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Revista Crítica de Ciências Sociais

versão On-line ISSN 2182-7435

Revista Crítica de Ciências Sociais  no.124 Coimbra abr. 2021  Epub 30-Abr-2021

https://doi.org/10.4000/rccs.11790 

Recensões

Recensão: Ferreira, Fátima Moura; Fernandes, Eduardo (eds.) (2019), Representações de poder do Estado em Portugal e no Império (1950-1975)

1 Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX, Universidade de Coimbra, Coimbra, Portugal., leonardo.a.pires@uc.pt

Ferreira, Fátima Moura; Fernandes, Eduardo. (eds.) (, 2019. ),, Representações de poder do Estado em Portugal e no Império (1950-1975). ., Porto: :, Circo de Ideias, ,, 224 ppp. .


Pode o edificado contribuir para potestade de um regime? A resposta a tal questão encontra-se nos ensaios que compõem a obra Representações de poder do Estado em Portugal e no Império (1950-1975), editada por Fátima Moura Ferreira e Eduardo Fernandes, resultado de um projeto de investigação efetuado pelo Lab2PT da Universidade do Minho, entre 2015 e 2017. Através de uma sólida base documental, e um foco analítico centrado no Norte e Centro de Portugal e em África (Moçambique e Angola), é trabalhada a articulação da arquitetura com o poder político estado-novista. De acordo com os editores, surge a intenção de “dinamizar estudos cruzados entre a arquitetura e a história” (p. 7), tema que tem suscitado interesse académico e de que são prova trabalhos destes1 e de outros autores2 bem como projetos recentes.3 Entre os contributos inéditos salientamos, desde logo, as datas escolhidas, uma vez que se tem dado maior atenção historiográfica à arquitetura oficial elaborada no período inicial do regime.

Sobre o conteúdo, o primeiro artigo - “O Estado Novo através do país: obras públicas e imagética discursiva, entre a perenidade e a hibridez” (pp. 24-46) -, da lavra de Fátima Moura Ferreira, observa como a fotografia foi “ilustração paradigmática dos usos discursivos da imagem, entendida em termos de duplo enunciado entre o (in)visível e o (in)dizível” (p. 26). É feito uso de um conjunto de publicações periódicas e álbuns comemorativos nos quais a cartografia visual colocava as obras públicas como mecanismo propagandístico e amplificador de uma ideia de homogeneização modernizadora do país, ambicionando a divulgação de uma linguagem política centralizadora.

As dinâmicas ligadas ao processo de edificação operacionalizam-se com alguns casos de estudo. Os dois textos de Eduardo Fernandes e Rui Pereira - “A metáfora do Grifo na obra de Januário Godinho: entre modernismo, contextualismo e representação do poder” (pp. 47-80) e “Arquitetura em contracorrente: Raúl Rodrigues Lima e a construção de um modelo para os Palácios da Justiça no Estado Novo” (pp. 81-96) - demonstram como os arquitetos foram protagonistas de um movimento reformista no seio da ditadura. Não deixa de ser relevante ter sido em edifícios onde se exerciam formas muito concretas de poder (tribunais e câmaras municipais) que se procurou abrir espaço de diálogo, ainda que matizado, a outras formas de pensar e fazer arquitetura, abordagem frisada pelos autores. No mesmo sentido aponta o estudo de Vanda Maldonado - “Para uma ideia de liberdade e de democracia: o conjunto de habitação social em Benavente de Vítor Figueiredo” (pp. 149-163) -, apresentando a habitação social como um dos poucos refúgios de liberdade criativa, com implicações nos próprios modos de refletir a organização interna dos fogos. As três pesquisas sobre estes arquitetos individualizam uma atitude coletiva subentendida na mutação da gramática estética em estreita correlação com o contexto político coevo, atestando uma certa pluralidade de olhares.

Transpondo tais fundamentos para as então províncias ultramarinas surgem dois trabalhos. O primeiro é o de Elisário Miranda - “Monumentalidade, internacionalismo e pluralidade: o Banco Nacional Ultramarino em Moçambique” (pp. 97-125) - onde é feito o levantamento dos empreendimentos efetuados por este banco no território moçambicano. O texto demonstra a preponderância de alguns arquitetos, muito influenciados pelo Movimento Moderno Internacional e pelo conceito de Gesamtkunstwerk (obra de arte total), provando o carácter plural em que a expressão material do pensamento arquitetónico se concebeu. Ainda sobre o espaço africano, mas com outro tema, Márcia C. F. Oliveira apresenta “Documentando politicamente a missão civilizadora imperial: o arquivo fotográfico da Companhia Diamang” (pp. 126-148). Através do tratamento arquivístico feito pela autora, é possível assinalar que esta companhia diamantífera documentou exaustivamente a sua atividade, nomeadamente no campo das infraestruturas. Como fundamentação para tal ocorrência, surge a noção da fotografia como veículo de autorrepresentação da Diamang e, tal como a atuação do Banco Nacional Ultramarino, como sustentáculo no esforço de modernização colonial empreendido, retórica muito útil em tempos de contestação interna e externa à presença portuguesa em África.

Da autoria de Natália Pereira, o capítulo “Corporativização do espaço rural: a esfera de ação dos grémios da lavoura no edificado corporativo” (pp. 164-178) analisa este tipo de organismos como plataforma comunicacional entre o poder central e os poderes locais, usando a sede do grémio pluriconcelhio de Abrantes, inaugurada em 1961, como exemplo da interlocução entre a ideia de poder e a sua realização prática. Refira-se que teria sido interessante a inclusão de um artigo que fizesse a análise do edificado legado por outros organismos corporativos - como por exemplo, os organismos de coordenação económica que pontilharam o país com diversos edifícios, desde os armazéns da Junta Nacional das Frutas aos silos da Federação Nacional dos Produtores de Trigo. Impactos na paisagem, perceção das comunidades locais e influência na estruturação do espaço envolvente poderão ser algumas pistas de investigação futura sobre esta questão, sem olvidar a estética que lhes está associada.

As conexões internacionais são alvo da atenção do artigo “Portugal’s Urban Design under the Estado Novo: Foreign Influences Before and After the Second World War” (pp. 179-186), de Christian von Oppen. O autor refere que o design urbano foi uma das manifestações do poder político, com um notório ascendente do regime nazi sobre Portugal, algo que após 1945 se mostrou como um atavismo, permanecendo a resposta oficial arreigada a uma estética conservadora, contrariamente às propostas defendidas no I Congresso Nacional de Arquitectura (1948), no qual os arquitetos apresentariam um ideário mais permeável a influências modernas, existindo, assim, uma clara necessidade de adaptação.

Ainda no campo internacional, encontramos o último capítulo da obra, assinado por Antonio S. Río Vásquez - “Arquitectura y Estado en España, 1950-1975: de la autarquia à la transición” (pp. 187-206) - no qual se analisa arquitetura e história no contexto do franquismo, nomeadamente a forma como num período de crescimento económico se verificou, na arquitetura espanhola, “a recuperação da modernidade de um modo crítico e reflexivo” (p. 187; tradução do autor). A inclusão deste texto no livro parte da intenção dos editores em perceber o “binómio poder e arquitetura no país vizinho” (p. 9).

Além do que já foi escrutinado, algumas considerações adicionais podem ser feitas. O uso da iconografia (plantas, desenhos e fotografias) torna-se um importante auxiliador ao longo das páginas, constituindo um suporte para as reflexões tecidas pelos autores, destacando-se o conjunto de imagens patentes no final da Introdução (pp. 11-24), servindo como guia inicial dos temas versados e tornando-os mais tangíveis para o leitor. Sobre o espaço ultramarino, esta coletânea ganharia em profundidade se existisse estudos sobre Macau, Timor-Leste e a Índia, compreendendo a inserção destes territórios na reprodução da imagética e consolidação da presença política portuguesa. Terá havido investimento significativo de obras públicas nestas províncias? Haveria sensibilidade artística face aos elementos da cultura local? Estas são algumas questões em aberto para futuras abordagens.

Em conclusão, seguindo José Mattoso, “todo o poder tem a sua sede. Toda a sede ostenta os sinais de autoridade que nela reside”.4 Asseverando tal ideia, esta monografia coletiva expõe como o desajuste entre um poder conservador e agentes organizacionais adeptos de mudanças resultou na discrepância entre modernidade e tradição. A representação do Estado apresentava um regime que caminhava para o seu ocaso e cujos progressos estilísticos se fizeram à custa de contributos individuais de arquitetos e instituições privadas, evidenciando “tonalidades plurais” (p. 10).

Referências

Ferreira, Fátima Moura ; Fernandes, Eduardo (eds.) (2019), Representações de poder do Estado em Portugal e no Império (1950-1975). Porto: Circo de Ideias, 224 pp. [ Links ]

1Ferreira, Fátima Moura; Mendes, Francisco Azevedo; Pereira, Natália (coords.) (2016), A conquista social do território: arquitectura e corporativismo no Estado Novo português. Coimbra: Tenacitas.

2Agarez, Ricardo Costa (coord.) (2018), Habitação: cem anos de políticas públicas em Portugal, 1918‑2018. Lisboa: INCM/IHRU; Carvalho, Rita Almeida (2018), “Ideology and Architecture in the Portuguese ‘Estado Novo’: Cultural Innovation within a Para‑Fascist State (1932‑1945)”, Fascism, 7(2), 141‑174.

3Entre outros, refira‑se o projeto “Mapa da habitação: reflexão crítica sobre a arquitectura habitacional apoiada pelo Estado em Portugal (1910‑1974)”, coordenado por Rui Jorge Garcia Ramos e sediado na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto.

4Mattoso, José (1988), A escrita da história: teoria e métodos. Lisboa: Editorial Estampa.

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