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Revista Crítica de Ciências Sociais

versão On-line ISSN 2182-7435

Revista Crítica de Ciências Sociais  no.129 Coimbra dez. 2022  Epub 31-Dez-2022

https://doi.org/10.4000/rccs.14088 

Recensões

Recensão: Paiva, Vasco (2020), O despertar das montanhas. As lutas dos agricultores e povos da montanha antes do 25 de Abril

1 Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra, Coimbra, Portugal, belacastro@ces.uc.pt

Paiva, Vasco. (, 2020. ),, O despertar das montanhas. As lutas dos agricultores e povos da montanha antes do 25 de Abril. ., Coimbra: :, Lápis de Memórias, ,, 166p. pp.


A palavra “baldio” permanece na língua portuguesa como terra inculta, sendo por vezes até sinónimo de terra abandonada, inútil e vão. Esta ideia, de uma terra sem uso, terra de ninguém, está na base da destruição ontológica do que é um baldio, tendo sido estratégica para os processos de expropriação das terras comunitárias em Portugal. É por este motivo que o nome, ou melhor, as origens do nome, pouco importam. Como bem relembra o autor nesta obra, há que recusar partir para o estudo sobre os baldios desde a sua origem etimológica, sendo muito mais frutífero abordar os baldios como terras que resultam da ação coletiva dos e das que nela vivem, e por ela lutam, procurando assim ressignificar a palavra “baldio”.1 Este novo significado, antes mesmo de ser nome, é prática. Prática comum dos e das que da serra e da floresta, historicamente, usufruíram em comunidade.

“Que por ela lutam” é o foco de O despertar das montanhas, uma obra que procura retratar as lutas dos povos da região do Vouga antes da Revolução dos Cravos. Escrita por Vasco Paiva - engenheiro florestal mas, mais importante que isso, militante do Partido Comunista Português (PCP) desde 1969 -, a obra dá conta das diversas lutas e protestos que durante os primeiros anos da década de 1970 e até à revolução abalaram as freguesias de Talhadas (Município de Sever do Vouga), Préstimo (antiga freguesia do Município de Águeda agregada a Macieira de Alcoba em 2013 com a reforma administrativa do mesmo ano), Albergaria das Cabras e Cabreiros (atualmente Cabreiros e Albergaria da Serra, em Arouca), entre muitas outras situadas no Vale do Vouga. Essas lutas despertaram o povo para a ação coletiva e desafiaram o Estado fascista e os seus interesses privados associados.2

Apesar de os baldios ou, mais corretamente, de as terras comunitárias não serem um fenómeno exclusivo a Portugal, estas foram fundamentais para a consolidação do Estado fascista e, após a revolução, para a consolidação do capitalismo português. Não se estranha assim o relato de que junto dos povos se organizassem também militantes do PCP, muitos deles de forma clandestina. Esta foi também a experiência de Vasco Paiva, sendo uma das razões pelas quais esta obra é de interesse para quem procura compreender os baldios e analisar o papel das terras comunitárias na construção do Estado português.

Em Portugal, apesar de os trabalhos académicos sobre baldios tenderem a ser mais pontuais do que disciplinares e a se inscreverem na temática de investigação sobre “comuns”, e menos como temática em si, existem na nossa academia importantes autores e autoras, cujos trabalhos contribuem de forma substantiva para o entendimento das terras comunitárias. Destaco, por exemplo, os trabalhos de João Gralheiro, António Bica, João Arriscado Nunes e Rui Feijó, João Antunes Estêvão, Pedro Hespanha, Rita Serra e, mais recentes, os de Irina Skulska. Sem dúvida, o trabalho de Vasco Paiva junta-se a estes na composição de uma bibliografia que deve ser a base de qualquer futuro trabalho sobre baldios.

Alvorando-me da obra e focando-me no autor, há que refletir sobre o caráter documental e autobiográfico da narrativa que, ao longo dos distintos capítulos, nunca se sobrepõe à análise cuidada das condições materiais objetivas que estão na base da revolta. Quero com isto dizer que a maior força da análise de Vasco Paiva reside no facto de o autor ter sido mais do que um engenheiro florestal envolvido nas lutas. Tal como ele próprio reconhece, o saber técnico e jurídico desempenhou um papel fundamental nos processos de revolta e de contestação, mas foi o espírito de militância que fez e marcou a diferença - apesar de que para o autor, “o apoio técnico ou político era apenas isso, apoio” (p. 10). É, pois, neste relato humilde e reflexivo que se vê que “nada se faz sem a vontade do povo” (p. 9), uma importante conclusão da obra que, para Vasco Paiva e outros intervenientes mencionados ao longo da mesma, foi, e continua a ser, uma forma de estar. Esta importante conclusão serve também de lembrete aos académicos e académicas de hoje: todo o saber é útil quando comprometido com o povo e quando colocamos as nossas redes ao serviço das reivindicações do mesmo.

Olhando para a estrutura da obra, O despertar das montanhas pode ser entendido como estando dividido em três partes. Na primeira, Vasco Paiva introduz-nos brevemente à problemática dos povos da zona do Vouga e ao papel que a intervenção clandestina do PCP desempenhou ao animar os protestos, enfatizando, no entanto, que estes se deveram sempre aos próprios povos e por eles foram dirigidos. Na segunda parte, dividida em sete capítulos, o autor relata-nos a luta pelos baldios de Talhadas, Préstimo, Albergaria das Cabras e Cabreiros, Candal, entre outras freguesias, relembrando as ações repressivas dos Serviços Florestais e do Governo fascista, e identificando as motivações da revolta, as estratégias da luta e principais intervenientes - uma identificação que apenas em liberdade é possível realizar. Seguem-lhe relatos mais curtos das lutas de produtores de leite, de gado, de vinho, de batata e de aves, bem como um relato sobre o incêndio que em 1972 abalou a região. A segunda parte encerra-se com uma descrição daquela que foi a estratégia que animou a contestação dos povos das montanhas. A terceira parte, de caráter documental e organizada em anexos, procura conduzir-nos cronologicamente ao longo dos acontecimentos e transcreve os principais textos produzidos pelos povos em luta - textos estes animados por publicações como o jornal A Terra e o boletim A Voz da Montanha.

Sendo uma obra recomendável tanto para a academia como para fora dela, O despertar das montanhas aparece como um importante contributo político e histórico sobre os baldios e seus compartes, contribuindo para popularizar as nossas terras comunitárias. Acresce-se a este contributo a virtude de ser um relato honesto sobre o papel que o PCP procurou ter na organização dos protestos e na resistência antifascista. É assim um contributo importantíssimo para o tempo em que vivemos, tempo esse contaminado pela amnésia provocada por aqueles e aquelas que se revestem dos “usos e costumes” para impor uma nova repressão. Só que tal como “nada de faz sem a vontade do povo”, “Há sempre alguém que resiste / Há sempre alguém que diz não”.3

A edição é da Lápis de Memórias, um pequeno projeto nascido na cidade de Coimbra em 2011 que realiza um trabalho “Com rigor e exigência, mas também com um sentido - o traçado em Abril de 1974”.4

Irina Castro

Revisto por Alina Timóteo

Referência(s):

Paiva, Vasco (2020), O despertar das montanhas. As lutas dos agricultores e povos da montanha antes do 25 de Abril. Coimbra: Lápis de Memórias, 166 pp. [ Links ]

1Em 2019, no âmbito do projeto editorial do Dicionário Alice, Rita Serra propõe um ressignificar de “baldio”, tendo em conta a sua complexidade histórica, sociotécnica e jurídica. Cf. Serra, Rita (2019), “Baldio”, Dicionário Alice. Consultado a 27.11.2022, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/?id=23838&pag=23918&id_lingua=1&entry=24610.

2Exemplos destes interesses são a empresa Martins & Rebello, atualmente Indulac - Indústrias Lácteas, S.A., e a central de compras Madeiper, atualmente inativa.

3Poema “Trova do Vento que Passa”, de Manuel Alegre escrito em 1963. Consultado a 27.11.2022, em http://www.manuelalegre.com/301000/1/003028,000014/index.htm.

4Citação retirada do perfil de Facebook de “Lápis de Memórias - Editora e Livraria, Lda”. Consultado a 27.11.2022, em https://www.facebook.com/lapisdmemorias/about_details.

Recebido: 14 de Maio de 2022; Aceito: 14 de Outubro de 2022

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