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Revista Crítica de Ciências Sociais

versão On-line ISSN 2182-7435

Revista Crítica de Ciências Sociais  no.124 Coimbra abr. 2021  Epub 30-Abr-2021

https://doi.org/10.4000/rccs.11598 

Dossier

Reflexões sobre as lutas das classes médias no Brasil à luz da análise de classes e das utopias reais de Erik Olin Wright.

Reflections on the Struggles of the Middle Classes in Brazil in the Light of the Analysis of Classes and the Real Utopias of Erik Olin Wright.

Réflexions sur les luttes des classes moyennes au Brésil à la lumière de l’analyse des classes et des utopies réelles d’Erik Olin Wright.

Arnaldo José França Mazzei Nogueira1  2 
http://orcid.org/0000-0003-3870-177X

1 Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo, Butantã, São Paulo, Brasil, ajfranca@usp.br

2 Faculdade de Economia, Administração, Contábeis e Atuariais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.São Paulo, Brasil


Resumo

O presente artigo foi elaborado para o congresso internacional “Transformar o capitalismo com utopias reais: em torno do legado de Erik Olin Wright” promovido pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, em janeiro de 2020. O seu objetivo principal é uma reflexão das lutas sindicais no Brasil, envolvendo dois segmentos das classes trabalhadoras intermediárias: os servidores públicos e os bancários, à luz da análise de classes e das utopias reais de Wright. Nos dois casos, além do entendimento das condições mais gerais de trabalho, foram abordados os movimentos sindicais, com destaque às greves e seus desdobramentos sociais e políticos. O artigo divide-se em três partes: na primeira, discutem-se os movimentos sindicais dos servidores públicos; na segunda, analisa-se a luta sindical dos bancários; e, na última, avaliam-se as classes médias no Brasil à luz dos conceitos de Wright.

Palavras-chave: Brasil; classe média; democracia; luta de classes; movimento sindical

Abstract

This article was prepared for the inter-national congress “Transforming Capitalism with Real Utopias: Around the Legacy of Erik Olin Wright” promoted by Centre for Social Studies of the University of Coimbra in January 2020. Its main objective is a reflection of the union struggles in Brazil, involving two segments of the intermediate working classes: public servants and bank workers, in the light of Wright’s analysis of classes and real utopias. In both cases, in addition to the understanding of more general working conditions, the union movements were approached, with emphasis on strikes and their social and political consequences. The article is divided into three parts: in the first one it discusses the union movements of public servants; in the second one it analyses the trade union struggle of bank workers; in the last one it elaborates an analysis of the middle classes in Brazil in the light of Wright’s concepts.

Keywords: Brazil; class struggle; democracy; middle class; trade union movement

Résumé

Cet article a été préparé pour le congrès international « Transformer le capitalisme avec des utopies réelles : autour de l’héritage d’Erik Olin Wright », promu par le Centre d’études sociales de l’Université de Coimbra en janvier 2020. L’objectif principal est une réflexion sur les luttes syndicales au Brésil, impliquant deux segments des classes ouvrières intermédiaires : les fonctionnaires publics et les employés de banque, à la lumière de l’analyse des classes et des utopies réelles de Wright. Dans les deux cas, outre la compréhension des conditions de travail plus générales, les mouvements syndicaux ont été abordés, en mettant l’accent sur les grèves et leurs développements sociales et politiques. L’article se divise en trois parties : dans la première, on aborde les mouvements syndicaux des fonctionnaires publics ; dans la deuxième, on analyse la lutte syndicale des employés de banque ; et, dans la dernière, on évalue les classes moyennes au Brésil à la lumière des concepts de Wright.

Mots-clés: Brésil; classe moyenne; démocratie; lutte des classes; mouvement syndical

Introdução

A questão lançada por Erik Olin Wright em seu último livro, Como ser anticapitalista no século xxi? (2019a), foi intrigante no contexto de forte regressividade que vivia os Estados Unidos da América (EUA) - make America great again - na gestão Trump. As utopias reais de Wright para transformar o capitalismo resgatam a questão da democracia em alternativa às lutas de classes e incorporam a noção de microespaços de libertação do modo capitalista de vida.

Passados alguns meses do congresso em homenagem a Wright promovido pelo Centro de Estudos Socais da Universidade de Coimbra em janeiro de 2020, os movimentos sociais eclodiram nos EUA com destaque à participação dos jovens nas lutas contra o racismo e a favor do Black Lives Matter. As lutas sociais ocuparam os espaços das lutas de classes e influenciaram as mudanças da sociedade norte-americana dentro dos parâmetros democráticos.

O presente artigo tem como objetivo uma reflexão sobre as lutas de classes no Brasil envolvendo dois segmentos das classes trabalhadoras intermediárias: os servidores públicos e os bancários. Nos dois casos, além do entendimento das condições mais gerais de trabalho, foram abordados os movimentos sindicais, com destaque às greves e seus desdobramentos sociais e políticos. Esses, por sua vez, indicavam haver exploração e conflitos no trabalho de categorias específicas na chamada esfera da reprodução ampliada do modo capitalista de produção, a saber: no âmbito dos serviços do Estado e no âmbito dos serviços bancários.

Inspirado em Wright, duas questões orientaram a discussão: a exploração, os conflitos e as greves do trabalho de categorias específicas teriam o potencial de unir as classes que vivem do trabalho na luta de transformação do capitalismo? A luta política pelo aprofundamento da democracia para além das lutas corporativas possibilitaria transformações do capitalismo no contexto das mudanças atuais do mundo do trabalho?

As teorias de classes e estratificação social tinham que ser visitadas para uma compreensão mais clara dos limites e potencialidades das lutas sindicais das classes médias e de suas conexões com as classes trabalhadoras em geral. Daí o interesse na obra de Wright, em particular na análise das classes sociais, que era sua principal contribuição à sociologia e ao neomarxismo (Wright, 1983: 10).

O debate sobre as classes sociais entre a sociologia e o marxismo é relativamente antigo. Analistas defendiam, a partir da expansão das classes médias e do setor de serviços, que a luta de classes e a categoria do trabalho perderiam a força de explicação e transformação das sociedades avançadas. As transformações sociais radicais não teriam mais espaço, à medida do avanço da modernização, da afluência material e da criação de mecanismos de administração dos conflitos. A instalação do Estado liberal democrático e do Estado do bem-estar social criavam canais de soluções de conflitos e substituíam as ações mais radicais. O sindicalismo e os partidos de oposição transformavam-se em instituições de participação e de negociação e perdiam, assim, seu papel de transformação da sociedade. Além disso, a expansão da sociedade dos serviços e do conhecimento ampliava os segmentos intermediários enquanto ocorria uma redução da classe operária industrial (Miliband apudGiddens, 1984; Offe, 1989; Giddens, 2004).

Miliband, Poulantzas e muitos outros representantes do marxismo contribuíram para legar o papel das lutas de classes e da centralidade do trabalho nas transformações do capitalismo, influenciando a sociologia crítica lusófona contemporânea (cf. Nogueira, 2005; Antunes, 2008; Antunes e Braga, 2009; Estanque, 2015 e muitos outros autores).

Wright é uma referência nessa discussão ao propor uma leitura heterodoxa do marxismo nos séculos xx e xxi, que contribuiu para o esclarecimento das novas relações sociais das classes intermediárias posicionadas entre as classes fundamentais da sociedade capitalista - capitalistas e trabalhadores. Wright levou às últimas consequências a categoria da exploração do trabalho para análise dos conflitos sociais. De acordo com Santos (2002: 43), a contribuição de Wright em entender o conceito de classe centrado na exploração indicaria um dos mecanismos centrais por meio dos quais a estrutura de classes explicaria o conflito de classes.

Segundo Wright (2015), a análise de classes deve considerar o conceito de “estrutura de classes” de uma sociedade, mas não se restringe ao mesmo. São necessários outros elementos conceituais, como a formação de classes (a formação das classes até se tornarem atores coletivamente organizados), a luta de classes (as práticas de atores para a concretização de interesses de classe) e a consciência de classe (a compreensão, pelos atores, de seus interesses de classe), fundamentais para identificar os movimentos que afirmam e negam os interesses de classe. A tarefa da análise de classes não é apenas entender a estrutura de classes e seus efeitos, mas entender as interconexões entre todos esses elementos e suas consequências para outros aspectos da vida social.

As investigações realizadas por mim sobre as lutas sociais e trabalhistas dos dois segmentos das classes médias, a saber, os servidores públicos e os bancários, dialogavam diretamente com a análise de classes proposta por Wright, mas também com a questão do aprofundamento da democracia no capitalismo brasileiro. Os servidores públicos formaram um coletivo (formação de classes) na luta contra a exploração ou a desvalorização do seu trabalho pelo Estado no contexto do capitalismo brasileiro (luta de classes) e apontaram para uma tomada de consciência de classe (trabalhador público versus servidor), importante para o processo de democratização. Os bancários, por sua vez, representavam um coletivo com forte tradição de organização sindical e influência política no Partido dos Trabalhadores (PT) e na luta democrática. Atuavam no âmbito nacional, negociando e conquistando melhores salários e condições de trabalho mediante a luta corporativa de classes através de greves nacionais contra as políticas de exploração dos bancos.

A questão de fundo reside na conexão entre as lutas sindicais corporativas e os demais interesses das classes trabalhadoras assalariadas. E isso implica observar a dimensão mais geral da luta política no interior do regime democrático estabelecido no Brasil desde 1988. Os servidores públicos posicionam-se no âmbito do trabalho improdutivo e, digamos assim, na esfera da “menos-valia”, enquanto os bancários são trabalhadores produtivos nos serviços, multiplicando na esfera financeira a mais-valia gerada na produção capitalista. As possibilidades de aproximação desses segmentos com a classe trabalhadora dão-se pela percepção de exploração ou desvalorização do trabalho e pelas lutas econômicas e sociais conduzidas pelo sindicalismo. Mas é apenas nas esferas ideológicas e políticas que as identidades amplas de classe podem ocorrer, sejam nos movimentos sociais e políticos, nas preferências eleitorais e na busca de alternativas transformadoras do Estado capitalista.

1. Os movimentos sindicais dos servidores públicos: potencialidades e limites

A investigação sobre o sindicalismo dos servidores públicos partiu das seguintes questões: Como entender as relações de trabalho no Estado em comparação com o setor privado? Qual o papel do sindicalismo público neste contexto? Quais as dificuldades nas relações entre servidores públicos e outros segmentos da classe trabalhadora? Como foram as relações entre servidores públicos e os governos de Fernando Henrique Cardoso (FHC) e do PT?

Os conflitos são inerentes às relações entre trabalho e capital na sociedade. As fontes de conflito no Estado capitalista encontram-se duplamente determinadas pelas relações diretas entre funcionários e níveis de governo do Estado e pelas contradições do regime capitalista de produção.

Em primeiro lugar, são relações de trabalho entre não proprietários de meios de produção entre si (funcionários e governo ou governantes), ao invés de relações sociais diretamente capitalistas. Isto significa, no parâmetro de Marx, que não há no relacionamento coletivo dentro do Estado, nas atividades de administração, de controle e de prestação de serviços públicos, produção de valor para acumulação de capital. Trata-se então de trabalho assalariado improdutivo e que atua na reprodução ampliada do capital.

Isto, porém, não significa que não haja exploração direta do trabalho pelo Estado. A exploração ocorre nos processos de serviços e administração voltados à esfera da reprodução social e política do conjunto da sociedade de classes. A taxa de exploração do trabalho no Estado envolve a quantidade de salário em relação à jornada de trabalho, as condições gerais do trabalho e às expectativas dos agentes quanto às condições de vida na sociedade capitalista.

A questão dos salários informa sobre o padrão de vida dos assalariados. Assim, as políticas de contenção dos gastos públicos para enfrentar as crises dos Estados capitalistas submetem os funcionários públicos a permanentes reduções salariais e deteriorações das suas condições de trabalho.

Antes mesmo da Constituição de 1988, que reconheceu a liberdade de associação sindical sem estabelecer as regras das relações de trabalho, os movimentos dos servidores a partir das mudanças das associações tradicionais em associações de caráter sindical e de oposição política revelaram as fraturas existentes no interior do próprio Estado. A crise do Estado se apresentava no plano interno também como crise das relações de trabalho entre servidores públicos e o próprio Estado. Esse processo desenvolveu-se por meio das greves econômicas, da luta política pela democratização e da articulação das organizações dos servidores públicos com o conjunto do movimento sindical, principalmente na Central Única dos Trabalhadores (CUT). Na transição da abertura do regime militar para a Nova República e dessa para a democracia constitucional, o movimento associativo-sindical dos servidores públicos experimenta uma expansão em sua organização e mobilização.

O Brasil na década de 1980 foi campeão mundial de greves em termos de jornadas não trabalhadas e dias de paralisação. Os trabalhadores do setor público foram os principais responsáveis por esses indicadores (cf. Nogueira, 2005). As greves no setor público brasileiro foram econômicas e políticas. A causa primeira dos movimentos grevistas era econômica e salarial, e por ocorrerem nas atividades públicas e estatais ganhavam caráter diretamente político, porque questionavam o poder e a legitimidade dos governos na sociedade. A greve era política também pelo lado da dimensão pública, no sentido de interferir diretamente nos interesses das classes que vivem do trabalho. No entanto, essa conexão não ocorria na prática dos movimentos e as lutas corporativas predominavam em relação aos interesses de classe do mundo do trabalho.

Após a Constituição de 1988, o direito à livre associação sindical não alterou as características básicas desse movimento, apenas multiplicou o número de entidades e ampliou a diversidade e a fragmentação de organizações nas três esferas do governo. Até o final dos anos 1990, havia cerca de 1300 entidades sindicais de trabalhadores e servidores públicos no Brasil. É o que entendemos por corporativismo espontâneo não conduzido pelo Estado, mas que funciona dentro do Estado, desarticulado com as demais classes do trabalho e das lutas de aprofundamento da esfera pública democrática (cf. Nogueira, 2007).

Há uma clara diversidade política e ideológica por detrás das entidades dos funcionários públicos. Resumidamente, colocam-se três situações principais: 1) o novo sindicalismo, originado das novas associações e geralmente dirigido por lideranças de esquerda, que defende propostas políticas socialistas; estas tendem a um sindicalismo de oposição política aos governos; 2) o sindicalismo em transição, de caráter corporativo e não filiado às centrais sindicais, que tem assumido posições políticas contrárias ao governo e atuado conjuntamente com outras entidades mais combativas e, 3) o sindicalismo associativo e apolítico, de base mais conservadora que atua de forma mais fechada, voltado apenas para o interesse de suas categorias.

Na esfera política, diferente do sindicalismo do setor privado, o sindicalismo público vivencia o seguinte dilema: é impulsionado a atuar sob uma lógica de luta econômica e salarial, dentro do Estado, ou seja, na especificidade do Estado enquanto sociedade política. Isso condiciona os resultados de suas ações que dependem do jogo político dos governantes de plantão.

O governo FHC significou uma continuidade da política neoliberal de Fernando Affonso Collor de Mello no que se refere aos sindicatos do setor público e estatal. Adotou uma política contrária à negociação, com elementos autocráticos e criou um jogo de “queda-de-braço” nesse campo. O enfrentamento com os petroleiros e as políticas de contenção salarial no setor público somaram-se à crise do mundo do trabalho devido aos processos de reestruturação produtiva. O desemprego e o subemprego atingiram patamares alarmantes, mostrando a dissonância do governo do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) para com os trabalhadores em geral. Essa foi uma das razões que levou Luiz Inácio Lula da Silva (de agora em diante, Lula) à vitória eleitoral no segundo turno das eleições de 2002 (cf. Nogueira, 2007).

A recuperação dos movimentos sindicais e dos trabalhadores ocorreu ao longo da primeira década dos anos 2000, durante o governo Lula. O ambiente político favorável ao sindicalismo trouxe conquistas sociais e salariais importantes para o mundo do trabalho. No entanto, medidas iniciais desse governo como a reforma da previdência e a chamada reforma universitária PROUNI produziram divergências no interior do movimento sindical com ameaças e desligamentos de sindicatos da CUT e um recrudescimento da oposição em relação ao governo Lula. Entidades dos funcionários públicos federais e estaduais, com destaque aos setores da educação superior, previdência e saúde, retomaram o campo da oposição política e passaram a acusar o governo de traição às causas dos servidores públicos e dos trabalhadores, e ainda de continuidade em relação às políticas neoliberais do governo FHC.

Foram diversos movimentos grevistas envolvendo os servidores públicos com destaque aos setores de educação e da seguridade social e servidores públicos em geral que acabaram por estabelecer uma ruptura de tendências sindicais no setor. Enquanto isso, outros segmentos, como o dos fiscais da receita federal, conseguiam acordos bem mais favoráveis. A categoria do fisco tem um espectro social conservador e o seu sindicato nacional oscila entre tendências progressistas e conservadoras, mas nem sequer é filiado a qualquer central sindical, seja de apoio ou de oposição ao governo federal. Atua em raia própria em torno dos seus próprios interesses corporativos em segmento exclusivo do Estado e de grande importância na esfera pública. O governo do PT, apesar de aberto às negociações, não produziu resultados eficazes na recuperação do setor público voltado às classes populares. Houve uma debandada dos sindicatos públicos da CUT, que perdeu capacidade de mobilização. No plano político e partidário, a expulsão de deputados federais e o afastamento de alguns intelectuais à esquerda do PT alimentaram o projeto de fundação de um novo partido: o PSOL - Partido do Socialismo e da Liberdade.

Disso tudo, ficam algumas questões: como articular a luta por melhores condições de trabalho e salário dos servidores com a melhoria da qualidade dos serviços prestados à população? Era o governo do PT que se afastava de uma perspectiva de classe enquanto os sindicatos mais radicais dos servidores públicos buscavam em suas lutas a valorização do setor público e a defesa do Estado popular e democrático voltado para os interesses da classe trabalhadora?

O que de fato aconteceu foi uma deterioração mais rápida nas relações entre parte do movimento sindical público e o governo do PT, o que não se imaginava antes. O desafio naquele momento era compatibilizar interesses contraditórios entre atender a demanda permanente de valorização dos serviços públicos e dos demais setores sociais e a pressão do grande capital pela redução dos gastos públicos e do tamanho do Estado.

Há aqui uma importante diferença: os governos do PT, apesar das reformas com impacto negativo nas categorias públicas, atenderam de outro lado interesses de setores mais amplos da sociedade e do próprio mundo do trabalho. Suas convicções democráticas sempre foram mais favoráveis aos interesses públicos em relação aos seus opositores de centro-direita do espectro político.

Diante desse quadro, os desafios das relações de trabalho e do sindicalismo no setor público amplificaram-se e as perspectivas de melhorias efetivas do setor público, principalmente na esfera dos serviços sociais, foram adiadas. Antes, os servidores públicos mais mobilizados e organizados em sindicatos estavam relativamente unidos com os demais trabalhadores contra um governo neoliberal. Atualmente, os trabalhadores desunidos assistem à degradação dos direitos sociais do trabalho tanto do setor privado como do setor público. As perspectivas de novas relações de trabalho no setor público e de um outro Estado efetivamente democrático vão se perdendo, com poucas chances de recuperação no presente e no futuro.

2. A luta sindical dos bancários

O perfil socioprofissional dos bancários, de acordo com pesquisa realizada com 528 bancários em 2011 (cf. Rodrigues, 2011), apresentava os seguintes dados: presença destacada do gênero feminino na amostra da categoria bancária com 46,4% de mulheres em relação a 53,2% de homens; uma categoria bastante escolarizada com cerca de 77,6% com formação igual ou acima do ensino superior completo; no tocante à renda ou faixa salarial, 50,4% estavam abaixo de R$ 3500,00, dado que posicionava aproximadamente metade da amostra na chamada média classe média e baixa classe média; os demais bancários ganhavam acima de R$ 3500,00 e poderiam ser compreendidos de forma bastante discutível na alta classe média de acordo com as estatísticas oficiais (cf. Quadros, 2010).

A alta escolaridade da maioria dos bancários da amostra pode indicar que as experiências das mudanças organizacionais tendem a ser vividas prioritariamente de uma forma mais individualizada e a qualificação joga um papel fundamental no mercado de trabalho. Isso tem a ver com as características da nova classe média, cuja posição social no mercado de trabalho, da qual decorrem outras atitudes típicas, é definida pela escolaridade, renda e poder (cf. Mills, 1969). As localizações contraditórias de classe de Wright estão certamente presentes no modo de ser dos bancários. Em complemento, o ingresso e a permanência na carreira bancária indicam certamente fatores de estabilidade, possibilidade de ascensão e mobilidade social que não podem ser desprezados.

Pochman (2014) discute esse ponto nos seguintes termos: a noção de classe média não é unívoca, e sim heterogênea. No contexto do capitalismo contemporâneo, não há um processo de medianização da sociedade, mas antes um declínio da classe média assalariada e isso depõe contra o senso comum da sociologia e aponta para o crescimento e fortalecimento da classe trabalhadora brasileira.

2.1. As greves bancárias e seus efeitos

A luta dos bancários em defesa dos salários e das condições de trabalho sempre dependeu da ação sindical e das greves, ações típicas dos trabalhadores industriais. Mas há outros traços de comportamento presentes no ambiente financeiro e na categoria bancária que deixam muitas dúvidas à pergunta inicial: classe média ou classe trabalhadora?

Na pesquisa de Nogueira (2015) foram analisadas quatro Convenções Coletivas de Trabalho (CCT) que são definidas no plano nacional. Geralmente, a pauta negociada nas CCT, está dividida nas seguintes cláusulas: salários; adicionais salariais; gratificações; auxílios; abono de faltas ao serviço; proteção ao emprego; benefícios; condições de trabalho; liberdade sindical; saúde no trabalho; diversidade; cessação do contrato individual do trabalho; aplicação e revisão contratual; disposições transitórias. Como se percebe nos títulos das cláusulas, as convenções coletivas definem em nível nacional temas econômicos, sociais, de saúde, proteção ao trabalho, condições de trabalho, diversidade e contrato de trabalho.

Os aspectos selecionados no quadro a seguir sobre as quatro últimas CCT dizem respeito às greves e às cláusulas econômicas e Participação nos Lucros e Resultados (PLR), que geralmente são as fontes geradoras do conflito trabalhista e grevista. Juntamente com as reivindicações econômicas, as demais questões ligadas aos aspectos sociais, saúde e assédio moral são extremamente importantes porque permitem um entendimento do ambiente do trabalho que acaba de alguma maneira interferindo no ânimo da mobilização.

De acordo com o Quadro 1, as quatro últimas convenções coletivas assinadas entre bancos e sindicatos foram precedidas de movimentos grevistas razoavelmente fortes. Em 2011 foram 21 dias de greve para 1,5% de aumento real; em 2012, nove dias de greve para 2% de aumento real; em 2013, 23 dias de greve (a mais longa no período) para conquistar 1,82% de aumento real e em 2014, sete dias de greve para manter as conquistas de aumento salarial, neste caso 2,02%, acima da inflação - fato que no setor privado não é muito comum, porque geralmente as greves são localizadas nas empresas, mais curtas e a participação de trabalhadores é mais restrita, o que implica menores jornadas não trabalhadas, e conflitos mais breves e restritos comparativamente ao setor público.

Quadro 1 Greves e cláusulas econômicas das Convenções Coletivas de Trabalho dos bancários 2011-2015, Brasil 

Fonte: Elaborado pelo autor com base nas CCT e PLR Nacional, 2015.

Para a análise destas greves é preciso considerar as relações com a conjuntura econômica e política do período. Enquanto um índice de desemprego baixo, a estabilidade econômica, a inflação controlada e a manutenção da estrutura sindical favorecem o movimento sindical e a sua recuperação, a ausência de crescimento econômico e os próprios reajustes salariais acima da inflação e sem um correspondente aumento da produtividade passam a ser combatidos pelos segmentos conservadores e empresariais, como alimentadores da própria inflação administrada pela meta do governo.

No caso dos bancários, as greves atingem o conjunto da categoria, beneficiando toda a categoria. Em todos os anos do governo de Dilma Rousseff, os bancários fizeram greves nacionais para que os bancos, inclusive os públicos, atendessem parte das reivindicações, diferenciando-se bastante das características das greves do setor privado, que continuam sendo greves mais curtas e localizadas nas empresas. Esta característica mostra uma certa independência do movimento sindical bancário em relação ao PT no governo federal. Só para ilustrar, em meio ao processo eleitoral delicado de 2014, os bancários fizeram uma greve nacional enquanto a maioria dos sindicatos bancários apoiava a continuidade do governo petista. Depois de uma semana de greve, conquistaram parte das suas reivindicações com ganho real de 2,02% no reajuste dos salários.

A questão teórica de fundo sobre o caráter das greves bancárias, que são mais longas, com maiores adesões e horas de jornadas não trabalhadas mais próximas do caráter das greves do setor público está relacionada com o setor de serviços. A paralisação do trabalho prejudica os negócios bancários, apesar de não atingir diretamente o processo de acumulação. É uma luta contra a exploração do trabalho. Por isto a relutância dos bancos na negociação e o forte investimento nas novas tecnologias bancárias, nos esquemas terceirizados de processamento e de correspondentes bancários. Na verdade, a grande maioria dos clientes que dependem das agências não são os mais importantes em termos da intermediação financeira e das estratégias segmentadas dos produtos e serviços bancários operadas através dos meios de telecomunicação: telefone celular, call centers, internet, atendimento on-line, entre outros. O processo de trabalho bancário, apesar de ser tipicamente capitalista, baseado na exploração e na produção de valor excedente além do necessário, afeta indiretamente o processo produtivo de valorização capitalista. Esta condição ajuda a explicar a sua diferença no setor privado em termos da longevidade das greves, das negociações mais difíceis e demoradas, do maior número de grevistas e de dias parados e de jornadas não trabalhadas. Em conclusão, a dinâmica das greves do setor bancário expressa as contradições e os conflitos entre capital e trabalho e aciona, de outro lado, as forças de controle e de inovação tecnológica (cf. Sanches, 2018). O sindicalismo bancário é reformista, reivindicatório e necessário e tem forte poder de mobilização e competência na negociação.

A conjuntura política marcada pela estabilidade democrática, com a continuidade do governo do PT, favoreceu o movimento sindical corporativo que procurava garantir conquistas econômicas acima da inflação e outras demandas sociais, como no exemplo dos bancários. No entanto, as reivindicações gerais do movimento sindical, como a redução da jornada de trabalho, fim do fator previdenciário e correções do imposto de renda que poderiam beneficiar toda a classe trabalhadora não foram atendidas.

O primeiro governo Dilma (2011-2014) foi favorecido pela situação econômica e melhoria dos indicadores sociais. Em contraste, sua reeleição deu-se em contexto de crise econômica e pressão dos interesses das elites dominantes. O resultado foi o golpe parlamentar e as primeiras medidas do governo de Michel Temer abriram caminho às propostas do setor empresarial de reforma trabalhista promulgada em novembro de 2017, seguida da lei de terceirização ampla do trabalho atingindo inclusive as atividades-fins. Em seguida, em 2019, no primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro, foi aprovada uma reforma da previdência contrária aos interesses dos trabalhadores em geral. O resto da história já é conhecido: o maior retrocesso da democracia no Brasil.

3. Para uma análise das classes médias no Brasil

Um dos estudos mais importantes que faz conexão entre as proposições de Wright e a estrutura de classes no Brasil foi realizado por Santos (2002). Segundo Santos, a importância de Wright deu-se em contraponto às insuficiências do pensamento marxista contemporâneo em interpretar a emergência de posições de classe média na estrutura de classes. A introdução do conceito de “localizações contraditórias de classe” aparentemente encaminhava solução para identificar as posições das classes intermediárias entre a burguesia, a pequena burguesia e o proletariado, além das noções existentes nas interpretações marxistas: a classe média dentro da noção de classe trabalhadora; a classe média como nova pequena burguesia e a classe média profissional e gerencial fora da classe trabalhadora (ibidem: 37).

A noção de “localizações contraditórias dentro das relações de classe” de Wright incluía os gerentes e supervisores entre capitalistas e trabalhadores; os pequenos empregadores entre a pequena burguesia e a classe capitalista e os empregados semiautônomos ou que trabalham para si próprio entre a pequena burguesia e a classe trabalhadora. No desenvolvimento do conceito e influenciado pelo marxismo analítico de John Roemer, Wright alterou as noções de controle e exploração no interior das relações sociais de produção, enfatizando as relações de exploração determinada pelas desigualdades na distribuição de ativos produtivos em vez da dominação no seu mapa de classes (cf. ibidem: 38-40).

O conceito de classe no paradigma marxista indica que as classes são definidas pelas relações sociais de produção que geram antagonismos, interesses opostos e relações de exploração. Wright introduz a noção de controle sobre ativos produtivos e entende que as classes são definidas em termos de um mapa estrutural de interesses materiais comuns baseados na exploração. Desenvolve a noção de classe através da conexão ativo-exploração. A exploração não é apenas a apropriação ou transferência de excedente de uma classe para outra; o explorador tem interesse na atividade produtiva e no esforço do explorado. Há uma interdependência que ajuda a explicar a distribuição do bem-estar econômico e do poder econômico.

As classes médias seriam caracterizadas pelos mesmos critérios que definem as classes fundamentais, ou seja, o não controle e a não propriedade dos meios de produção. No entanto, as múltiplas explorações intraclasses operacionalizam a noção de localizações contraditórias de classe. O controle dos ativos organizacionais estabelece uma relação próxima com a hierarquia e autoridade; os gerentes e supervisores são exploradores dos demais e garantem rendas diferenciadas de lealdade. Além disso, há a propriedade de qualificação escassa que forma outra conexão ativo-exploração. Qualificação e perícia certificadas diferenciam a força de trabalho no mercado e nos processos de trabalho. Imagine-se aqui o relacionamento entre médicos e enfermeiras, professores e funcionários, servidores gerentes e funcionários, gerentes e empregados bancários, e engenheiros e aprendizes.

É por este caminho que Wright elabora sua tipologia de classe na sociedade capitalista em função da apropriação diferenciada de ativos em controle dos meios de produção, ativos de qualificação e relação com a autoridade. São classificados 12 tipos de categorias, sendo três no campo da burguesia dona dos meios de produção (grandes e pequenos empregadores e pequena burguesia que trabalha para si própria) e nove no campo dos assalariados não-proprietários dos meios de produção em uma escala que vai de gerentes qualificados a trabalhadores qualificados e não qualificados.

Interessa aqui registrar que Wright fala de uma classe trabalhadora ampliada que abarca os trabalhadores qualificados, os não qualificados e os supervisores não qualificados e distantes do exercício de autoridade. Há muitas críticas em relação ao esquema de Wright, por exemplo, a de Savage et al. (apudSantos, 2002: 64): “A análise de classe deve lidar prioritariamente com a questão da formação de classe e não tanto com esquemas classificatórios”.

Segundo Santos (2002), as contribuições de Wright foram muito relevantes nos seguintes pontos: a fecundidade do conceito de localizações contraditórias de classe, que delimitam as posições diferenciadas no interior da classe média ligada aos processos de exploração e dominação que remetem a um vínculo de lealdade com a classe capitalista, em contraposição aos interesses da classe trabalhadora; localização de planos micro dentro da estrutura de classes macro que muitas vezes são desconsiderados; o esquema teórico revela-se capaz de expressar e orientar a abordagem do papel de posições intermediárias de classe na complexa estrutura social do capitalismo contemporâneo; e desenvolve uma noção de classe trabalhadora analiticamente mais sensível ao amplo reordenamento do universo da produção e do trabalho na atualidade, preservando traços saudáveis do desenvolvimento do marxismo (ibidem: 67-68).

Elísio Estanque (2012) tem procurado entender o comportamento da classe média entre a sua ascensão e seu declínio, dialogando com os clássicos da sociologia e passando pelo debate no campo do marxismo sobre a nova pequena burguesia ou aburguesamento da classe operária. É interessante aferir seu resgate de Wright sobre o tema:

Vale a pena incluir o contributo de Wright, que apesar de partilhar muitas destas preocupações e conceitos (comuns ao campo marxista), elaborou um modelo analítico que trata as diversas categorias da classe média como movidas não por uma adesão plena ao sistema dominante, mas por contradições de poder, formas de controlo e de qualificação que tentam monopolizar. Wright tinha teorizado inicialmente sobre estas camadas intermédias, classificando-as como lugares contraditórios nas relações de classe, evoluindo daí para um modelo que recupera (de Marx) o conceito de exploração e conjuga-o com o papel do mercado concorrencial (de Weber). (Estanque, 2012: 25)

As classes médias têm no seu interior contradições sociais que as levam a exercer um papel de exploração no campo social e organizacional quando se considera a aproximação com o poder, a renda mais alta e os benefícios da qualificação que as separam da grande maioria dos trabalhadores de serviços. A distribuição desigual dos bens materiais e econômicos se traduz em barreiras de classe muito poderosas contendo uma complexidade de fatores multidimensionais onde se conjugam elementos objetivos e subjetivos, materiais e simbólicos, trazendo uma divisão social de interesses e identidades.

Não há como negar essa questão. Mas nada impediria que houvesse interesses comuns e de classes na diversidade em torno de questões cruciais dos assalariados em geral, como por exemplo: as lutas contra as reformas da previdência, por melhores condições de saúde, educação e transporte; as lutas em defesa do salário mínimo, da redução da jornada de trabalho e de uma renda básica, entre outras lutas sociais.

Estanque (2012: 90) em seu estudo verifica que a conotação negativa da classe média como obstáculo das transformações sociais ou amortecedor dos conflitos, influenciada pela vertente marxista, teria que ser repensada. Há comportamentos ativos progressistas no campo cultural e na esfera pública que podem influenciar transformações interessantes da sociedade. De qualquer modo, fica claro que a classe trabalhadora separada da classe média reduz fortemente seu potencial transformador. E a classe média é incapaz de ampliar propostas transformadoras caso a classe trabalhadora não se sensibilize com sua luta.

Em estudo posterior sobre as classes médias e as lutas sociais em Portugal e no Brasil, Estanque (2015) retorna ao tema e verifica as potencialidades e os limites das lutas sociais que envolveram as classes médias. Os casos de Portugal e Brasil revelam o empobrecimento da classe média e a precarização do mundo do trabalho, bases do descontentamento social. Instigado pelas rebeliões e movimentos sociais que ocorreram em Portugal e no Brasil (as chamadas rebeliões de junho de 2013), desmistifica a noção sempre negativa da esquerda em relação à classe média na estrutura de classes. Dois pequenos trechos para ilustrar: “No sul da Europa e no Brasil, a última década passou por uma profunda recomposição da estrutura de classes em que a classe média exerceu (e exerce) um papel central” (Estanque, 2015: 201). Mais à frente no Adendo:

Aí o sentimento nacionalista e o discurso populista podem potenciar novas dinâmicas e consequências imprevisíveis. Mas, de modo geral, o que pode dizer-se em relação às grandes rebeliões do Brasil do século xxi é que se torna patente um “efeito de classe média” que embora não enunciado, preside as grandes narrativas que alimentam a luta de classes na democracia brasileira atual. (ibidem: 203)

Nessa questão, as contribuições de Souza (2017) podem ajudar na análise das classes médias. Segundo o autor, a classe intermediária - entre a elite do dinheiro de quem é uma espécie de capataz moderno, e as classes populares a quem explora -, tem que se autolegitimar tanto para cima como para baixo. Sua tese: é que ela se justifica para cima com o moralismo e para baixo com o populismo. Para cima, prioriza a meritocracia e a superioridade moral, e para baixo, aos pobres, à ralé e aos novos escravos, nutre um ódio e desprezo sem medidas.

Nesta linha, Souza identifica com base em larga pesquisa sobre dados e comportamentos sociais, quatro grandes nichos ou frações da classe média: a fração protofascista (30%), a fração liberal (35%), a fração expressivista chamada de classe média de Oslo (20%) e a menor fração de todas, a fração crítica (15%). As frações dominantes (protofascista e liberal) compõem os quadros técnicos, as gerências e os meios de comunicação que servem diretamente às necessidades do capital. Os seus medos são perder a renda e os privilégios de classe média, por isso nutrem ódio à expansão da cidadania dos mais pobres. Os protofascistas tendem a agir com maior violência na defesa da ordem e acabam nutrindo ódio às classes populares. Para as demais frações, alguns exemplos são caricaturais, como a da classe média de Oslo: os eleitores de Marina Silva e os âncoras e profissionais da Rede Globo parecem viver na Escandinávia, onde o novo capitalismo financeiro inclui os direitos das minorias e preservação da natureza. Não que essas bandeiras não sejam fundamentais, mas a luta contra a miséria seria a primeira e a mais importante, segundo o autor. Apenas a fração crítica poderia exercer esse papel e alinhar de fato suas forças à classe trabalhadora proletarizada. E por isso, essa fração sofre todas as injustiças das classes dominantes e das demais frações de classe média.

Trazendo a palavra da fração crítica, Pochman (2012, 2014) desmistifica a noção da emergência de uma nova classe média no Brasil. A nova classe média é trazida com uma grande interrogação: existe uma nova classe média nos termos induzidos pelo mercado e pela ideologia neoliberal? A resposta do autor é negativa e através de dados objetivos mostra que a categoria de nova classe média é inadequada para classificar os assalariados que passaram a ocupar uma posição social na base da pirâmide. Assim, a noção de nova classe média é uma escolha política e ideológica, no sentido de segmentar cada vez mais a nova classe trabalhadora.

O próprio autor, com muita propriedade de quem acompanha os dados e as estatísticas do mundo do trabalho, indica os desvios de atenção por parte das ciências sociais, particularmente no que tange aos temas das classes, da estratificação e da mobilidade social. O superdimensionamento fictício de uma grande e nova classe média, descontextualizada de qualificação analítica e de base empírica consistente, promove uma interpretação completamente enviesada do capitalismo contemporâneo fundado na acumulação flexível. O mito da nova classe média reforça a ideologia neoliberal do mercado, da meritocracia, da redução do Estado e do empreendedorismo, deslocando por completo a perspectiva de classe trabalhadora. Na visão de Pochman, a base empírica do mundo do trabalho aponta para uma necessidade de reconstituir a noção de classe trabalhadora que inclui grande parte da classe média. Isto implicaria em estabelecer uma agenda própria da classe trabalhadora.

Antunes (2013), em suas contribuições para a sociologia crítica do trabalho, vinha há algum tempo apontando para as metamorfoses do mundo do trabalho que tornava a classe trabalhadora mais fragmentada, heterogênea e complexa. Qualquer agenda transformadora deveria levar em conta essa nova condição. Como unir e refazer as lutas sociais do trabalho na condição do capitalismo flexível, informacional e digital?

Em trabalho recém-publicado, Antunes (2020: 15-16) lança o seguinte desafio:

Assim, se essa tendência destrutiva em relação ao trabalho não for fortemente confrontada, recusada e obstada, sob todas as formas possíveis, teremos além da ampliação exponencial da informalidade no mundo digital, a expansão dos trabalhos “autônomos”, dos “empreendedorismos”, etc., configurando-se cada vez mais como uma forma oculta de assalariamento do trabalho, a qual introduz o véu ideológico para obliterar um mundo incapaz de oferecer vida digna para a humanidade.

Desta forma, os sindicatos juntos com os demais movimentos sociais teriam que ser reinventados e passar a representar os trabalhadores formais e informais como um sindicalismo de classe e de oposição ideológica, para além das categorias corporativas (cf. Nogueira, 2019).

Como Wright participa desse debate? O autor fala em como ser anticapitalista no século xxi e em utopias reais com base na busca de uma alternativa democrática que pode acontecer em novos espaços microssociais e globais.

Minha colaboração com Archon Fung ao escrever o ensaio de ancoragem do volume 4 do Projeto Utopias Reais, Aprofundando a Democracia, foi de fundamental importância para me ajudar a entender por que a democracia é o principal problema para transcender o capitalismo. Meu trabalho anterior enfatizou a centralidade da exploração ao capitalismo, e, claro, a exploração é fundamental para a forma como o capitalismo funciona. Mas o eixo central da transcendência do capitalismo é a democracia. Meu ex-aluno, Vivek Chibber, tem repetidamente me lembrado que a luta de classes e a política de classe deve estar no cerne do esforço para transformar e transcender o capitalismo, embora ele (eu penso) agora relutantemente concorda comigo que as lógicas de rupturas da luta de classes não são muito plausíveis no mundo de hoje. (Wright, 2010: vi; tradução do autor)

Assim, Wright afasta a ideia da ruptura da luta de classes declarando que, apesar da continuidade da exploração do trabalho, ela por si não teria o potencial de unir as classes que vivem do trabalho para transformar o capitalismo. As classes médias e os seus sindicalismos, que ocupam posições contraditórias no mundo do trabalho, reforçam essa dificuldade. Em sua utopia realista, Wright indica que a luta pela democracia é o caminho possível da transcendência do capitalismo. Concluindo, não se trata de negar a ruptura, o confronto e a luta de classes, mas antes articular a luta democrática com os movimentos do mundo do trabalho em busca de transformações mais profundas para além do capitalismo.

À guisa de uma conclusão

Os movimentos sindicais de classe média - servidores públicos e bancários - poderiam avançar como agentes coletivos (sindicais) e exercer um papel anticapitalista nos termos de Wright ou mesmo de transformação social? Quais as conexões destes segmentos com a classe trabalhadora? Há identidades, interesses, ideologias e valores em comum?

A emancipação do trabalho não pode prescindir das formas de lutas coletivas e sociais em torno da defesa do emprego, do trabalho e das condições de trabalho. O desafio é verificar como essas lutas podem ser ampliadas e conectadas respeitando as diversas formas de ser da classe trabalhadora. Servidores públicos e bancários poderiam superar suas localizações contraditórias de classe e buscar uma agenda social, econômica e política conjunta com os assalariados da indústria, desempregados, terceirizados, trabalhadores parciais e informais, empregados de serviços, empregados e voluntários do terceiro setor e trabalhadores domésticos. Resgatar o sentido de classe, de união e de luta contra o sistema do capital a partir de articulação horizontal do conjunto diverso, heterogêneo e complexo dos que vivem do trabalho. As organizações sindicais, os movimentos sociais e outras formas políticas de organização dos trabalhadores deveriam assumir a função de agentes mobilizadores de um projeto de classe forjado de dentro do mundo do trabalho. Utopia irreal?

Quando se observa que as subjetividades e objetividades do mundo do trabalho estão em completo desencontro, em particular no Brasil, prevalece a guerra pelo emprego e pela melhor ocupação, instalando a competitividade no mundo do trabalho principalmente nas conjunturas de crise econômica. E nas conjunturas mais favoráveis, a conquista do emprego e da renda é orientada pela lógica extrínseca do consumo, do lazer e da felicidade fora do trabalho. Nessa lógica, em contexto de crise ou prosperidade, as desigualdades só aumentam.

As transformações contemporâneas do trabalho complicaram mais ainda a estrutura de classes. O tema é abordado por Wright, na seguinte passagem:

A estrutura de classes tornou-se cada vez mais complexa, com muitas pessoas ocupando locais contraditórios dentro das relações de classe: estes são locais que compartilham características relacionais de mais de uma classe. Os gestores são o exemplo mais óbvio, mas o facto de um número significativo de assalariados ter pensões privadas compostas por fundos mútuos é também uma forma de localização contraditória. Novas formas de relações de trabalho, sintetizadas pela proliferação de relações de subcontratação para pessoas formalmente independentes na economia gig (por exemplo, motoristas da Uber) complicam ainda mais a estrutura de classe. Acima de tudo, talvez, os padrões materiais de vida da maioria das pessoas em sociedades capitalistas desenvolvidas (e muitos em regiões mais pobres do mundo) continuaram a subir, mesmo durante as últimas décadas de relativa estagnação econômica. (Wright, 2019b: 797; tradução do autor)

Em complemento, verifica-se que o achatamento das classes médias, a explosão do empreendedorismo, a expansão do trabalho autônomo e por conta própria, a chamada uberização e digitalização do trabalho com base em plataformas, a Internet das coisas e inteligência artificial, e também o crescimento do trabalho informal e da subutilização da força de trabalho colocam a discussão das classes em outro patamar muito mais complexo. Junto com estas transformações, a polarização e os contrastes entre riqueza e miséria aprofundam-se e trazem à cena novos movimentos sociais em torno da desigualdade social, racial, global e local. No caso do Brasil, apesar da maré conservadora, emergem novas lideranças de esquerda e democráticas oriundas da classe média e das classes populares representando novos movimentos sociais e políticos. São exemplos disso o Movimento dos Trabalhadores sem Teto - MTST, a Central Única das Favelas - CUF, as mobilizações dos entregadores e motoristas de aplicativos e o surpreendente desempenho de Guilherme Boulos, candidato do PSOL, que conseguiu o segundo lugar nas eleições de São Paulo em 2020, tendo obtido mais de dois milhões de votos.

Esse conjunto de iniciativas corrobora a utopia real e a agenda proposta por Wright no encaminhamento dos binômios igualdade/justiça, liberdade/democracia e comunidade/solidariedade. A união de segmentos sociais baseada nesses valores fortaleceria uma agenda democrática e transformadora do capitalismo.

Porém, no fechamento dessa reflexão, em pleno agravamento da pandemia no Brasil, o cenário está mais nebuloso com a crise econômica, a explosão das desigualdades em todas as esferas sociais, as novas formas de exploração do trabalho e a crise da própria democracia. A fragmentação, a heterogeneidade e a complexidade do mundo do trabalho estão falando mais alto que os interesses coletivos de classe na luta social e democrática.

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Recebido: 16 de Novembro de 2020; Aceito: 03 de Fevereiro de 2021

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