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Revista Crítica de Ciências Sociais

versión On-line ISSN 2182-7435

Revista Crítica de Ciências Sociais  no.132 Coimbra dic. 2023  Epub 31-Dic-2023

https://doi.org/10.4000/rccs.15239 

Recensões

Recensão: Mineiro, João (2022), Fazer política: uma etnografia da Assembleia da República

1 Doutorando na Faculdade de Economia, Universidade de Coimbra, Coimbra, Portugal, jaime.roque99@gmail.com

Mineiro, João. (, 2022. ),, Fazer política: uma etnografia da Assembleia da República. ., Porto: :, Edições Afrontamento, ,, 316 ppp. .


A política é um fenómeno cujo sentido vai muito além dos atos oficiais. Um dos desafios centrais das ciências sociais é justamente desnaturalizar os mecanismos que estruturam as práticas políticas e romper com as autorrepresentações e mediatização desta esfera de atividade. Deste ponto de vista, os parlamentos constituem um dos objetos de estudo que melhor ilustram os eixos de articulação entre a representação política e outros campos de poder social. No entanto, o seu potencial analítico tem sido relativamente negligenciado pela descrição mais ou menos formal de programas ideológicos, discursos oficiais e comportamentos eleitorais.1

Publicada em 2022 pelas Edições Afrontamento, a obra Fazer política: uma etnografia da Assembleia da República de João Mineiro procura analisar o processo quotidiano de institucionalização da política, ou seja, a “construção de uma ideia particular da política enquanto prática setorial e relativamente especializada, estruturalmente articulada com processos de diferenciação e desigualdade social e de poder” (p. 22). O livro resulta de uma tese de doutoramento em antropologia e representa mais uma etapa no percurso de um investigador que se tem dedicado ao estudo dos fenómenos políticos, nomeadamente sobre populismo e media num quadro de mercantilização e precarização do jornalismo,2 ou ainda sobre a extrema-direita contemporânea,3 entre outras.

Esta nova investigação organiza-se em 11 capítulos, sendo que os primeiros quatro clarificam as suas premissas teórico-metodológicas. No primeiro capítulo, o autor argumenta que a política é uma “ideia polissémica, posicional e relacional” (p. 46), e que os parlamentos são um espaço social heuristicamente útil para compreender como, em determinados contextos históricos, se materializam diferentes relações de forças sociais. No segundo, discutem-se as gramáticas teóricas mobilizadas para a operacionalização desta perspetiva, entre as quais se destacam os recursos conceptuais de Pierre Bourdieu - campo, capital, habitus e poder simbólico. No terceiro, a etnografia é apresentada como a estratégia metodológica mais adequada para a condução da investigação, composta por observação participante, entrevistas, conversas etnográficas, jobshadowing, retratos biográficos, análise de conteúdo e de media. Os vários regimes políticos do Portugal contemporâneo são discutidos no quarto capítulo de forma a sublinhar que estes estão também subjacentes às disputas sobre o “entendimento da política e sobre a definição dos protagonistas socialmente legitimados para a exercer” (p. 23). O autor aponta, no entanto, que pouco ainda se conhece sobre a circunscrição social das atividades políticas e sobre o quotidiano na vida parlamentar no espaço social português.

É esta a principal lacuna que o autor procura colmatar ao longo dos restantes sete capítulos, focando-se nos discursos, práticas e relações dos vários atores parlamentares. No quinto capítulo recorre a retratos biográficos dos deputados com vista a compreender como “origens e pertenças de classes distintas potenciam ou inibem a possibilidade de acesso” ao campo parlamentar (p. 131). Estas possibilidades decorrem, segundo o autor, da concentração de capital político, a qual confere instrumentos necessários à participação política como “um corpus de saberes, uma linguagem precisa e distintiva, uma rede de relações e um sentido prático” (ibidem) de um campo estruturado por lógicas hierárquicas, burocráticas e sociotécnicas.

Caraterizada a entrada no parlamento, o sexto capítulo analisa “o processo de adaptação e aprendizagem de quem é eleito” (p. 133) do ponto de vista das suas intervenções no Plenário “enquanto espaço simultaneamente ritual e performativo” (ibidem) que define “papéis, formas de expressão e ação simbolicamente significativas” (p. 145), institucionalizando e legitimando assim o conflito político e a representação política. Este foco é ampliado ao longo dos três capítulos seguintes, nos quais é detalhada a importância de espaços como as Comissões Parlamentares, os Grupos de Trabalho e outros lugares de sociabilidade informal que se distinguem pelo seu papel de relações de bastidores (capítulo sete) e pela forma como as posições ocupadas pelos deputados nesta rede de hierarquias formais e informais - que se traduzem em mais ou menos autoridade e visibilidade mediática - condicionam a sua autonomia face a outros conjuntos de atores parlamentares (capítulo oito). Neste contexto, o autor analisa ainda a semana de trabalho de dois deputados e de uma deputada, com vista a descrever a diversidade de tarefas a que se dedicam e como através destas se adaptam a diferentes papéis sociais - tanto internos como externos ao espaço físico da Assembleia -, os quais implicam também uma articulação de diferentes tipos de capitais e conhecimentos organizacionais, adquiridos e consolidados através de uma trajetória social particular e da sua participação em diversas comunidades de práticas (capítulo nove).

Apesar de a atenção mediática se encontrar habitualmente centrada nos deputados, o quotidiano parlamentar é também marcado por outros conjuntos de atores. No capítulo 10, Mineiro destaca o papel dos funcionários parlamentares, revelando o quão fundamentais são para a construção quotidiana da ordem sociotécnica da instituição, nomeadamente através da transmissão da memória, da gestão do tempo parlamentar e da preparação da performance dos deputados. O capítulo 11 centra-se, por sua vez, nos profissionais de comunicação, visto que os deputados e os seus assessores procuram construir “mensagens, polémicas e imagens capazes de ser absorvidas pela comunicação social” (p. 274) de forma a enquadrar e legitimar as suas práticas. Esta relação entre o campo mediático e o campo político processa-se, segundo o autor, através de uma lógica de competição permanente pelo acesso à informação que decorre das condições estruturais do jornalismo atual, nomeadamente “redações com menos profissionais, poucos recursos para a investigação, luta por audiências e publicidade que crescentemente ‘foge’ para as redes sociais, e sobretudo a precariedade dos jornalistas […] que é simultânea a uma hipercomunicação dos partidos e dos deputados” (p. 291).

De forma sintética, a obra de Mineiro distingue-se pelo campo de possibilidades teórico-metodológicas que abre para a investigação em torno dos fenómenos políticos contemporâneos. Não se limitando a reproduzir os princípios politológicos da oferta e da procura, o autor demonstra que a política pode ser entendida como uma forma de distinção social institucionalmente organizada que cruza “trajetórias políticas multiposicionais” com “diferentes escalas, contextos e redes de participação e representação política” (p. 124). Desta forma, o capital político não é apenas uma espécie de capital simbólico - como apontou Bourdieu -,4 mas sim um capital compósito que decorre da concentração de recursos simultaneamente económicos, culturais, sociais e simbólicos. Esta é uma observação relevante dada a secundarização das conexões estruturais entre política e economia em parte substancial da teoria social contemporânea.

Numa conjuntura marcada por transformações políticas que decorrem da crise das economias de mercado - como o declínio das funções representativas dos partidos ou o crescimento dos chamados partidos antissistema -,5 este é, no entanto, um caminho analítico que acaba também por ser pouco explorado pelo próprio autor. Dado que o período temporal do seu trabalho de campo - entre outubro de 2015 e julho de 2018 - coincide com a solução governativa apoiada à esquerda, poderia também ter sido pensado o que significa “fazer política” neste contexto de fragmentação partidária e polarização política. Não obstante, o autor contribui com um esforço valioso para o desbloqueamento do potencial analítico dos estudos parlamentares.

Referências bibliográficas

Brichzin, Jenni, Krichewsky, Damien; Ringel, Leopold; Schank, Jan (2020), “Sociology of Parliaments: New Trajectories”, in Cyril Benoît; Olivier Rozenberg (orgs.), Handbook of Parliamentary Studies: Interdisciplinary Approaches to Legislatures. Cheltenham, UK/Northampton, MA: Edward Elgar Publishing, 408-425. [ Links ]

Mineiro, João (2018), “O tempo, as redes e o espetáculo do populismo”, in Cecília Honório (org.), O espectro dos populismos: ensaios políticos e historiográficos. Lisboa: Tinta-da-China, 171-201. [ Links ]

Honório, Cecília; Mineiro, João (orgs.) (2021), Novas e velhas extremas-direitas. Lisboa: Edições Parsifal. [ Links ]

Bourdieu, Pierre (1989), “A representação política. Elementos para uma teoria do campo político”, in Pierre Bourdieu, O poder simbólico. Lisboa: Difel, 163-202. Tradução de Fernando Tomaz. [ Links ]

1Cf. Brichzin, Jenni, Krichewsky, Damien; Ringel, Leopold; Schank, Jan (2020). “Sociology of Parliaments: New Trajectories”, in Cyril Benoît; Olivier Rozenberg (orgs.), Handbook of Parliamentary Studies: Interdisciplinary Approaches to Legislatures. Cheltenham, UK/Northampton, MA: Edward Elgar Publishing, 408-425.

2Cf. Mineiro, João (2018), “O tempo, as redes e o espetáculo do populismo”, in Cecília Honório (org.), O espectro dos populismos: ensaios políticos e historiográficos. Lisboa: Tinta-da-China, 171-201.

3Cf. Honório, Cecília; Mineiro, João (orgs.) (2021), Novas e velhas extremas-direitas. Lisboa: Edições Parsifal.

4Cf. Bourdieu, Pierre (1989), “A representação política. Elementos para uma teoria do campo político”, in Pierre Bourdieu, O poder simbólico. Lisboa: Difel, 163-202. Tradução de Fernando Tomaz.

5Cf. Hopkin, Jonathan (2020), Anti-System Politics: The Crisis of Market Liberalism in Rich Democracies. New York: Oxford University Press.

Recebido: 28 de Julho de 2023; Aceito: 16 de Novembro de 2023

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