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Revista Crítica de Ciências Sociais

versão On-line ISSN 2182-7435

Revista Crítica de Ciências Sociais  no.125 Coimbra set. 2021  Epub 30-Set-2021

https://doi.org/10.4000/rccs.12289 

Dossier

Por um léxico que nos permita ler como nostrum o Mediterrâneo

For a Lexicon that Allows Us to Read the Mediterranean as Nostrum

Pour un lexique qui nous permet de lire comme nostrum la mer Méditerranée

1Doutoranda em Estudos linguísticos, literários e interculturais no âmbito europeu e extra-europeu, Università degli Studi di Milano, Milano, Italia, graziele.frederico@gmail.com


Resumo

A partir da análise da obra Il diritto al viaggio. Abbecedario delle migrazioni (Barbari e De Vana, 2018), este artigo propõe um olhar sobre o fenômeno migratório contemporâneo no Mediterrâneo, contextualizando o pertencimento histórico coletivo (nostrum) associado a esse mar por parte de europeus, africanos e asiáticos, como descrito nos estudos do historiador Fernand Braudel. Partindo da interpretação dos verbetes “Mar”, “Muros”, “Colonialismo”, “Europa” e “Direitos”, este trabalho apresenta instrumentos para uma leitura multifacetada das migrações. Pretende ainda contribuir para a interpretação do Mediterrâneo enquanto espaço de atuação dos direitos humanos e de responsabilidade jurídica e ética, propondo a acepção do vocábulo nostrum enquanto ideia de compartilhamento de responsabilidades e de direitos - inclusive em águas não territoriais - e abandonando a concepção colonialista de conquista e posse do mar.

Palavras-chave: análise literária; direitos humanos; filosofia; Mediterrâneo; migrações

Abstract

This article proposes an analysis of Il diritto al viaggio. Abbecedario delle migrazioni (Barbari and De Vana, 2018), examining the Mediterranean migratory phenomenon and reading it as a collective historical possession (nostrum) belonging to Europeans, Africans and Asians, as described by Fernand Braudel’s studies. In addition, based on the interpretation of the terms “Sea”, “Walls”, “Colonialism”, “Europe” and “Rights”, this work presents instruments for a multifaceted reading of migrations. It also offers an interpretation of the Mediterranean as a space for the expression of human rights, and legal and ethical responsibility, presenting the designation nostrum as an idea of sharing responsibilities and rights - meant to include non-territorial waters as well - one that abandons the colonialist conception of conquest and possession of the sea.

Keywords: human rights; literary analysis; Mediterranean; migrations; philosophy

Résumé

À partir de l’analyse de Il diritto al viaggio. Abbecedario delle migrazioni (Barbari et De Vana, 2018), cet article propose un regard sur le phénomène migratoire contemporain dans la Méditerranée, contextualisant l’appartenance historique collective (nostrum) associée à cette mer par les Européens, les Africains et les Asiatiques, comme décrit dans les études de l’historien Fernand Braudel. En partant de l’interprétation des entrées « Mer », « Mures », « Colonialisme », « Europe » et « Droits », on présente dans ce travail des outils pour une lecture multidimensionnelle des migrations. On vise également à contribuer à l’interprétation de la Méditerranée comme une zone d’action des droits humains et de responsabilité juridique et éthique, en proposant le sens du vocable nostrum en tant qu’idée de partage des responsabilités et des droits - y compris dans les eaux nonterritoriales - et en renonçant à la conception colonialiste de conquête et possession de la mer.

Mots-clés: analyse littéraire; droits humains; Méditerranée; migrations; philosophie

Alguns morreram, outros se perderam, mas nós estávamos ali. Os europeus fazem um jogo maquiavélico com os imigrantes. A impressão que eu tenho é como se tudo fosse um teste para que na Europa entrem apenas os mais fortes. (Dagmawy Yimer inFrederico, 2017: cap. 3, posição 705)

Para reaprender a ler e a escrever as migrações

Em 2018, o advogado Luca Barbari - presidente da associação Porta Aperta, que há três anos realiza o Festival della Migrazione na cidade italiana de Modena - organizou com Francesco de Vanna - pesquisador da área de filosofia do direito - um abecedário propondo uma releitura sobre o fenômeno migratório. A obra Il diritto al viaggio. Abbecedario delle migrazioni (Barbari e De Vanna, 2018) reúne 45 verbetes na tentativa de apresentar uma contextualização discursiva partindo da ideia de que migrar é parte da essência humana. Os vocábulos escolhidos para este volume foram (em tradução para o português): asilo, cidade, colonialismo, confins, corpos, crianças, custos, desradicalização, direitos, discriminação, economia civil, Estado, estrangeiro, Europa, êxodo, famílias, fé, hospitalidade, humanidade, identidade, informação, intercultura, Itália/África, italianos no exterior, máfias, magistério eclesiástico, mar, mulheres, muros, organização não-governamental, palavras, pobreza, pontes, proteção humanitária/refugiados, proximidade/acolhimento, raça/racismo, raízes, segunda geração, trabalho, terceiro setor, tortura, tráfico/escravidão, rotas, viagem, vulnerabilidade.

O objetivo deste artigo é, a partir da análise desta obra, ir ao encontro dos seus autores e propor um olhar sobre o fenômeno migratório no Mediterrâneo, contextualizando o pertencimento histórico coletivo (nostrum) a esse mar por parte de europeus, africanos e asiáticos, como descrito pelos estudos de Fernand Braudel. Além disso, com base na interpretação dos verbetes “Mar”, “Muros”, “Colonialismo”, “Europa” e “Direitos”, este trabalho apresenta instrumentos para uma leitura das migrações enquanto multifacetadas, tendo por base a essência humana na busca da realização de um variado leque de conquistas, mas também como resultado da fuga de territórios miseráveis e/ou perigosos. Por fim, pretende contribuir para a interpretação do Mediterrâneo enquanto espaço de atuação dos direitos humanos e de responsabilidade jurídica e ética como formas de impedir a indiferença diante das mortes e naufrágios, propondo a acepção do vocábulo nostrum enquanto ideia de compartilhamento de responsabilidades e direitos - inclusive em águas não territoriais - e abandonando a concepção colonialista de conquista e posse do mar.

De acordo com a enciclopédia Treccani, “migrar”, verbo intransitivo, do latim migrare, significa deixar o lugar de origem para se estabelecer, ainda que temporariamente, em outro lugar.1 Pode ser utilizado tanto para um sujeito como para massas humanas e grupos étnicos que se deslocam, assim como para animais (os pássaros, por exemplo). É possível pontuarmos então que não há uma migração ou um migrante, mas vários tipos e motivações para que alguém deixe seu lugar de origem e busque, por breve ou longo prazo, um novo território. O que a obra Abbecedario delle migrazioni reivindica é que a migração adquira o status de um direito a ser reconhecido e aplicado pelos Estados, uma vez que a globalização econômica faz com que mercadorias circulem pelas mesmas rotas em que os sujeitos são cada vez mais impedidos de transitar.

A discussão proposta pelos autores é uma defesa da gestão dos fluxos migratórios condizentes com a realidade concreta, porque, como enfatizam em mais de uma análise, a legislação europeia, e especificamente o “Testo Unico” que regula a questão migratória na Itália, prevê uma categoria “invisível” e “indesejável”. Como explica a advogada Maria Elisabetta Vandelli,

o “Testo Unico” que disciplina a imigração e as condições do estrangeiro (e que se aplica somente aos extracomunitários e aos apólidas) criou a figura do indesejável (“o clandestino”), isto é, do imigrante “irregular” que se torna, assim, invisível na sociedade porque é representado como um criminoso em potencial. Declarando o imigrante culpado de um crime, a lei atinge o estrangeiro mais pobre e frágil, aquele que não conseguiu regularizar a sua permanência no território nacional.2 (Vandelli, 2018: 59)

Além disso, outro ponto em comum nos verbetes é a necessidade de acesso seguro às fronteiras europeias, uma vez que as barreiras criadas para a requisição de asilo e proteção humanitária têm favorecido o aumento de mortes, especialmente no mar Mediterrâneo. No prefácio da obra, Barbari (2018) destaca a essência humana de transitar por diferentes partes do mundo em busca de uma complexa variedade de desejos. Alguns partem em busca de uma condição econômica melhor, outros contam com a esperança de uma realidade menos opressiva e/ou violenta. Por fim, muitos são expulsos ou perseguidos em seus territórios.

Segundo dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR),3 em 2020, o número de pessoas forçadas a deixar suas casas devido a perseguições, conflitos e violações de direitos humanos é estimado em mais de 80 milhões. Destes, pelos menos 30 milhões são crianças e adolescentes. Sendo assim,

não é possível pensarmos em cessar as migrações, porque essas são um fator de desenvolvimento para as pessoas que realizam a viagem e para suas famílias, para os países de partida e para aqueles de chegada, mas sobretudo porque as pessoas escapam para salvar a própria vida e aquela dos seus filhos e não pararão nunca diante de uma proibição, por mais peremptória que possa ser, mas somente diante da morte. (Barbari, 2018: X)

Olhando para o Mediterrâneo

Apesar da variedade de aspectos discutidos em torno da questão migratória, o abecedário é construído pensando majoritariamente nas migrações contemporâneas no mar Mediterrâneo. Partindo dos cinco verbetes selecionados, procura-se, então, olhar para esse espaço à semelhança do que Braudel fez em seu trabalho historiográfico, para tratar da complexidade das migrações contemporâneas.

Como podemos ver no verbete “Mar”, escrito por Fabio Macioce, estudioso da filosofia do direito, “o mar se tornou, no imaginário coletivo, o lugar das migrações; as imagens dos barcos com dezenas ou centenas de migrantes, os salvamentos (ou as expulsões) no mar, são há alguns anos elemento central na narrativa midiática sobre o fenômeno” (Macioce, 2018: 167). Segundo este autor, é no mar Mediterrâneo que “a Europa tem exercido de maneira incisiva seu poder de gatekeeping” (ibidem: 170).

Macioce faz três premissas importantes:

  • Em primeiro lugar, apesar da forte presença midiática e do imaginário que atualmente conecta o mar e a migração, os fluxos de pessoas que entram na Europa através do Mediterrâneo são recentes e condicionados às fragilidades políticas no norte da África, aos protestos da Primavera Árabe, às crises no Afeganistão e, especialmente, na Síria. É importante destacar que, em 2019, segundo dados do ACNUR, foi registrado o início da quarta década de deslocamentos forçados constantes vindos do Afeganistão e 2021 é o décimo ano do conflito sírio (Grandi, 2020);

  • Em segundo lugar, as migrações no Mediterrâneo estão especialmente ligadas a pessoas sem visto ou permissão para ingresso em um país europeu e, em grande parte dos casos, trata-se de pessoas em situação de vulnerabilidade ou mesmo de refugiados em busca de asilo e proteção humanitária;

  • Por fim, de acordo com o autor, o Mediterrâneo é apenas mais uma etapa de um longo caminho percorrido e nem mesmo representa o ponto de chegada para a maioria dos migrantes. Grande parte escolhe migrar pensando nos países do centro e do norte da Europa. Macioce (2018: 167) afirma que o perigo atual na travessia do Mediterrâneo se dá mais pelas políticas de controle das fronteiras europeias, uma vez que, “se as políticas de acolhimento e controle fossem bem gerenciadas, o mar não seria mais perigoso do que os desertos, os centros de detenção líbicos, a passagem por países em guerra, ou a permanência nos campos de refugiados da Turquia”.

Na obra Il Mediterraneo: lo spazio, la storia, gli uomini, le tradizioni, Fernand Braudel (2003 [1985]: 7) afirma que o Mediterrâneo “são mil coisas em conjunto. Não uma paisagem, mas inúmeras paisagens. Não um mar, mas uma sucessão de mares. Não uma civilização, mas uma série de civilizações empilhadas umas sobre as outras”. Segundo o historiador, apesar das tecnologias que teriam aproximado as duas margens - ocidental e oriental -, por muitos anos as distâncias foram percorridas com dificuldade e o Mediterrâneo era mais parecido com uma barreira, um limite estendido até ao horizonte “de uma imensidão obsessiva, onipresente, maravilhosa, enigmática” (ibidem: 31). Os voos que encurtaram a viagem de Túnis a Palermo para 30 minutos transformaram, nas palavras de Braudel, o Mediterrâneo em um lago. Os migrantes contemporâneos, que buscam sua travessia sem o visto para ingresso na União Europeia (UE), enfrentam o Mediterrâneo como os homens do passado, com embarcações frágeis e quase como se desejassem transitar entre antigos territórios hostis.

A cumplicidade da geografia e da história criou uma fronteira intermediária de litoral e ilhas que, de norte a sul, divide o mar em dois universos hostis [...]. A leste está o Oriente, a oeste o Ocidente, no sentido completo e clássico de ambos os termos. Como surpreender-se, então, do fato que tal charneira se identifique plenamente com a principal linha onde aconteceram as grandes batalhas do passado? [...] É a linha dos ódios e das guerras implacáveis, das cidades e ilhas fortificadas que vigiam uma a outra do alto de suas muralhas e torres de vigia. (Braudel, 2003 [1985]: 12)

Na análise de Macioce (2018), o binarismo mar/terra pode ser visto no cenário mediterrâneo como um catalisador das diferenças históricas entre Ocidente e Oriente na região. De acordo com sua reflexão, a terra é o local onde se desenvolvem com vigor as práticas políticas; o mar seria o símbolo da economia, um corredor por onde constantemente circulam bens e pessoas, um espaço de relações ao contrário da terra/política que se impõe enquanto criação de delimitações, barreiras, confins.

É possível afirmar com bons argumentos que a dimensão global do trabalho e da economia, hoje, entram em contradição com a rigidez das estruturas jurídicas e políticas estatais, dado que uma é (como o mar) continuamente móvel e relutante a qualquer limitação, e as segundas são fatalmente rígidas e tendencialmente propensas ao bloqueio. (ibidem: 168)

Para o estudioso, a lógica do sistema econômico prevê o benefício do ingresso de uma força de trabalho em países com antigas crises demográficas, o intercâmbio entre pessoas e bens, a mobilidade dos indivíduos e das mercadorias, mas entra em choque com o sistema político “em muitos casos disfuncional, que intervém para criar obstáculos a tal mobilidade, utilizando o sistema jurídico” (Macioce, 2018: 171). Uma tendência estrutural na construção do Estado-nação com base nas relações de pertencimento causa o que Macioce entende como a dicotomia inclusão/exclusão, categorizando quem e quando devem ser incluídos ou simplesmente barrados. As políticas estatais, de acordo com o autor, passaram a tratar a questão da migração cada vez mais numa perspectiva de segurança do território, reduzindo as possibilidades de ingresso e permanência regular e, por isso, “as últimas duas décadas fizeram da exigência de segurança interna um dos pontos centrais de gestão dos fluxos migratórios: de tal modo, os imigrantes (todos, mas em particular os migrantes em condições de irregularidade) são percebidos como uma ameaça à segurança interna e como uma fonte de alarme social” (ibidem: 170).

Nesse cenário, as delimitações fronteiriças e o rígido controle de entrada ganham mais destaque na elaboração das políticas do que os direitos dos migrantes ou questões econômicas e sociais. Muda também a concepção e a localização do próprio confim nacional ou europeu, os limites “tornam-se moduláveis e determinados com base nas exigências políticas [...]. O Mediterrâneo se torna a fronteira externa da União Europeia, deixando que a questão migratória se defina e se esgote no mar ou nas periferias extremas da UE” (ibidem: 171).

Braudel (2003 [1985]: 51) também define o Mediterrâneo enquanto conjunto de “estradas”: “vias marítimas e terrestres interligadas, isto é, de cidades que, das mais modestas às médias e maiores, estão de mãos dadas”. A imagem usada pelo historiador é a de um “sistema de circulação”, um “espaço-movimento”, no qual quanto maior o trânsito, maiores serão os benefícios. Assim como Macioce - ainda que em outro contexto de análise -, Braudel vê nas barreiras à circulação no Mediterrâneo a sua decadência. Mesmo após o duro golpe que representou a viagem de Vasco da Gama em 1498 - com a descoberta de um novo caminho marítimo para chegar às Índias -, de fato, para Braudel o declínio do Mediterrâneo se dá a partir de 1620, com a “invasão” inglesa e holandesa e a obstrução do comércio e territórios mediterrâneos.

Retomando as reflexões de Wendy Brown sobre a construção de muros nas sociedades contemporâneas, Enrica Rigo (2018),4 professora de filosofia do direito, afirma no verbete “Muros” do Abbecedario delle migrazioni que as barreiras construídas e proclamadas, sempre com maior ênfase, pelos Estados nacionais seriam um sinal do declínio da soberania estatal sobre os territórios. Para Rigo, não há contradições entre os muros erguidos contra os migrantes e a economia neoliberal, uma vez que, seguindo as teses de Brown, as finalidades declaradas para a construção de barreiras não são realmente os fatores que importam. Sendo ou não mais ou menos eficazes em diminuir o ingresso de migrantes, ou ainda em combater o tráfico de pessoas e o terrorismo, tal não determinará o fim do desejo e da existência dos muros:

Nenhuma das fortificações justificadas como medida de contenção das migrações transnacionais, como instrumento de dissuasão dos tráficos ilegais ou do terrorismo revelou-se resolutiva no contraste desses fenômenos. Ao contrário, as fronteiras fortificadas produzem organizações sempre mais fortes e estruturadas que possam atravessá-las, assim como muralhas sempre mais altas e guardas treinados para protegê-las. (Rigo, 2018: 177)

A explicação para a resposta política na construção de fortalezas e muros fronteiriços pode ser encontrada, segundo Rigo (ibidem), na concepção de “economias afetivas” de Sara Ahmed:5 a mobilização do coletivo pelo ódio a determinadas alteridades. Mais do que a ênfase nos afetos aos sujeitos da nossa comunidade, há um incentivo ao ódio aos que são reconhecidos como ameaça. Nesse caso, assim como o sistema capitalista não dá preferência para o usufruto da riqueza, mas sim no gesto de acumulá-la, “a capitalização não ocorre substituindo o medo com a sensação de segurança, mas através da acumulação e da circulação das próprias emoções” (Rigo, 2018: 178). Dito isso, os muros ganham uma função mais simbólica do que concreta. Eles representam a materialidade de uma necessidade de proteção contra determinadas alteridades. Tal insegurança diante do outro torna-se elemento de coesão da coletividade. Quando o pacto social soberano que unificou Estados no passado começa a esmorecer, a economia das emoções aponta, com a construção de fortalezas fronteiriças, para uma “ilusão identitária de retorno ao passado idealizado da nação” (ibidem).

A construção da alteridade

Por diversas vezes na obra Il Mediterraneo: lo spazio, la storia, gli uomini, le tradizioni, Fernando Braudel divide o mar em dois mediterrâneos, o “nosso” e o “outro”. O nosso seria a margem ocidental, europeia, com sua cultura e seus costumes. O outro, os países que se erguem nas costas orientais. Apesar do binarismo, o estudioso percebe um fator constitutivo das sociedades em ambas as margens: a histórica desigualdade entre quem vive de luxos e os que sobrevivem na escassez (2003 [1985]: 30). Então, ainda que traçando uma linha de diferenças com essa alteridade, há um pertencimento e uma estrutura social histórica em comum. Braudel defende que os ocidentais apenas tentam ouvir na outra margem as vozes que lhes soam familiares (ibidem: 15).

No Abbecedario delle migrazioni, o professor de literatura Vincenzo Russo (2018: 23) ressalta, no verbete “Colonialismo”, que não era difícil prever “o retorno das caravelas e um confronto com o Outro que nos tornamos [os europeus] naquele período e para sempre”. Segundo Russo, se o colonialismo expandiu as fronteiras da Europa para muito além do território do continente, impondo à África fronteiras externas, “como bem sabem os estudiosos da diáspora negra, das migrações contemporâneas e das rotas de escravizados”, o primeiro passo necessário na análise contemporânea é justamente o “reconhecimento que aqueles confins estão conosco, grudados em nós” (ibidem).

Se a conquista e o controle de territórios foram praticados desde a Antiguidade, tanto pelos romanos como pelos astecas e otomanos, as tecnologias de domínio usadas pelos europeus na Modernidade agregam um ponto fundamental ao sistema de submissão de outros povos: a constituição e consolidação da economia capitalista. De acordo com Russo (2018), as bases do capitalismo e da formação industrial europeia estão profundamente arraigadas no processo colonial. Sobre o tema, Piergiorgio Solinas, em contribuição à obra de Braudel sobre o Mediterrâneo, cita o desmantelamento dos sistemas econômicos e sociais no norte da África, a partir da colonização francesa, por exemplo.

Ainda na [primeira] metade do século xix, inúmeras comunidades familiares, no quadro das relações intertribais, gozavam de acesso livre à terra, aos poços e aos pastos. A tribo possuía o usufruto e a propriedade de um território que não podia ser vendido nem arrendado: neste contexto, a ideia que se pudesse fazer comércio da terra parecia absurda. A colonização francesa da Argélia (a partir de 1830), da Tunísia (1881) e de Marrocos (1912) introduziu elementos de ruptura, do ponto de vista econômico, que abalaram em pouco tempo o tecido comunitário e familiar. (Solinas, 2003 [1985]: 212)

Enormes territórios foram adquiridos na época pelo Estado francês, utilizando tanto a expropriação forçada como a compra de terras - que até àquele momento não poderiam ser comercializadas. Assim, através do colonialismo desses três países, de acordo com os dados apresentados por Solinas (2003 [1985]), o Estado francês apropriou-se de cerca de quatro milhões de hectares de terras cultivadas pelos nativos nesse período. Isto causou não apenas o desmantelamento econômico de muitas famílias, mas também uma rápida deterioração das comunidades e dos laços que as mantinham unidas. Enquanto um colono possuía 120 hectares de terreno, um camponês dispunha de 12. Nesse contexto, milhares de pequenos agricultores foram obrigados a trabalhar como assalariados na terra que antes cultivavam gratuitamente.

Nessas condições, os laços sanguíneos se deterioram rapidamente. Torna-se sempre mais difícil manter uma relação de solidariedade, submissão ou respeito, segundo os antigos cânones, quando os sujeitos se dispersam em mil lugares diferentes e a base econômica da solidariedade é desmantelada. (ibidem: 213)

Segundo Russo (2018), a exploração do território e a criação de um mercado através da dominação violenta de outros povos forneceram o propulsor para a transição europeia de uma sociedade agrária ao capitalismo industrial. Para que essa subalternização ocorresse, o colonialismo teria que abater as resistências dos povos colonizados. A estratégia principal era o que o autor denomina de “máquina de produzir alteridades” (Russo, 2018: 28). Diante das persistentes resistências dos povos colonizados, “o discurso colonial representa-o como Outro, negação absoluta, banido do reino da civilização e da humanidade. [...] A barbárie, a licenciosidade, a preguiça do colonizado é o espelho construído pelo colonizador para refletir sua bondade, seu decoro, sua civilidade” (ibidem: 29). Por fim, para o literato, se o processo colonial terminou com a independência das colônias portuguesas na África em 1975, a colonialidade e a hierarquização de poderes e saberes permanecem. E a questão migratória é um dos seus reflexos.

No abecedário, a eurodeputada Kashetu Cécile Kyenge (2018) escreve no vocábulo “Europa” que as tentativas de dividir em categorias os sujeitos que devem, ou não, acessar direitos mínimos transformam o entendimento de direitos em privilégios. Liberdade de expressão e direitos à educação, à alimentação, à habitação e à saúde têm perdido o caráter de direitos universais diante das políticas europeias na questão migratória.

Toda a sociedade europeia se esforça para qualificar as pessoas que chegam ao território europeu, cunhando conceitos às vezes surpreendentes: “migrantes políticos”, “migrantes econômicos”, “migrantes de segurança”, surgiram também os “migrantes ambientais” e ainda os “sanitários”. É esta a taxonomia dos migrantes destinados principalmente ao repatriamento ou a uma vida em condição irregular no seio da Europa, devido à ausência de uma permissão de residência. Depois existem também os “requerentes de asilo”, para os quais se perspectiva a possibilidade de uma regularização, que surgirá depois de um longo procedimento de verificações. Para uns e para outros, a sociedade ocidental redescobriu os guichês como ponto de passagem para diversos centros de internamento. (Kyenge, 2018: 92)

Kyenge aponta que a frágil legislação dos países da UE sobre a possibilidade de ingresso e permanência regular no seu território, além de criar obstáculos na conquista de uma vida digna para os migrantes, tem gerado o aumento de xenofobia e racismo. Para a eurodeputada, enquanto as autoridades continuam a promover nos portos políticas securitárias voltadas para o segmento das “embarcações de cunho humanitário”, os navios mercantis provenientes dos mesmos territórios, trazendo a bordo matérias-primas e mercadorias dos países africanos, são recebidos e transitam sem problemas pelo Mediterrâneo. Seguindo a análise de Russo (2018), o colonialismo oficialmente terminou em 1975, a colonialidade não.

A “máquina de produzir alteridade” e a categorização dos sujeitos se dá também para os que nasceram em território europeu. A psicanalista e artista Grada Kilomba relata em sua obra Memórias da plantação (2019) a análise de entrevistas de mulheres negras que viviam em Berlim sobre o tema do racismo cotidiano. Uma delas contou que é constantemente questionada sobre a sua origem. Morando em Berlim e sendo negra, ela nunca era reconhecida como alemã.

A pergunta integra a fantasia colonial de que “alemã/o” significa “branca/o” e “negra/o” significa “estranha/o” (Fremd[er]) ou “estrangeira/o” (Ausländer). Nesta construção, imagina-se a “raça” dentro de limites nacionais específicos e a nacionalidade nos termos da “raça”. Quer a negritude quer o germanismo (ou o europeísmo) são aqui reproduzidos como duas categorias contraditórias mutuamente exclusivas. Ou se é negra/o ou alemã/o, mas não negra/o e alemã/o (Kilomba, 2019: 118; itálicos no original).

Mesmo após anos de colonialismo europeu na África, na Ásia e nas Américas, com todas as suas consequências e seus resultados - entre eles, a escravização brutal de africanos e a diáspora negra -, a questão identitária europeia tenta impor enquadramentos (raciais, inclusive) sobre quem é ou deve ser aceite enquanto europeu. A advogada Maria Elisabetta Vandelli (2018) escreve no verbete “Direitos (acesso a)” que a questão migratória é talvez o melhor prisma pelo qual se possa olhar o grau de justiça e liberdade das sociedades contemporâneas. Isso porque este é atualmente um terreno de experimentações para modelos de exclusão social, que podem mais tarde ser aplicadas com outras justificativas a novos sujeitos.

Nada melhor do que a legislação sobre os estrangeiros para nos dizer de maneira profunda o que somos, que tipo de sociedade somos e desejamos, para nos dizer qual é a nossa ideia de humanidade e de dignidade humana porque estabelece um núcleo mínimo de direitos que reconhecemos também a quem não é cidadão, mas pessoa. (Vandelli, 2018: 60)

Por um mare nostrum

De acordo com a enciclopédia Treccani,6 a expressão latina mare nostrum foi a denominação que os antigos romanos deram ao Mediterrâneo. No início do século xx, durante a guerra de dominação colonial na Líbia nos anos 1911-1912, a expressão foi retomada e bastante utilizada na retórica fascista, tanto nos discursos patrióticos de Gabriele D’Annunzio como pelo próprio Benito Mussolini. Segundo Braudel (2013 [1985]: 12), a Itália vê no Mediterrâneo o seu “destino”:

[A Itália] é o eixo mediano do mar e sempre se dividiu, muito mais do que se diz normalmente, entre uma Itália voltada para o oeste e uma que olha ao leste. Não foi o Mediterrâneo por muito tempo a fonte das suas riquezas? É, portanto, natural a possibilidade e o sonho de dominar o mar em toda a sua extensão.

Predrag Matvejević na obra Breviario Mediterraneo (2011 [1987]) identifica esse mar como um imenso arquivo e um profundo sepulcro. Segundo o autor, ainda que seja possível dividi-lo, é muito mais difícil possuí-lo. Na Antiguidade, os helênicos já o designavam como “nosso mar”, mas foram os romanos que com sua vasta rede de estradas conseguiram conectar as cidades e o mar do Império (ibidem: 13-14).

Uma década depois das conquistas coloniais italianas na Líbia, Mussolini usava a expressão em um discurso político na cidade de Milão, enfatizando que o Mediterrâneo deveria ser um dos símbolos da grandeza italiana e se tornar um lago nostro (Fabbri, 2020: 52). A partir de 1941, depois da ocupação fascista na Grécia, o ditador passou a usar a expressão mare nostrum italiano para se referir ao Mediterrâneo. Anos mais tarde, parte da população italiana pegaria em armas para derrubar o governo de Mussolini e as suas pretensões imperiais. Terminada a Segunda Guerra Mundial, o primeiro governo da recém-fundada República Italiana buscou a reconstrução da frota naval e uma restauração da ocupação do Mediterrâneo, agora pensado enquanto corredor para mercadorias e comércio. Apesar dos 7400 quilômetros de costa e da importância da economia marítima, o pesquisador Daniele Demarco (2020: 175) destaca que na Itália o Mediterrâneo ainda é um “símbolo vivo de uma ideia, de algo indeterminado, sem forma, sem medida”:

Antes mesmo de ser “instrumento”, âmbito de conquista, pesca e guerra, o mar irrompe, porém, no nosso imaginário como símbolo vivo de uma ideia: a ideia do “indeterminado”, do “sem-forma”, do “sem-medida”. O mar é o infinito que circunda o nosso habitat e ameaça corroê-lo desde o exterior. Observar o mar a partir da terra firme significa refletir sobre a precariedade dos fundamentos, perceber que tudo o que nós construímos, tudo o que é belo, sólido e estável está sempre exposto aos caprichos do destino e às invasões de tempestades imprevisíveis. (ibidem)

O Mediterrâneo - que já foi reivindicado como posse pelos romanos, pelos colonizadores e pelos fascistas - continua a representar um imaginário de ameaças. O tratamento das políticas migratórias em uma chave securitária reforça em partes tal imagem. A releitura do fenômeno, como proposta pelo Abbecedario delle migrazioni, tenta demonstrar que atualmente mais do que possuir e controlar o trânsito no Mediterrâneo, deveríamos compartilhar o pertencimento a esse mar - e não a sua posse. Se nos últimos anos - com exceção do intervalo de 12 meses da operação Mare Nostrum (2013-2014) - a atuação de resgate se dá principalmente em águas territoriais ou contíguas, a concepção de um pertencimento coletivo nos levaria a atuar em chave humanitária também em alto-mar, de modo estrutural e não apenas depois de grandes naufrágios.

Nadine Innocenzi (2016), especialista em Relações Internacionais pela Universtià degli Studi di Perugia, mostra em L’operazione Mare Nostrum. La politica migratoria italiana tra assistenza umanitaria e politiche di sicurezza como a questão migratória na Itália é historicamente estruturada, partindo das dificuldades encontradas na gestão das crises provocadas pelos fluxos de pessoas que chegam pelo Mediterrâneo. 1973 é a data que marca a mudança na designação de Itália de “país de emigração” para “recetor de imigrantes”. Naquele ano, pela primeira vez os registros mostraram um saldo positivo para a entrada de estrangeiros no país. Entre os imigrantes, dois grupos se distinguiam: o primeiro era composto em sua maioria por tunisianos que vinham trabalhar na agricultura e na pesca, especialmente na região sul; o outro era composto por mulheres provenientes de vários países que vinham realizar trabalhos domésticos. Em ambos os casos, a imigração era em sua maioria temporária (ibidem: 16).

A partir dos anos 1990, após a queda do muro de Berlim, a extinção da União Soviética e as crises internacionais que envolveram países próximos (como as da Albânia e do Kosovo), assim como conflitos e instabilidade política nos países africanos no início do século xxi, geraram um fluxo constante de migrantes nos portos italianos. Depois de 2011, as crises decorrentes da Primavera Árabe, o agravamento da frágil situação política do Oriente Médio, a instabilidade crônica na Somália e Eritreia juntamente à tomada por parte de grupos terroristas de diversos territórios da África subsaariana, tornaram as rotas do Mediterrâneo cada vez mais constantes e percorridas por um número sempre maior de pessoas.

No dia 3 de outubro de 2013, um barco de migrantes que se dirigia ao porto de Lampedusa naufragou e, apesar de as autoridades italianas terem salvado 155 pessoas, os registros oficiais apontaram 366 mortos e 20 desaparecidos. Poucos meses depois, o governo italiano decidiu instalar a operação Mare Nostrum, que ganhava essa designação, segundo fontes oficiais, para um entendimento do Mediterrâneo enquanto “nossa responsabilidade” (Innocenzi, 2016: 109).

A missão se distinguia radicalmente das precedentes experiências italianas e europeias. Mare Nostrum tinha um objetivo duplo: além do clássico escopo de garantir a segurança e o controle das fronteiras italianas, combatendo as atividades ilegais ligadas ao tráfico de seres humanos, se propunha a assegurar a proteção das vidas humanas no mar. (ibidem)

Segundo dados da Agência Europeia de Gestão da Cooperação Operacional nas Fronteiras Externas (Frontex), naquele período - até ao naufrágio do dia 3 de outubro de 2013 - chegavam semanalmente cerca de 2000 migrantes à costa italiana, provenientes majoritariamente da Síria, embarcados para a Europa a partir das praias líbicas.7 Aquela não era a primeira vez que pessoas perdiam a vida na travessia do Mediterrâneo, mas até 2013 foi o naufrágio com maior número de mortos e desaparecidos, agravado pelo fato de o barco não estar distante da costa. A comoção local e internacional foi agudizada também diante do cemitério da ilha de Lampedusa, superlotado e insuficiente, fazendo com que os corpos dos migrantes fossem distribuídos por diferentes cidades sicilianas para o sepultamento.

Mare Nostrum trazia então um escopo inédito nas missões instituídas pelos países europeus na fronteira mediterrânea: a assistência humanitária. Mas incluía também a tarefa de “polícia marítima”. As embarcações dos migrantes poderiam ser inspecionadas e, em caso de suspeitas, os acusados de tráfico ilegal de pessoas seriam detidos para prestação de contas e os barcos apreendidos pelas autoridades italianas durante o período de investigação e julgamento de cada caso. Atuavam assim, enquanto agentes da Mare Nostrum, militares, funcionários do Ministério do Interior e médicos do sistema de saúde italiano e de organizações não governamentais.

Segundo dados fornecidos pela Marinha Militar, depois de 379 dias de atividades, conduzidas de maneira contínua, foram 156 362 os migrantes assistidos no âmbito de 439 ocorrências, chegando a atingir picos de 9000 migrantes por semana. Foram 366 os suspeitos de tráfico de pessoas detidos e entregues às autoridades judiciárias e nove as chamadas “naves mães” apreendidas. (Innocenzi, 2016: 128)

Um dos fatores de distinção da Mare Nostrum foi a atuação em alto mar. Antes que as embarcações dos migrantes pudessem ser destruídas ou mesmo que uma situação de maior perigo se apresentasse, os militares e agentes italianos intervinham. Innocenzi reporta que as duas maiores críticas à operação foram o custo (cerca de 9,3 milhões de euros por mês) e um suposto incentivo à migração “irregular”. Sobre esta última, a pesquisadora aponta para o fato de que apesar de o número de ingressos de migrantes na área siciliana permanecer igual, nos três meses após a extinção da Mare Nostrum, mais de 900 pessoas perderam a vida no Mediterrâneo, enquanto no mesmo período do ano anterior, tinham sido contabilizados 17 mortos (ibidem: 138).

Considerações finais

A mensagem que permeia as 45 análises do Il diritto al viaggio. Abbecedario delle migrazioni é a de que as migrações dependem de inúmeros fatores. Para além da abertura de canais seguros e regulares para a viagem, é preciso um comprometimento internacional pela paz e pelo desenvolvimento econômico e ambiental sustentável, uma vez que ao longo da história os seres humanos sempre viajaram, especialmente em busca de segurança e melhores condições de vida.

É então inadiável agir em duas frentes: de um lado, construir um futuro sustentável para as populações mais oprimidas, para que sejam livres de permanecer no próprio país, e ao mesmo tempo, governar os fluxos migratórios tornando efetiva a liberdade de partir, criando canais seguros, protegidos da ilegalidade, implementando inclusive boas práticas que já existem para evitar tragédias anunciadas; enfim, fornecer instrumentos eficazes de integração. (Barbari, 2018: XI)

Fazendo uma reconstrução sintética sobre a gestão dos fluxos migratórios no Mediterrâneo, especificamente nas últimas três décadas em relação à costa italiana, Innocenzi nota uma administração emergencial reativa, muitas vezes somente após naufrágios. Também a nível europeu, a autora ressalta o investimento e aprimoramento tecnológico alcançado após o Tratado de Schengen em 1985, especialmente com a criação da agência Frontex em 2004, mas cuja função se circunscreve em quase sua totalidade a controlar as fronteiras e atuar pontualmente diante de situações excepcionais. Passados 30 anos dos primeiros fluxos consistentes de migrantes, segundo Innocenzi (2016: 149), a medida mais estrutural foi a assinatura de tratados com países do norte da África e com a Turquia para reforçar o controle do Mediterrâneo. Ainda que oficialmente se prospecte a hipótese de que os refugiados possam entrar com pedido de asilo e proteção humanitária nesses países, na prática desde antes da Primavera Árabe e até hoje, vemos periodicamente reportagens e testemunhos dos migrantes presos na Líbia ou em outras fronteiras, sofrendo graves violações de direitos humanos.

Kyenge (2018: 94) vê na implementação de uma cidadania europeia a possibilidade da ativação da rede diplomática da União para a criação de vias regulares para o acesso à Europa. Enquanto essa e outras reformas não são discutidas, nem implementadas, uma decisão da Corte Europeia de Direitos Humanos de 2012 (caso Hirsi Jamaa e outros vs. Itália - n.º 27765/09) determinou que os Estados devem se responsabilizar pela segurança de direitos e garantias presentes na Convenção Europeia de Direitos Humanos também em águas internacionais. O alto-mar não seria assim uma área isenta de responsabilidades e direitos. Para além das proibições de expulsões coletivas em territórios que não apresentem condições de segurança, segundo a decisão da Corte, tal princípio vale em uma perspectiva extraterritorial - a responsabilidade de não expulsão se aplica também em águas internacionais. E, por fim,

a especificidade do contexto marítimo, afirma a Corte, não pode levar a sancionar um espaço de ausência de direitos, no âmbito do qual os indivíduos não estariam sujeitos a qualquer regime jurídico que lhes possa conceder o gozo dos direitos e garantias previstas pela Convenção e que os Estados se comprometeram a reconhecer a pessoas colocadas sob sua jurisdição. (Macioce, 2018: 173)

Existe, portanto, um vínculo jurídico confirmado por essa decisão da Corte Europeia de Direitos Humanos para que os Estados se responsabilizem pelas vidas que transitam no Mediterrâneo, não apenas dentro dos limites das chamadas águas territoriais. O que se vê nas análises realizadas pelos 45 autores do Abbecedario delle migrazioni é uma desconstrução de argumentos que possam contrariar esse dever jurídico e ético. É a elaboração de um arcabouço teórico e reflexivo sobre o compromisso europeu de impedir que o Mediterrâneo se preste a função de cemitério de migrantes. A partir da análise dos verbetes “Mar”, “Muros”, “Colonialismo”, “Europa” e “Direitos”, é possível afirmar que os autores percebem no Mediterrâneo a possibilidade e a necessidade da construção de um espaço ético compartilhado.

Entre 2004 e 2008, a filósofa estadunidense Judith Butler escreveu sobre a questão da desigualdade na percepção do luto nas sociedades ocidentais. Em sua obra Quadros de guerra, Butler (2016: 13) propõe um olhar acurado sobre as molduras que utilizamos para enquadrar e compreender as mortes: “Se certas vidas não são qualificadas como vidas ou se, desde o começo, não são concebíveis como vidas de acordo com certos enquadramentos epistemológicos, então essas vidas nunca serão vividas nem perdidas no sentido pleno dessas palavras”. Segundo a filósofa (ibidem: 11), é importante “repensar o complexo e frágil caráter dos vínculos sociais e considerar que condições podem tornar a violência menos possível, as vidas mais equitativamente passíveis de luto e, consequentemente, mais vivíveis”. O que este artigo tentou demonstrar a partir da análise da obra Abbecedario delle migrazioni é que mesmo diante do desafio securitário e das implicações que o fenômeno migratório pode aportar nas sociedades europeias, estas não podem categorizar que vidas são passíveis ou não de serem vividas. Enquanto as políticas forem majoritariamente de controle e bloqueio no Mediterrâneo, sua travessia continuará a impor-se como gatekeeping (para retomar a expressão usada por Macioce), de forma a selecionar os que sobreviverão e poderão entrar em solo europeu.

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1Ver definição em https://www.treccani.it/vocabolario/migrare. Consultado a 01.06.2021.

2Todos os textos originalmente em língua italiana foram traduzidos pela autora.

3Cf. notícia “Em meio à pandemia de Covid-19, mundo bate recorde de 80 milhões de refugiados e deslocados”, Folha de S. Paulo, 9 de dezembro de 2020. Consultado a 21.06.2021, em https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/12/em-meio-a-pandemia-de-covid-19-mundo-bate-recorde-de-80-milhoes-de-refugiados-e-deslocados.shtml.

4Rigo cita a análise da obra de Wendy Brown, Walled States, Waning Sovereignty, de 2010.

5O texto de Ahmed citado por Rigo é “Affective Economies”, publicado em 2004, na revista Social Text.

6Ver definição em https://www.treccani.it/vocabolario/mare-nostrum. Consultado a 21.05.2021.

7Dados de Frontex Risk Analysis Network Quarterly de março de 2013, mencionados em Innocenzi (2016: 106).

Recebido: 15 de Fevereiro de 2021; Aceito: 02 de Julho de 2021

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