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Revista Crítica de Ciências Sociais

versão On-line ISSN 2182-7435

Revista Crítica de Ciências Sociais  no.127 Coimbra maio 2022  Epub 30-Maio-2022

https://doi.org/10.4000/rccs.12948 

Recensões

Recensão: Carmo, Renato Miguel do; Caleiras, Jorge; Roque, Isabel; Assis, Rodrigo Vieira de (2021), O Trabalho aqui e agora: Crises, percursos e vulnerabilidades1

11Faculdade de Economia, Universidade de Coimbra, Coimbra, Portugal, murteira@fe.uc.pt

Carmo, Renato Miguel do. (, 2021. ),, O Trabalho aqui e agora: Crises, percursos e vulnerabilidades. ., Lisboa: :, Tinta-da-China, ,, 296 pp.p. 189-192


Publicada em Setembro de 2021, a presente obra integra uma trilogia de estudos coordenados por Renato Carmo sobre a vivência do malestar por diferentes grupos vulneráveis na sociedade portuguesa contemporânea. Iniciada com o lançamento de Retratos da Precariedade: Quotidianos e aspirações dos trabalhadores jovens (2019),2 continuada com a publicação de A Miséria do Tempo: Vidas suspensas pelo desemprego (2020),3 a trilogia fica concluída com a edição desta obra.

O livro traz à luz os resultados de uma investigação de natureza qualitativa, sobre a “condição social, económica e existencial” (p. 13) de um conjunto de trabalhadores em situação laboral precária. No centro da análise colocam-se os processos de produção e reprodução da precariedade laboral e os efeitos corrosivos nas vidas humanas do ambiente de desprotecção e incerteza em que se inscrevem.

Os autores começam por caracterizar os contextos de socialização familiar e escolar que antecedem a inserção no mundo do trabalho dos 53 entrevistados. Estabelecem depois uma tipologia de “percursos de participação no mercado de trabalho” (p. 67). Cruzando dois eixos - o da rotatividade (maior ou menor) e o do enquadramento contratual (formal ou informal) - identificam quatro perfis de percursos. Uma vez que esses percursos podem ser desestabilizados por factores de natureza estrutural (momentos de crise que funcionam como pontos de ruptura) ou microssocial (decorrentes de eventos biográficos), os autores examinam a sua articulação com as dinâmicas de protecção social. As “trajectórias laborais de protecção” (p. 106) são muitas vezes descendentes. As vulnerabilidades agravam-se quando o emprego é instável ou a condição económica se degrada porque cessou o rendimento de trabalho. Quando isso acontece, muitos ficam sem acesso a prestações substitutivas do salário (de imediato ou no futuro) por não estarem cobertos por mecanismos de protecção social. Identificando o modo como a precariedade laboral se produz e reproduz, os autores concluem que se formam “regimes de precariedade” que ancoram os mais vulneráveis a uma condição contratual, económica e de desprotecção que tende a perpetuar-se.

O livro inclui ainda um capítulo com retratos sociológicos aprofundados de quatro trabalhadores em situação precária. Examina também a articulação da precariedade com outras formas de sofrimento no trabalho - práticas laborais atentatórias da dignidade dos trabalhadores vulneráveis, propiciadas por relações de poder assimétricas. E analisa o modo como os trabalhadores precários percepcionam o mundo do trabalho, os mecanismos de protecção social, o funcionamento das instituições e do Estado, a participação social e a acção colectiva.

O Trabalho aqui e agora revela-se um importante contributo para o estudo do mundo do trabalho na sociedade portuguesa contemporânea: desoculta uma realidade impossível de apreender através das estatísticas e providencia um quadro conceptual e teórico para a interpretar. A realidade que revela contrasta com a espelhada num conjunto de narrativas vulgarizadas, embora controversas. Contrasta, desde logo, com a ideia do sucesso das políticas recentes no combate ao desemprego, que estariam a aproximar o mercado de trabalho do equilíbrio. Fruto das insuficiências dos modelos teóricos utilizados (que tendem a naturalizar qualquer taxa de desemprego) e dos indicadores estatísticos disponíveis, os desequilíbrios do mercado de trabalho tornaram-se invisíveis para muitos. Afastando-se desse mundo ficcional, a obra confronta o leitor com um contexto laboral em que escasseiam as ofertas de trabalho digno e protegido e proliferam modalidades precárias de emprego, a insegurança de rendimento e a desprotecção laboral e social.

Ao atribuir centralidade aos efeitos nas vidas humanas da precariedade laboral e dos riscos que deixaram de ser socializados, o livro vem evidenciar a natureza desprotectora da realidade presente, contrastando também com a visão neoliberal e da terceira via que perspectiva o risco como oportunidade ou, nos termos de Anthony Giddens, como “princípio energizador” da sociedade.4 Segundo os autores, a desprotecção dos trabalhadores com trajectórias de vida e percursos laborais marcados por vulnerabilidades cumulativas afecta a própria vivência do tempo: o tempo - como a vida - parece escapar ao seu controlo. Os autores retratam “vidas em permanente movimento, de contrato em contrato, de empresa em empresa, de lugar em lugar” (p. 266), ancoradas a dinâmicas de reprodução da vulnerabilidade e da insegurança laboral. Esse movimento é denominado “pendular”, porque “o tempo avança […] sem se sair do mesmo lugar” (p. 267): salários sempre baixos, sucessivos contratos a termo, expectativas goradas de contratos permanentes, contribuições sociais descontínuas. As pessoas perdem a possibilidade “de projectar e construir o futuro” (p. 30).

O livro afasta-se ainda de uma outra narrativa com eco no espaço mediático: a que interpreta a precariedade como problema de equidade intergeracional. Na realidade, o mercado de trabalho tornou-se dual, incorporando, em simultâneo, percursos estáveis e com direitos e percursos instáveis e sem direitos, estes últimos atingindo sobretudo as gerações mais jovens - facto que propicia a crítica do “privilégio” dos mais velhos (insiders) em relação aos mais novos (outsiders). É inegável que o dualismo tem um cunho geracional, porque a precariedade tem muito maior incidência nas coortes de trabalhadores mais jovens. Mas o idadismo é um embuste: ao representar as desigualdades em termos etários, desvia a atenção das suas causas estruturais. Na realidade, quer os jovens, quer os mais velhos, estão a sofrer de diferentes formas os efeitos da erosão dos direitos laborais e sociais. As desigualdades entre gerações de trabalhadores foram socialmente construídas: o retrocesso dos direitos laborais e sociais é fruto das políticas de liberalização que impactaram as trajectórias de vida individuais em diferentes fases. Se os autores não caem nessa cilada (da representação dos privilégios dos idosos e da desvantagem dos jovens), é porque estão cientes das causas estruturais do desemprego e da precariedade.

Secundando Zygmunt Bauman, os autores socorrem-se da metáfora da transição da modernidade sólida para a modernidade líquida para caracterizar a crescente volatilidade e incerteza do mundo do trabalho associada à ascensão do neoliberalismo. Argumentam que a desvalorização do trabalho e o desmantelamento gradual dos direitos laborais e sociais implicaram o aprofundamento dos processos de exploração e de mercadorização de trabalho. De facto, o retrocesso dos direitos laborais e sociais propicia a emergência da concepção mercantil do trabalho: no momento da contratação, é atribuído um valor de troca ao trabalho (o salário), mas não necessariamente um estatuto protector. O trabalho passa a ser tratado como mercadoria, mas, como observou Karl Polanyi (referência teórica fundamental dos autores), é uma “mercadoria fictícia”. Para tornar o mercado o princípio regulador da vida económica é preciso criar a ficção de que o trabalho, a terra e a moeda são mercadorias, como se fossem separáveis dos trabalhadores, da natureza e da economia real. Porém, como Polanyi alertou, se a lógica capitalista de tratar as mercadorias fictícias como se fossem reais não conhecer entraves, estas entrarão em colapso.

Cientes das causas estruturais da precariedade laboral e, por isso, descrentes da possibilidade de resolver as vulnerabilidades do mundo do trabalho através de paliativos, os autores preconizam políticas públicas orientadas para promover a reversão dos processos de exploração e de mercadorização do trabalho e a sua incrustação nos contextos sociais e institucionais. Essas políticas são consideradas essenciais para quebrar os ciclos de vulnerabilidade e assegurar a “reconquista do tempo vivido” (p. 271). Esta não é uma proposta modesta, particularmente numa Europa onde, como referiu Alain Supiot, “não se formula nenhum princípio de acção que evoque, mesmo longinquamente, um horizonte verdadeiramente humano, de justiça, de solidariedade, de democracia ou de qualidade de vida; somente duas palavras de ordem, vazias de conteúdo axiológico: eficácia e competitividade”.5 Porém, como também lembra Supiot, o neoliberalismo não é “o ‘fim da história’, porque a história não tem fim”.6 Resta questionar, à luz do pensamento de Polanyi: que forças podem hoje ser mobilizadas para proteger a sociedade dos efeitos nocivos dos mercados desregulados, de modo a contrariar as forças que tentam libertar os mercados de todas as regulações?

Referencias

Carmo, Renato Miguel do; D’Avelar, Maria Madalena (2020), A Miséria do Tempo: Vidas suspensas pelo desemprego. Lisboa: Tinta-da-China [ Links ]

Giddens, Anthony (1998), The Third Way. The Renewal of Social Democracy. Cambridge: Polity Press [ Links ]

Supiot, Alain (2012), “Le sommeil dogmatique européen”, Revue française des affaires sociales, 1 [ Links ]

1Por vontade da autora, este texto não segue as regras do Acordo Ortográfico de 1990.

2Carmo, Renato Miguel do; Matias, Ana Rita (2019), Retratos da Precariedade: Quotidianos e aspirações dos trabalhadores jovens. Lisboa: Tinta-da-China.

3Carmo, Renato Miguel do; D’Avelar, Maria Madalena (2020), A Miséria do Tempo: Vidas suspensas pelo desemprego. Lisboa: Tinta-da-China.

4Giddens, Anthony (1998), The Third Way. The Renewal of Social Democracy. Cambridge: Polity Press, p. 63.

5Supiot, Alain (2012), “Le sommeil dogmatique européen”, Revue française des affaires sociales, 1, p. 196

6Supiot, Alain (2019), Le travail n’est pas une marchandise. Contenu et sens du travail au xxie siècle. Paris: Éditions du Collège de France, p. 21.

Recebido: 05 de Janeiro de 2022; Aceito: 15 de Fevereiro de 2022

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