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Revista Crítica de Ciências Sociais

versão On-line ISSN 2182-7435

Revista Crítica de Ciências Sociais  no.130 Coimbra maio 2023  Epub 31-Maio-2023

https://doi.org/10.4000/rccs.14451 

Dossier

Capitalismo (semi)periférico: crises e alternativas. Uma introdução

José Reis1  2  , Concetualização, Redação do rascunho original, Redação - revisão e edição
http://orcid.org/0000-0003-4640-568X

João Rodrigues1  2  , Concetualização, Redação do rascunho original, Redação - revisão e edição
http://orcid.org/0000-0001-7595-3162

Maria Raquel Freire1  2  , Concetualização, Redação do rascunho original, Redação - revisão e edição
http://orcid.org/0000-0003-2952-6017

1 Faculdade de Economia, Universidade de Coimbra, Coimbra, Portugal, jreis@fe.uc.pt, rfreire@fe.uc.pt

2 Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra, Coimbra, Portugal, joaorodrigues@ces.uc.pt


Este dossier foi organizado pela coordenação da linha temática “Capitalismo (semi)periférico: crises e alternativas” do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra. Esta é, como se sabe, uma linha comprometida com, entre outras preocupações, a compreensão das estruturas materiais e institucionais da economia, das condições multidimensionais e multiescalares da democracia, das dinâmicas internacionais de periferização, das relações entre Estado e mercados - uma perspetiva que julga saber que a governação contemporânea resulta de uma relação tensa entre uma pluralidade de modos de coordenação da ação individual e coletiva nos quais as instituições contam e representam consolidações das formas de pensar, agir e organizar as interações em sociedade.

Por estas razões, o nosso primeiro objeto de estudo são os capitalismos contemporâneos, num momento em que as dinâmicas conflituais que os atravessam ganharam especial intensidade. Na generalidade, o capitalismo parece ter-se desfeito dos freios e contrapesos que, noutras circunstâncias (aliás sempre muito delimitadas do ponto de vista temporal e espacial), o comprometeram com uma ordem, uma ordem relacional, que simultaneamente salvaguardou os interesses fundamentais dos grupos dominantes (a propriedade, a acumulação e o uso do trabalho alheio), acolheu reivindicações e processos de inclusão e permitiu uma certa aceitação por parte dos que se encontram do outro lado do espetro social e político.

No capitalismo tem-se vindo a deitar fora tudo o que permitiu superar a sua fraqueza congénita (pois reduzido à sua lógica, aos mercados e ao lucro, não funciona). São os apoios que colhe fora de si e nas instituições que lhe têm permitido ser tão longo e persistente.1 Por isso, incrusta-se na sociedade, através das leis, da criação de condições de inclusão e de sociabilidade, da redistribuição e da provisão pública. A isto se deve juntar a construção pela política e pelo direito de instituições que configuraram e reconfiguraram os mercados, na sua variedade e mutabilidade. Estes jamais podiam ser concebidos como a ordem natural que os individualistas presumem que possam ser.

Devemos saber da história que o capitalismo nunca pôde funcionar sozinho. Mas hoje há poderes que propõem, ao mesmo tempo, uma economia de mercado e uma sociedade de mercado, ampliando da forma mais inusitada a sua ancestral fraqueza congénita, precipitando a vida coletiva para insustentabilidades diversas, como se o capitalismo pudesse funcionar em si e por si. Esta distopia não se interessa pela complexidade das arquiteturas institucionais que foram dando enquadramento ao sistema, nem pelos termos em que assentaram as suas evoluções mais sólidas, ou mesmo por aquilo de que depende a relação do indivíduo com o trabalho, com a técnica, com o tempo e com a natureza.

Relembrando um clássico do velho institucionalismo, John Commons, a ação coletiva depende sempre, em conjunto, do “controlo, da libertação e da expansão da ação individual”.2 Dispensando as dissemelhanças em que um sistema deve assentar, geram-se com isso as instabilidades de que nos devemos salvaguardar. Prescindindo de contramovimentos de proteção, somos enredados numa espiral de crises, com mais desordens do que ordens.

Isso acontece pela ação e pela inação. Basta a primeira para que se desenhe um quadro turbulento. Sem alternativas sistémicas, sem contrapontos que suscitem o medo da superação do sistema assinalado por Hobsbawm,3 sem aquilo em que assentam as formas de economia mista, sem a complexidade política que criava alternativas, mesmo que sejam apenas dentro da ordem prevalecente, sem as próprias dimensões utópicas das diferentes correntes de pensamento, descuidada tanta coisa, o caminho fica aberto para um maior domínio de interesses circunscritos e de lógicas cada vez mais delimitadas.4 Alterou-se a estrutura patrimonial da economia, as finanças passaram a ser concebidas como “indústria”, deu-se a hipertrofia da esfera financeira e prevalece a engenharia financeira, ficando o movimento da economia global inteiramente sujeito ao ciclo financeiro, à alavanca de endividamento e da apreciação e depreciação dos ativos financeiros.

Os ganhos de produtividade, que noutras épocas serviram para desenvolver políticas redistributivas, servem agora para concentrar e centralizar a riqueza criada. Onde antes estava o nexo salário-procura, está agora o nexo crédito-procura. A caixa de ferramentas keynesiana, que assegurou uma certa ordem, apoiada num contrato social, agora quebrada, parece arrumada e resta ao capitalismo “comprar tempo”, ao mesmo tempo que acentua desordens, como tem assinalado Wolfgang Streeck.5

Por tudo isto, os propósitos que animam a linha temática “Capitalismo (semi)periférico: crises e alternativas” do CES - uma economia sustentável do ponto de vista social, ecológico, territorial e da segurança da vida; a defesa das condições multidimensionais e multiescalares da democracia e da esfera pública; e as formas participadas e inclusivas de organização da sociedade - constituem-se num programa de investigação que cresce paredes-meias com a perspetiva crítica a que a análise e a investigação nos obrigam.

Interessa-nos discutir o capitalismo em geral e a variedade que as economias periféricas do sul da Europa representam em particular. Interessa-nos também o que nelas ocorre em circunstâncias precisas, definidas, por exemplo, pelos processos de integração, pelo que a integração económica e monetária significa e pelo que, nesse contexto, vai ocorrendo em vista da fragmentação e desorganização das relações laborais, das dinâmicas de desigualdade ou de estagnação.

Portugal é uma economia periférica europeia, que passou de um processo longo de convergência a um processo de criação de novos laços de dependência. A financeirização do capitalismo em Portugal, desde os anos 1990, traduziu-se num aumento significativo do endividamento externo e num processo de baixo crescimento ou mesmo quase estagnação económica já neste milénio. Ao mesmo tempo, sem instrumentos de política significativos, instalou-se uma visão fatalista em relação à trajetória medíocre de um capitalismo enredado num nexo finança-construção-turismo estruturalmente incapaz de gerar ganhos de produtividade numa sociedade muito desigual e causticada pela compressão da ação pública.

Neste contexto, os artigos que dão corpo a este dossier refletem uma forma de pensar criticamente o capitalismo enquanto sistema histórico com peculiaridades institucionais, marcadas por trajetórias nacionais e processos de integração internacional.

Abrimos com uma análise histórico-institucional da economia política dos países da Europa do Sul, com especial relevo para a Itália. Annamaria Simonazzi, uma das melhores intérpretes da escola europeia da dependência, sublinha os mecanismos de divergência e os círculos viciosos que a integração europeia, com uma matriz neoliberal desde a década de 1980, tem favorecido. Com as devidas diferenças, países como Portugal e Itália têm também vários aspetos em comum, tendo sido colocados numa irresistível estrutura de constrangimentos da qual são, aparentemente, demasiado fracos para sair e demasiado fracos para nela permanecer.

José Reis, na tradição institucionalista da economia política, prolonga o seu trabalho sobre a economia portuguesa enquanto periferia persistente, analisando os cinco principais nós desta formação - da demografia ao endividamento externo -, mas também fazendo propostas para os desatar.

Alexandre Abreu coloca o enfoque na evolução das várias formas de desigualdade socioeconómica, da sua medição à sua evolução, passando pelos mecanismos de economia política que explicam os padrões detetados. Sublinha de que modo um país desigual como Portugal conseguiu, sobretudo através do Estado social redistributivo que persiste, conter e até reverter parcialmente o crescimento registado, nas décadas de 1980 e 1990, das desigualdades. Isto permite sublinhar que, por muito pequena que seja a margem de manobra, o Estado nacional continua a ter relevância em algumas dinâmicas socioeconómicas, mesmo na periferia europeia.

Finalmente, na tradição da economia política comparada, Luís Guerreiro e Paulo Marques analisam a regulação do capitalismo das plataformas digitais no setor do transporte de passageiros em Portugal e em Espanha. O capitalismo é sempre um sistema de regras em evolução e coloca-se a questão de perceber que interesses são protegidos e que interesses ficam expostos perante desenvolvimentos tecnológicos que podem resultar em formas acrescidas de controlo patronal dos trabalhadores. É sempre de conflito social que falamos.

Vistos conjuntamente, estes artigos dão-nos então a conhecer dinâmicas institucionais em múltiplas dimensões e escalas, partindo de análises de circunstâncias concretas e não de ficções naturalizadas em mercados. Quando se assume que a economia é política, nenhum arranjo pode deixar de ser escrutinado.

Referências bibliográficas

Commons, John R. (1996), “Institutional Economics”, in Malcolm Rutherford; Warren Samuels (orgs.), John R. Commons: Selected Essays . Volumes 1 & 2. Cornwall: Routledge, 428-436 [ed. orig. 1931]. [ Links ]

Hobsbawm, Eric (1994), Age of Extremes - The Short Twentieth Century (1914-1991). London: Michael Joseph. [ Links ]

Reis, José (2022), “Por que é que o capitalismo tem sido tão longo e persistente?”, Ikara. Revista de Geografías Iberoamericanas, 2. [ Links ]

Rodrigues, João (2022), O neoliberalismo não é um slogan. Lisboa: Tinta da China. [ Links ]

Streeck, Wolfgang (2013), Tempo comprado - A crise adiada do capitalismo democrático. Coimbra: Actual. Tradução de Marian Toldy e Teresa Toldy. [ Links ]

1Cf. José Reis (2022), “Por que é que o capitalismo tem sido tão longo e persistente?”, Ikara. Revista de Geografías Iberoamericanas, 2. https://doi.org/10.18239/Ikara.3209, onde se desenvolve uma perspetiva convergente com a que aqui se refere e onde se paga tributo a duas inspirações fundamentais: Karl Polanyi e Albert Hirschman.

2 Commons, John R. (1996), “Institutional Economics”, in Malcolm Rutherford; Warren Samuels (orgs.), John R. Commons: Selected Essays. Volumes 1 & 2. Cornwall: Routledge, p. 443 [ed. orig. 1931]. Tradução dos autores.

3 Hobsbawm, Eric (1994), Age of Extremes - The Short Twentieth Century (1914-1991). London: Michael Joseph.

4Tudo isto é discutido em João Rodrigues (2022), O neoliberalismo não é um slogan. Lisboa: Tinta da China.

5 Streeck, Wolfgang (2013), Tempo comprado - A crise adiada do capitalismo democrático. Coimbra: Actual. Tradução de Marian Toldy e Teresa Toldy.

Recebido: 14 de Abril de 2022; Aceito: 21 de Abril de 2023

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