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Revista Crítica de Ciências Sociais

versão On-line ISSN 2182-7435

Revista Crítica de Ciências Sociais  no.125 Coimbra set. 2021  Epub 30-Set-2021

https://doi.org/10.4000/rccs.12320 

Recensões

Recensão: Bebiano, Rui (2020), No labirinto de Outubro - Cem anos de revolução e dissidência1

1Doutorando no Centro de Investigação e Estudos de Sociologia, ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa, Lisboa, Portugal, joaocsantosmoreira@gmail.com

Bebiano, Rui. (, 2020. ),, No Labirinto de Outubro - Cem anos de revolução e dissidência. ., Lisboa: :, Edições 70, ,, 358 ppp. .


Dez anos após a publicação da pequena - mas importante - compilação Outubro, Rui Bebiano volta a publicar uma obra centrada nas representações e na influência político-ideológica da Revolução Russa de 1917 ao longo dos 100 anos que se lhe seguiram. Desta vez com uma obra que, não sendo propriamente um estudo exaustivo, tem a pretensão de oferecer um olhar global sobre os ecos e as repercussões gerados por aquele processo político e social. Para isso muito contribuiu um longo período de reflexão sobre aquele acontecimento, materializado em diversas publicações relativas aos imaginários, à História da Esquerda Radical, à História dos Intelectuais e à História das Ideias, e de que são exemplos o livro O poder da imaginação: juventude, rebeldia e resistência nos anos 60 (de 2003)2 e os capítulos “À volta de ‘O radicalismo pequeno-burguês de fachada socialista’” (de 2013),3 “O chefe comunista” (de 2012)4 - ambos em coautoria com Miguel Cardina -, e “Não há um Outubro - Paradigma e variações” (de 2017).5

Note-se igualmente que No Labirinto de Outubro surge pouco tempo depois da publicação de Percursos de uma Revolução: ensaio de releitura da Revolução Soviética (de 2017),6 de Mário Machaqueiro - principal estudo publicado em Portugal nos últimos anos sobre aquele processo revolucionário. Esta obra, a par de Dissident Marxism (de 2004)7 do historiador britânico David Renton, surge como modelo ao livro aqui analisado por promover a leitura dos vários Outubros de Outubro - ou, nas palavras de Rui Bebiano, as várias “representações, propostas e hipóteses” que tiveram origem na tomada do poder pelo partido bolchevique (p. 27).

Outras importantes marcas de leitura de Bebiano são também identificadas na Introdução do livro, intitulada “Na máquina do tempo”. Aqui, o autor assume a adoção da proposta de Svetlana Boym no que diz respeito “à sua noção peculiar de nostalgia”. Segundo a historiadora russo-americana, aquela não tem apenas o significado negativo da “evocação do passado”, pelo contrário: a nostalgia pode assumir “virtualidades dinâmicas, tanto no processo de interpretação do mundo, seja ele o passado ou o presente, como na forma de nele interferir” (pp. 20-21).

Outra influência assumida por parte de Bebiano é a ideia de “melancolia de esquerda” do historiador italiano Enzo Traverso. O autor português interpreta-a simultaneamente como “espécie de tradição escondida” e “disposição interior dinâmica” que, mais do que ser apenas um presumível “sentimento passivo ou de derrota”, promove e mobiliza a esperança e a energia para caminhos não percorridos e, porventura, por percorrer (p. 21).

Sob estes pressupostos, o autor apresenta a Revolução Russa sob um duplo foco: por um lado, acentuando o seu “carácter polissémico” e os seus “futuros hipotéticos e plausíveis” e, por outro lado, evidenciando a “multiplicidade de buscas”, “de experiências” (p. 9) e “de hipóteses” (p. 327) inspiradas naquele momento inicial do século xx e que, em muitas ocasiões, divergiram amplamente do núcleo da ortodoxia tornada dominante durante a década de 1930. Nesse sentido, o livro é atravessado pela interpretação de diversos regimes, movimentos e personalidades do movimento comunista, pela identificação das suas tonalidades, nuances e diferenças, e também pela compreensão do papel desempenhado pela imaginação, pela esperança e (diga-se, igualmente) pela descrença em todos os espaços do labirinto. Utilizando as palavras do próprio autor, isto aconteceu pela “perceção gradual de um paradigma […] aparentemente robusto e mesmo dogmático, que na verdade se confrontou com escolhas e saídas contraditórias, que muitas vezes impediram, ou pelo menos questionaram, a afirmação e a imposição dessa solidez” (p. 22).

Partindo desta preposição, o autor apresenta (entre outros): a União Soviética e Cuba; a figura de Estaline, mas também a de Trotsky; o impacto mobilizador da Revolução Cultural liderada por Mao Tsé-Tung e o espectro da figura de Ernesto “Che” Guevara; as ortodoxias e as dissidências; o estalinismo e a esquerda radical; os compagnons de route e as vozes singulares do complexo (e labiríntico, diga-se) mundo socialista e comunista. Resumidamente, a dissidência no universo político, ideológico e intelectual gerado pela Revolução de Outubro, no contraste com o(s) seu(s) paradigmas(s).

Um aspeto fundamental da reflexão de Bebiano, e que entra em oposição com a visão dominante sobre o assunto, é a de que a União Soviética de Estaline comportou, em larga medida, uma rutura, corte ou fratura com o projeto bolchevique de 1917. O fenómeno totalitário que culminou no complexo prisional e de trabalho forçado denominado Gulag (Administração Central de Campos), na polícia política, no assassinato de milhões de cidadãos e na eliminação dos próprios líderes comunistas da Revolução de Outubro, empreendeu efetivamente mudanças qualitativas em relação ao regime nascido naquele país pluricontinental, pelo que merecem ser salientadas.

Apesar de esta ser uma obra de um historiador de profissão - de um historiador das ideias -, não lhe serve de base documentação inédita ou arquivística. Pelo contrário, o ensaio No Labirinto de Outubro é atravessado pela citação ou referência à bibliografia mais atualizada sobre diversos aspetos suscitados pelo processo revolucionário russo. É este estado da arte de uma parte da “já longa e turbulenta história da esquerda e do socialismo” (p. 326) que suporta todo o edifício argumentativo de Bebiano e que lhe confere uma honestidade intelectual que, por vezes, dadas as paixões e diabolizações que o assunto normalmente oferece, está ausente do debate não apenas ideológico mas também historiográfico.

Note-se, no entanto, que este não é somente um livro de história, neutro ou assético: é também uma tomada de posição - crítica, é certo - e um compromisso com um campo político - a esquerda. No fundo, Bebiano apresenta-se na condição de historiador, mas também na de intelectual que procura apresentar novos caminhos, sempre com o olhar no retrovisor da História. Não se estranha, com efeito, o último parágrafo deste livro, no qual o autor se inscreve - ainda que de forma não absolutamente explícita - no próprio Labirinto de Outubro, na sua “experiência […] intensa”, embora alertando para os “erros” outrora cometidos (p. 329). Como há dez anos, Bebiano guarda “um qualquer Outubro na algibeira”8 - as suas expectativas e as suas possibilidades.

Referências

Bebiano, Rui (2020), No Labirinto de Outubro - Cem anos de revolução e dissidência. Lisboa: Edições 70, 358 pp. [ Links ]

1Este trabalho foi financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito do projeto com a referência PD/BD/138124/2018.

2Cf. Bebiano, Rui (2003), O poder da imaginação: juventude, rebeldia e resistência nos anos 60. Coimbra: Angelus Novus.

3Cf. Bebiano, Rui; Cardina, Miguel (2013), “À volta de ‘O radicalismo pequeno-burguês de fachada socialista’”, in José Neves (org.), Álvaro Cunhal. Política, história e estética. Lisboa: Tinta-da-China, 79-90.

4Cf. Bebiano, Rui; Cardina, Miguel (2012), “O chefe comunista”, in Ernesto Castro Leal; José Pedro Zuquete (orgs.), Grandes chefes da história de Portugal. Lisboa: Texto Editores, 287-309.

5Cf. Bebiano, Rui (2017), “Não há um Outubro - Paradigma e variações”, in Parsifal (org.), Revolução Russa - 100 anos depois. Lisboa: Parsifal, 149-176.

6Cf. Machaqueiro, Mário (2017), Percursos de uma Revolução: ensaio de releitura da Revolução Soviética. Lisboa: Nova Vega.

7Cf. Renton, David (2004), Dissident Marxism. London: Zed Books.

8Cf. Bebiano, Rui (2009), Outubro. Coimbra: Angelus Novus, p. 7.

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