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Revista Crítica de Ciências Sociais

versão On-line ISSN 2182-7435

Revista Crítica de Ciências Sociais  no.129 Coimbra dez. 2022  Epub 31-Dez-2022

https://doi.org/10.4000/rccs.14082 

Recensões

Recensão: Silva, Kelly (org.) (2020), Performing Modernities: Pedagogies and Technologies in the Making of Contemporary Timor-Leste1

Camila Tribess1  , Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais
http://orcid.org/0000-0001-9601-0550

1Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal da Bahia, Salvador, Bahia, Brasil, camila.nusp@gmail.com

Silva, Kelly. (org.) (, 2020. ),, Performing Modernities: Pedagogies and Technologies in the Making of Contemporary Timor-Leste. ., Rio de Janeiro: :, ABA Publications, ,, 336p. pp.


O livro organizado pela professora Kelly Silva é resultado de um trabalho coletivo e de anos de investigação em campo. Publicar trabalhos de investigadoras/es de língua portuguesa e espanhola numa obra em inglês merece destaque - não por absorção acrítica da língua, mas por dar visibilidade a estas pesquisas sobre Timor-Leste que muitas vezes acabam com circulação restrita. Enquanto professora de antropologia na Universidade de Brasília, Silva é uma das intelectuais brasileiras mais conectadas às pesquisas em território timorense, com duas décadas de atuação. A qualidade marcante da obra é a consolidação de um grupo de investigadoras/es comprometidas/os com a pesquisa em diversas áreas das ciências sociais sobre Timor-Leste, resultando nos oito artigos fruto dessas pesquisas. Segundo a autora, “este livro é uma coleção de ensaios derivados de pesquisas que tentam lançar luz sobre como projetos de modernas cosmologias, arranjos sociais e pessoas foram transpostos, produzidos, promulgados e subvertidos em Timor-Leste” (p. 9; tradução própria). Destaco as ideias de transposição e subversão, visto que as/os autoras/es que colaboram na obra dedicam-se de forma pertinente à compreensão de como conceitos e atuações ocidentais, inseridos em território timorense pela profusão de cooperações internacionais, são transformados e passam a ter outros significados sociais no território.

A diversidade de olhares se expressa nos temas abordados. Temos uma expressão vasta de focos de pesquisa, como artigos que analisam e debatem a atuação de instituições de justiça, em grupos de atuação de mulheres ou em empresas de economia local e popular. O comércio e a atuação dos grupos locais, em especial organizados por mulheres, aparece com força nas análises realizadas, bem como os usos da terra e dos elementos sagrados, chamados lulik. O ponto principal da obra é a disputa sobre o que Silva estabelece como os usos da kultura - com a letra capa, como utilizada na língua tétum.2 A kultura se mostra um elemento vivo e ativo nas questões políticas, econômicas e sociais, seja na formação escolar de certo grupo de elite, na subversão dos processos jurídicos e de práticas legais, no enfrentamento coletivo à violência doméstica e no empoderamento feminino, nas dinâmicas de comércio local, no registro e nos usos da terra ou nas disputas em torno do sagrado, e nas ligações estabelecidas a partir das casas sagradas (uma lulik) como locais de conexão espiritual, social e política.

A ideia de kultura não é linear e apresenta-se como termo polissêmico. É um conceito mobilizado por diversos grupos e alterado conforme os interesses de quem o utiliza. Um ponto interessante levantado pelos textos é a relação entre kultura e o processo de modernização, sendo que os elementos considerados tradicionais e da kultura timorense (ou seja, não ocidentais/modernos), são utilizados na busca de proteção e amparo espiritual para que se alcance sucesso nas instituições modernas, seja na escola, na universidade, em cargos públicos ou no campo econômico. Silva aponta para a possibilidade desse uso conjugado entre elementos da kultura e da modernidade ser pensado na perspectiva pós-abissal, ou seja, em que a linha abissal3 teria sido removida ou amenizada, já que ambos - tradição e modernidade - seriam mobilizados pelas pessoas em momentos específicos. Isso acontece tanto na busca de proteção, nas instituições de justiça, nos casos de violência doméstica e de conflitos pela posse da terra, mas também ao considerarem social e legalmente as decisões comunais.

Talvez não possamos ser tão otimistas com a possibilidade de uma construção pós-abissal como Silva aponta, pois é importante perceber como o Estado e as pessoas em lugares de poder apropriam-se de processos de resolução de conflitos tradicionais para manter o statu quo, em especial a atuação da elite masculina baseada em Díli que necessita da aprovação de lideranças do interior do país. Isso fica evidente nos casos supostamente resolvidos nos “tribunais móveis” mas que, como mostra a análise apresentada no segundo capítulo, percebe-se que o que aconteceu foi a retirada das queixas por parte das mulheres, em nome do apaziguamento de conflitos, em detrimento da segurança e dos direitos que as assistem.

Apesar do argumento de que as elites mantêm seu poder por conseguirem circular entre os códigos do Estado moderno e os das tradições da kultura, evidencia-se que as instituições da modernidade, em especial apoiadas por forças estatais e internacionais, colocam-se como prevalentes e hierarquizadas, como modelo a ser alcançado, apesar de concessões feitas a outras epistemologias. Nesse sentido, o professor Antero da Silva aponta no posfácio que, dadas as dinâmicas que o livro analisa, a própria ideia de “Revolução Maubere”, tão cara àquelas/es que lutaram por décadas contra o colonialismo português e o subimperialismo indonésio, talvez esteja ainda por concretizar. Essas contradições não se tratam de vivência pós-abissal, mas da capacidade de quem vivencia dois mundos com saberes e fazeres distintos de estabelecer pontes e mobilizar recursos para gerar autoproteção num local em constante conflito entre diferentes formas de perceber e performar no mundo.

Outro debate que é recorrente no decorrer do livro é a ideia de “pedagogia”, termo utilizado em formas diversas de sua concepção escolar. Na obra, a ideia de pedagogia dialoga com a reflexão mais ampla do termo,4 possibilitando pensar em uma pedagogia jurídico-legal, por exemplo, ou em uma pedagogia econômica. Esse debate, para além do viés antropológico, também expressa consonância com a ideia do professor Antero da Silva,5 acerca da criação de uma Pedagogia Maubere.6 Essas pedagogias plurais também podem traçar conexões com as pedagogias decoloniais,7 tendo em vista que buscam estabelecer processos de ensino-aprendizagem a grupos historicamente excluídos dos sistemas formais de economia, justiça e do próprio sistema escolar. Junto a isso, as pedagogias e tecnologias destacadas nos diversos capítulos do livro podem ser uma pista para se pensar nas formas de se resistir tanto à apropriação da kultura pelos interesses de certos grupos no poder, quanto à imposição de regras e valores alienígenas à maioria das pessoas em Timor-Leste.

Por fim, gostaria de destacar a importância dessa obra com base na imagem da capa, que mostra duas jovens mulheres, em trajes típicos cerimoniais timorenses, manipulando cestos com arroz, num retrato em preto e branco. A fotografia de Lucivania Gosaves expressa de forma poética a discussão estabelecida pelo livro. As duas jovens mulheres representam as novas gerações que transitam entre o acesso contínuo às questões consideradas modernas, dialogam com agentes internacionais ocidentais e, ao mesmo tempo, têm forte ligação com suas mães, tias, avós e atuam nas tradições de seus locais de origem. A imagem evoca a fluidez desse processo, com a manipulação do arroz, principal alimento popular em Timor-Leste, sendo jogado dos cestos, dando essa impressão de movimento. É essa complexidade que o livro traz, com as contradições inerentes do fazer investigação em um lugar que se torna familiar, pelas diversas idas e vindas, ao mesmo tempo que permanece estranho e desafiador para a compreensão, mesmo de investigadoras/es experientes.

Camila Tribess

Revisto por Alina Timóteo

Referência(s):

Silva, Kelly (org.) (2020), Performing Modernities: Pedagogies and Technologies in the Making of Contemporary Timor-Leste. Rio de Janeiro: ABA Publications, 336 pp. [ Links ]

1Versão em acesso aberto disponível em http://www.aba.abant.org.br/files/000157_00134636.pdf. Última consulta a 27.11.2022.

2Cf. Silva, Kelly (2014), “O governo da e pela kultura: complexos locais de governança na formação do Estado em Timor‑Leste”, Revista Crítica de Ciências Sociais, 104, 123‑150. https://doi.org/10.4000/rccs.5727

3Cf. Santos, Boaventura de Sousa (2007), “Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes”, Novos Estudos CEBRAP, 79, 71‑94.

4Freire, Paulo (2013), Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

5Silva, Antero Benedito da (2011), “FRETILIN Popular Education 1973‑1978 and Its Relevance to Timor‑Leste Today”. Tese de Doutoramento em Filosofia, University of New England, Armidale, Australia.

6Conceito de Antero da Silva para compreender a apropriação das ideias de Paulo Freire e Amílcar Cabral para a realidade timorense.

7Walsh, Catherine (org.) (2013), Pedagogías decoloniales: prácticas insurgentes de resistir, (re)existir y (re)vivir. Tomo I. Quito: Ediciones Abya‑Yala.

Recebido: 25 de Maio de 2022; Aceito: 14 de Outubro de 2022

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