SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número124A ausência de género no status, papel e obras de arte das mulheres artistas de kibutz.Recensão: Lauter, Paul (2020), Our Sixties: An Activist’s History índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Revista Crítica de Ciências Sociais

versão On-line ISSN 2182-7435

Revista Crítica de Ciências Sociais  no.124 Coimbra abr. 2021  Epub 30-Abr-2021

https://doi.org/10.4000/rccs.11748 

Recensões

Recensão: Teles, Filipe (2021), Descentralização e poder local em Portugal

1Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra, Coimbra, Portugal, danifran@fe.uc.pt

Teles, Filipe. (, 2021. ),, Descentralização e poder local em Portugal. ., Lisboa: :, Fundação Francisco Manuel dos Santos, ,, 106 ppp. .


O tratamento das temáticas político-institucionais deverá, na medida do possível, passar por algum foco comparativo, sob pena de a riqueza contextual dos trabalhos enfermar do reducionismo paroquialista ou do afunilamento explicativo. As influências estruturais que tocam hoje na vida organizacional de cada nação, comunidade ou território merecerão, pois, ser esboçadas, em nada isto obstaculizando ao conhecimento profundo do terreno empírico em causa.

Seguidamente, sabe-se como os objetos e noções dos estudos socioinstitucionais têm uma maior ou menor carga simbólico-ideológica. Trata-se do seu substrato normativo, ou político, suscetível de reações automáticas, pela associação a projetos de sociedade valorativamente distintos. Falar de democracia, participação, coesão social e identidades presta-se a esses automatismos, por regra alheios aos modos de existência real das matérias tratadas, na sua variabilidade concreta. Em sentido inverso, o evitamento destes obstáculos passa muitas vezes por trabalhos de pendor descritivo, de um comparativismo suave e generalizante, cuja repugnância pelo contributo filosófico, ético ou político exprimirá tão só uma consciência analítica indiferente ao curso das matérias, ou problemas, a cujo destino deveriam ajudar.

A obra de Filipe Teles, Descentralização e poder local em Portugal, editada pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, aborda uma das noções que mais boas vontades - doutrinárias e científicas - tem concitado, em particular na Europa e no continente americano. Essa noção é a da descentralização. O autor, com sólida especialização na área - pró-reitor da Universidade de Aveiro para o desenvolvimento regional e a política de cidades, faz parte do Governing Board da European Urban Research Association e do Steering Comittee do European Consortium for Political Research Standing Group on Local Government and Politics, coordena a secção de Governação e Política Local da Associação Portuguesa de Ciência Política e tem publicado trabalhos a nível nacional e internacional sobre governação local, metropolitana e regional, nos cenários europeu e português -, evita, porém, os escolhos acima sinalizados. Não renegando a confiança nas virtudes democráticas e técnicas da descentralização, trata-a em modo comparativo, na sua vertente eminentemente portuguesa e sem iludir as aporias (défices, patologias) que ela também evidencia. Falamos aqui da rede, por vezes indescortinável e labiríntica, de níveis, jurisdições, instituições e organismos a que a descentralização pode conduzir, com a correlativa falta de transparência e o difícil mapeamento de atribuições e responsabilidades; das inadequações de escala, que retiram eficácia e produtividade aos vários serviços e perímetros de intervenção; da falta de articulação ou cooperação multiníveis; da redundância de dispositivos e equipamentos; das lógicas de patrocinato, amiguismo e corrupção. Finalmente, na parte final do seu livro, Teles propõe um assumido aconselhamento sobre a evolução desejável das práticas de descentralização, a partir dos desafios em curso em diversos tipos de territórios, que podiam servir de compêndio ilustrativo aos decisores institucionais, mormente em Portugal.

Estamos, desta maneira, perante um estudioso que não negará a interdependência crescente dos sistemas políticos, em particular na Europa comunitária. Esta implica mútua aprendizagem, ritmada por enquadramentos legais e normativos comuns, que tornam os países europeus suscetíveis de inteligibilidade à luz de categorias e conceitos partilhados. Isso sem menosprezar a diferenciação de cada um destes países em termos de tradições constitucionais e histórias políticas, quadros institucionais e aparelhos administrativos, dimensões territoriais e níveis de desenvolvimento, responsáveis, no que à descentralização respeita, por diferentes assunções e concretizações das suas virtudes e defeitos.

No seu trabalho, Teles procede a uma pedagogia terminológica e concetual, distinguindo significados e tipos de descentralização (política e administrativa), demarcando-os de procedimentos como a desconcentração e diferenciando-os das modalidades, mais ou menos centralizantes, de territorialização das políticas públicas. Para o caso português, não deixa de lembrar o paradoxo de ter municípios responsáveis por quase metade do investimento público direto, a par de uma reduzida capacidade em termos de despesa pública. Este é um sintoma da persistente e complexa centralização, bem entendido, do “problema sério de capacidade institucional, organizacional e de governação” ao nível dos municípios, que apenas vão buscar a sua dinâmica à implementação dos fundos comunitários, sem os quais seriam “insignificantes” (pp. 18-19). Isto remete para a velha discrepância entre os quadros formais (constitucionais e legais) do poder municipal em Portugal e as reais condições de exercício desse poder. E coloca os municípios portugueses a um nível muito mais baixo de capacidade institucional (autonomia decisória e financeira, liberdade de organização e captação de receitas, proteção face às interferências governamentais) nas comparações com homólogos europeus, enquanto permanecem reféns de lógicas pessoalistas, presidencialistas e clientelares de atuação. Globalmente sobressai neles a inércia organizacional, os problemas de representação e responsabilização de decisores, o fraco envolvimento de cidadãos, o isolacionismo paroquial, nesse panorama frágil e contraditório que é o da sua democraticidade e, genericamente, da inserção europeia dos territórios periféricos portugueses.1

Neste âmbito, embora a política de coesão europeia imponha um modelo de governação multiníveis, que desafia as tradições centralistas e obriga a modernizar serviços e competências, tanto dos poderes locais como das entidades regionais do Estado (Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional), nada anula o efeito pernicioso da instabilidade e volatilidade das políticas locais - “um subproduto de incentivos nacionais”, de estratégias gerais e condicionantes normativas (p. 78) -, da falta de clareza e energia da cooperação intermunicipal (marginal nos esforços organizacionais e financeiros dos municípios), do facto de as estruturas intermunicipais adotarem “investimentos elegíveis para os fundos estruturais como prioridade, em detrimento das necessidades específicas identificadas nos territórios. Investe-se e projeta-se para onde há orçamento” (p. 83).

Em contraste, o autor assinala que na Europa a tendência é para a descentralização e regionalização efetivas das políticas públicas, a cooperação intermunicipal e a criação e capacitação de entidades metropolitanas. Paralelamente às reformas que buscam melhores soluções de escala, reduzindo-se o número de municípios ou procedendo à sua fusão (em sentido inverso, em Portugal só as freguesias foram alvo de reestruturação e redução), ficamos a saber que as melhores soluções passam pelo investimento na articulação multiníveis, na versatilidade e adaptabilidade das dimensões e responsabilidades da governação descentralizada, com sistemas de descentralização assimétrica (não são um “bicho-papão”, diz Teles), onde as competências entre entidades homólogas variam consoante a natureza dos territórios e os problemas neles dominantes.

A esta luz, o autor propõe que a incerteza política, o desequilíbrio nas estruturas de decisão, a falta de clarificação de competências, a pouca confiança nas instituições, a volatilidade na articulação entre agentes, a deficiente capacitação institucional e técnica, e os obstáculos reiterados à capacidade de governação das entidades subnacionais em Portugal possam ser reduzidos com a montagem de sistemas integrados de decisão e intervenção da administração pública. Assim, poder-se-ia ultrapassar a complexificação e politização excessivas das formas de atuar no território, que apenas têm reforçado as derivas de uma “incomparável centralização”. A desconfiança entre centro e periferia, a difícil relação entre instâncias e circuitos decisórios - locais e regionais, dos municípios e das entidades regionais do Estado, das comunidades intermunicipais e das áreas metropolitanas, enfim, das entidades políticas e administrativas - apenas bloqueia o advento de uma descentralização capaz de produzir políticas públicas que reflitam, realmente, as caraterísticas e preferências de cada território.

O livro de Teles oferece-se como uma breve síntese do estado da arte dos estudos e práticas da descentralização, na Europa e em Portugal. Num trabalho abreviado como se propõe, não poderia haver lugar ao aprofundamento temático. No entanto, o essencial das problemáticas tratadas nas obras de referência sobre o tema, em Portugal e sobretudo na Europa, está nele refletido. Com a vantagem de o olhar sobre a realidade portuguesa ser simultaneamente lúcido e empenhado, informado e crítico, pedagógico e construtivo.

Referências

Teles, Filipe (2021), Descentralização e poder local em Portugal. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos. [ Links ]

1 Cf. Ruivo, Fernando; Francisco, Daniel (2005), “Entre centre et périphéries: pour une esquisse des pouvoirs locaux au Portugal”, Pôle Sud, 22, 115‑125; Francisco, Daniel (2007), “When Adaptation Eludes Transformation: The Losing Game of the Portuguese Territories within the Context of Europe”, Lusotopie, XIV(2), 11‑33; Francisco, Daniel (2009), “Territories Named Desire: From the Breadth of Concepts to the Containment of Experience”, RCCS Annual Review, 1, 3‑35. Tradução de Monica Varese. DOI: https://doi.org/10.4000/rccsar.138

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons