Capitalism?

 

João Rodrigues

Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra | Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Avenida Dias da Silva, 165, 3004-512 Coimbra, Portugal joaorodrigues@ces.uc.pt

 

Kuttner, Robert (2018), Can Democracy Survive Global Capitalism? New York/London: Norton, 360 pp.

 

Da recessão democrática à democracia iliberal, muitos são os que agora diagnosticam uma crise das democracias ditas liberais de matriz ocidental. Estas estariam a ser postas em causa por uma antielitista raiva popular, fomentada por nacional-populistas. Nos Estados Unidos da América (EUA), tal tendência teria um nome óbvio: Donald Trump.

Em contraste com uma literatura superficial, o último livro de Robert Kuttner tem como título aquela que é talvez a questão mais importante da economia política internacional nas presentes circunstâncias históricas: “será que a democracia pode sobreviver ao capitalismo global?”.

Trata-se de um livro escrito por um economista, que é um intelectual público, de orientação vincadamente social-democrata; um “liberal”, na peculiar terminologia dos EUA, da ala esquerda dos democratas, um dos fundadores da revista American Prospect e do Economic Policy Institute, o principal think-tank ligado ao crescentemente frágil movimento sindical norte-americano. Enquanto jornalista, colunista e ensaísta, várias vezes premiado, tem escrutinado as perversas tendências no campo da economia política desde o seu primeiro livro, de 1980, sobre a revolta fiscal dos ricos, na altura só a começar. Os seus livros costumam de resto conter boas sínteses, combinando investigação aturada e divulgação da mais relevante literatura académica num estilo acessível, beneficiando também de ligações universitárias. Trata-se da versão crítica de um perfil habitual na enviesada esfera pública dos EUA, hegemonizada por intelectuais públicos neoliberais. Estes últimos têm há muito tempo a seu favor o maciço financiamento privado para cruzadas intelectuais e mediáticas.

O livro de Robert Kuttner inscreve-se numa linha que não separa – antes articula – as formas institucionais, ditas políticas, de que a democracia se tem de revestir e as formas institucionais que moldam as relações sociais no campo da provisão (a economia substantiva, como diria Karl Polanyi, uma das principais referências mobilizadas).

A história da democracia e das suas crises não pode ser separada da história do capitalismo e das suas crises, bem como da história das alternativas sistémicas pós-capitalistas. A história da democracia é também e sobretudo a história da luta de classes e das suas cristalizações institucionais nacionais; uma história de economia política, em suma, contra uma abordagem puramente política ou economicista.

Longe de ser uma parceria natural, a relação entre capitalismo e democracia é intrinsecamente tensa. Historicamente, a democracia baseada no sufrágio universal só pôde florescer no quadro do que Kuttner apoda de economias mistas, uma realidade institucional do mundo desenvolvido a seguir à Segunda Guerra Mundial. Por sua vez, este tipo de economia, e a maior e mais partilhada prosperidade que gerou, só pôde florescer no quadro de Estados nacionais com vontade e capacidade políticas para conter o antidemocrático poder estrutural do capital, criando-lhe freios e contrapesos.

Neste contexto, Kuttner explora com particular sagacidade a relação entre a imposição de mecanismos nacionais para regular a finança e o comércio internacionais (incluindo controlos à entrada e à saída de capitais e um certo protecionismo) e os ganhos institucionais, económicos e políticos das classes trabalhadoras (da desmercadorização parcial das relações laborais, aos ganhos salariais, passando pela política económica orientada para o pleno emprego). A relação anterior está no centro da economia política keynesiana, embora nem sempre seja tão visibilizada como o é neste livro. O conhecimento da história permite-lhe, além do mais, comparações e analogias pertinentes, tão necessárias em economia política: por exemplo, a comparação entre o governo trabalhista britânico a partir de 1945, com uma economia mais endividada devido à guerra, e o governo socialista da presidência de François Mitterrand, em França, do início da década de 1980; o primeiro – porque tinha a finança sob controlo, a repressão financeira, como lhe chamam os neoliberais – conseguiu uma margem de manobra bem superior ao segundo, compelido a render-se ao poder da finança dita privada e à integração europeia que a estava decisivamente reforçando.

Sendo algo melancólico, o olhar de Robert Kuttner sobre o período que vai da Segunda Guerra Mundial aos turbulentos anos 1970 enfatiza as circunstâncias históricas únicas e fortuitas que geraram um capitalismo relativamente democrático – dos efeitos político-ideológicos da Grande Depressão, em especial o New Deal de Franklin D. Roosevelt, “o mais eficaz presidente populista e progressista da história dos EUA” (p. 286), à existência de um campo socialista liderado pela União Soviética. Depois de décadas de recuo democrático, de erosão e desaparecimento dos freios internos e externos ao poder do capital, o tipo de circunstâncias que geraram o capitalismo democrático é hoje reconhecidamente mais difícil de repetir “do que nas vésperas da Segunda Guerra Mundial” (p. 286).

Na realidade, “hoje, o capitalismo democrático é uma contradição nos termos” (p. 283), graças à ressurgência política do capital dos anos 1970 em diante, favorecida pela liberalização financeira e comercial, pela globalização realmente existente. É então hoje mais fácil vislumbrar o fim da democracia do que o fim de um capitalismo cada vez mais socialmente desigual, politicamente oligárquico, economicamente medíocre e ambientalmente insustentável.

Para um social-democrata, parte da explicação é dolorosa, já que é interna ao movimento, à forma como foi ideologicamente colonizado pelo neoliberalismo e pelo globalismo que lhe é indissociável na prática – de Tony Blair aos Clinton (Bill e Hillary). E isto sem esquecer uma social-democracia europeia esvaziada por uma integração regional por si promovida e que não passa de uma versão extrema da globalização. Um dos capítulos intitula-se precisamente “A desgraça do centro-esquerda”. A derrotada Hillary Clinton (nas eleições à presidência dos EUA em 2016), por exemplo, é o culminar de toda uma abdicação no campo das políticas para a “gente comum”, ou seja, das regras que transferem recursos de cima para baixo, ao invés de ser ao contrário. Deixar de falar de classes é meio caminho andado para se passar a considerar “deploráveis” segmentos populares que, pelo contrário, haveria de resgatar da versão reacionária do nacional-populismo. No fundo, como assinala com perspicácia Kuttner, Clinton é o sonho de Steve Bannon tornado realidade: Trump monopolizaria o nacionalismo económico e os democratas, rendidos a Wall Street, ficariam com fragmentos identitários.

Para um social-democrata, Kuttner tem ousadia no diagnóstico e na opção estratégica, em particular no resgate do nacionalismo e do populismo das mãos das direitas: sem algum grau de desglobalização, sem a recuperação de alguma soberania para os Estados nacionais no campo da economia política e da política económica – incluindo o recurso ao protecionismo e aos controlos de capitais – não é possível resgatar a democracia e as amplas liberdades para a maioria assalariada. Sem a imaginação nacional e popular a funcionar para democratizar a economia, o campo fica livre para Trump e quejandos. Kuttner faz este exercício tendo mais em atenção os EUA do que outras áreas geográficas, em particular a União Europeia, onde a integração associada ao euro tem duas faces políticas que há que superar desmantelando este projeto monetário: neoliberalismo e neofascismo.

A hipótese de uma liderança norte-americana progressista (com Bernie Sanders na presidência dos EUA?), numa espécie de combinação de nacionalismo são e de internacionalismo generoso, subestima as realidades de um mundo felizmente mais multipolar, um dos poucos desenvolvimentos positivos dos últimos anos. Entretanto, se não se regressa já ao capitalismo democrático, talvez seja de ter uma perspetiva mais aberta em relação a Marx e ao socialismo? A resposta é infelizmente negativa, já que Kuttner é demasiado “democrata” para um engajamento sério com a tradição socialista. Neste campo, faria bem em seguir as pisadas de Polanyi: reconhecendo a variedade no marxismo, optaria por um diálogo mais profundo com esta tradição, em particular nos seus momentos estrategicamente mais lúcidos e eticamente mais emancipadores. O casamento entre Marx, Keynes e Polanyi é portador de pistas frutíferas para um projeto socialista que não pode deixar de ser um projeto de democratização da economia. Seja como for, o caminho começa por resgatar a democracia da globalização neoliberal, e aí Kuttner é útil para uma social-democracia desorientada dos dois lados do Atlântico.

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