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Revista Crítica de Ciências Sociais

versão On-line ISSN 2182-7435

Revista Crítica de Ciências Sociais  no.126 Coimbra dez. 2021  Epub 31-Dez-2021

https://doi.org/10.4000/rccs.12528 

Recensões

Recensão: Felix, Gil (2019), Mobilidade e superexploração do trabalho: o enigma da circulação

Garcia Neves Quitari1  2  3 
http://orcid.org/0000-0002-4175-5130

1Faculdade de Ciências Sociais, Universidade Agostinho Neto, Luanda, Angola, garcianeves@gmail.com

2Doutorando no Iscte - Instituto Universitário de Lisboa, Lisboa, Portugal

3Grupo de Pesquisa sobre Trabalho (CNPq), Universidade Federal da Integração Latino-Americana, Brasil

Felix, Gil. (, 2019. ),, Mobilidade e superexploração do trabalho: o enigma da circulação. ., Rio de Janeiro: :, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, /, Lamparina Editora, ,, 352 ppp. .


Os estudos sobre mobilidade da força de trabalho no Brasil constituem um campo de investigação académica e científica com mais de cinco décadas. Estes estudos alcançaram o seu apogeu entre as décadas de 1960 e 1980, período no qual vários estudos, com diferentes abordagens, investiram na compreensão dos processos de industrialização, da modernização agrícola e da expansão das fronteiras amazônicas.

Nesta senda, o livro* que ora se apresenta contribui para atualização deste debate. Trata-se de um texto que resulta da tese de doutoramento em Ciências Sociais de Gil Felix, realizado na Universidade Estadual de Campinas. Tendo por base um estudo de terreno prolongado, é também parte do desdobramento da pesquisa desenvolvida no âmbito da dissertação de mestrado em Antropologia.

Com base na análise minuciosa do pensamento de Karl Marx e no estudo de caso, a obra evidencia a permanência das lógicas do modo de produção capitalista e das relações de trabalho subsequentes enquanto meio de subtração de mais-valia, dominação e reprodução da força de trabalho. Nessa perspetiva, contribui também para uma discussão sobre o mundo do trabalho num contexto em que a agudização das mudanças tecnológicas mascara velhas e tradicionais formas de exploração de recursos humanos e de tentativas de dominação da classe trabalhadora. Este contexto exige um aprimoramento da crítica para descodificar as características assumidas pelas “novas” formas de trabalhar - uma tarefa nada fácil, considerando as tendências teóricas dominantes e fortemente ancoradas na simples visão da fluidez que viria a caracterizar o mundo capitalista, sobretudo no limiar do século xxi.

Grosso modo, Felix reafirma a análise marxista como perspetiva teórica fecunda e incontornável para a compreensão das atuais facetas do mundo do trabalho, como as que se assemelham ao fenómeno da uberização, ao trabalho sem contrato, ao trabalho a tempo parcial ou ao just in time, entre outros. Estas formas de trabalho, disseminadas sob diferentes “cortinas de fumaça” (entre as quais o self-employment), ocultam também um processo crescente de (des)regulamentação das normas laborais e um aligeiramento da proteção dos direitos dos trabalhadores - conquistados ao longo de muitos anos de lutas e movimentos sociais de trabalhadores - não somente no Brasil, como também um pouco por todo o mundo.

Como afirma o próprio autor, a pesquisa da qual resultou o livro Mobilidade e superexploração do trabalho pretendia, num primeiro momento, discutir as teorias desenvolvimentistas hegemónicas sobre as designadas novas fronteiras amazônicas. No entanto, como é expectável em pesquisas prolongadas, acabou ampliando o seu objeto de análise para entender as complexas dinâmicas locais da exploração da mão de obra a partir de uma categoria analítica especificamente marxista, a circulação.

Nesse sentido, a mobilidade dos trabalhadores em torno das firmas subjacentes aos projetos de mineração é analisada na perspetiva de mercadoria, sendo que a força de trabalho, ao ser trocada por outra mercadoria-dinheiro, realiza um ciclo de reprodução do capital. Porém, esta mobilidade não ocorreria senão pelo facto de, sendo a força de trabalho uma mercadoria, esta circular num mercado no qual adquire o seu valor em função da lei da procura e da oferta.

Além da compreensão da mobilidade e da exploração capitalista do trabalho, o livro também articula a relação de exploração entre os países desenvolvidos e aqueles caracterizados como formações capitalistas dependentes - um olhar que impõe a necessidade de considerar experiências diferentes no processo de acumulação primitiva de capital. Para tanto, o autor aborda a teoria marxista da dependência na perspetiva de Ruy Marini, apresentado detalhadamente em anexo específico.

Do pensamento de Marini, um intelectual latino-americano, Felix traz à discussão o conceito de superexploração do trabalho. A existência de um intercâmbio desigual entre países centrais e países periféricos do capitalismo mundial permitiria níveis assimétricos de apropriação do valor do trabalho em benefício dos primeiros. No caso da indústria de mineração, as suas atividades são controladas por grandes companhias multinacionais, e a divisão de trabalho internacional reserva para as formações capitalistas dependentes as etapas inferiores, socioambientalmente mais danosas e de menor remuneração. Por estas e outras razões, para Marini, como refere Felix (no anexo do livro), o capitalismo na América Latina cursa com características próprias, devendo ser entendido como um tipo sui generis de formação capitalista dependente.

O livro organiza-se em quatro capítulos, mais as considerações iniciais e finais e, ainda, um anexo. No primeiro capítulo, que aqui destacamos (“Minas”), o autor explora o processo de implantação de uma nova mina da empresa Vale S.A. no estado do Pará, região norte do Brasil. Ao valorizar os dados do terreno de investigação e, por conseguinte, a partir das representações sociais dos moradores da região, reflete em torno de expressões locais como mundo ou estar no mundo.

Estar no mundo foi assim percebido por Felix como uma situação provisória (ou não), em que ao se encontrar fora do mercado de trabalho formal, trabalhadores “desempregados” migram para fora das fronteiras do estado ou município em busca de trabalho, ou transitam de modo intermitente e, temporariamente, entre diferentes atividades conseguidas na nova região; trajetórias e rotatividades estas que podem incluir distintas ocupações, tais como trabalhador de fazenda agrícola num momento, ajudante de construção civil ou empreiteiro de pequenos serviços locais noutro.

Estar no mundo também é uma situação em que camponeses sem posse de terra veem-se forçados a deslocações constantes à procura de uma parcela de terra para ocupar ou comprar. No fundo, estar no mundo revela ainda os limites da reprodução social camponesa face ao domínio do latifúndio, da expansão da mineração e da agroindústria.

O segundo capítulo (“Firmas”) é dedicado a uma descrição pormenorizada da trajetória da mobilidade da força de trabalho com foco no conjunto diversificado de empresas subcontratadas pela Vale S.A. De modo semelhante ao empreendido no capítulo anterior, aqui o autor valoriza expressões locais sintetizadoras, que revelam posições, relações hierárquicas e situação no mercado de trabalho. É o caso de peões de trecho, que representa uma situação de trabalho mais precária, de maior mobilidade, à qual são mais aptos jovens sem família nuclear, por exemplo.

No capítulo seguinte (“Expulsões”), Felix examina as expulsões decorrentes da expansão da indústria mineradora no estado do Pará, de que são vítimas as populações camponesas e indígenas. O autor reflete sobre as diferentes e divergentes narrativas dos atores em disputas, tais como empresas versus populações afetadas e movimentos sociais, e retrata também o ambiente institucional e o papel interventivo dos órgãos do Estado, por exemplo, nos processos de desapropriação de terras.

Por fim, o quarto capítulo (“Circulação”) é destinado à análise das características do mercado de trabalho do estado do Pará, altamente circulatório, para o qual contribuem a mobilidade “voluntária” de trabalhadores, as expulsões de camponeses e de povos indígenas. A circulação da força de trabalho é escrutinada pelo autor à luz do conceito marxiano de Exército Industrial de Reserva o que, no contexto desta região, significa a disponibilidade de mão de obra pronta para suprir a demanda de trabalho nos momentos de maior crescimento ou de expansão do capital. Desta forma, Felix aponta também como, a nível da região estudada, a circulação constitui uma forma específica de reprodução social da força de trabalho.

Referências bibliográficas

Felix, Gil (2019), Mobilidade e superexploração do trabalho: o enigma da circulação. Rio de Janeiro: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo/Lamparina Editora. [ Links ]

Recebido: 29 de Agosto de 2021; Aceito: 22 de Novembro de 2021

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