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Sisyphus - Journal of Education

versão impressa ISSN 2182-8474versão On-line ISSN 2182-9640

Sisyphus vol.10 no.3 Lisboa fev. 2023  Epub 16-Nov-2022

https://doi.org/10.25749/sis.27545 

Artigos

Por uma Ciência do Humano: A Linguagem de Computação em uma Perspectiva Inclusiva

For a Science of the Human: Computer Language in an Inclusive Perspective

Por una Ciencia de lo Humano: El Lenguaje Informático en una Perspectiva Inclusiva

Mariana Corrêa Pitanga de Oliveirai 
http://orcid.org/0000-0002-7965-4095

Márcia Denise Pletschii 
http://orcid.org/0000-0001-5906-0487

iDepartamento Educação e Sociedade, Instituto Multidisciplinar, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Brasil

iiDepartamento Educação e Sociedade, Instituto Multidiscilinar, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Brasil


Resumo

Ao refletir sobre a tecnologia como possibilidade de inovação pedagógica e estratégia para a acessibilidade curricular, consideramos as singularidades dos sujeitos e a pluralidade presente em sala de aula. Neste artigo, apresentamos resultados de uma pesquisa que analisou os processos de interação/colaboração entre crianças com e sem deficiência e delas com a linguagem de computação em uma perspectiva inclusiva. Trata-se de uma pesquisa qualitativa ancorada na abordagem histórico-cultural. Para a construção das cenas/dos episódios analíticos, utilizamos como procedimento de registro de dados a observação participante, relatórios de acompanhamento das atividades e suas filmagens. Os resultados evidenciam, entre outros aspectos, a potência da linguagem de computação na constituição de signos por meio das possibilidades de interação com os sujeitos e deles com seus pares e que as vivências, construídas no processo de colaboração entre os participantes da pesquisa, atuaram como fonte de aprendizagem e desenvolvimento para todos.

Palavras-chave: educação especial; inclusão educacional; tecnologia; linguagem de computação

Abstract

When reflecting on technology as a possibility of pedagogical innovation and strategy for curriculum accessibility, we consider the singularities of the subjects and the plurality present in the classroom. In this paper, we present results of a research that analyzed interaction/collaboration processes among children with and without disabilities and their computer language from an inclusive perspective. It is a qualitative research study anchored in the historical-cultural approach. For the construction of scenes/analytical episodes, we registered data through participating observation, monitoring reports of the activities and their filming. The results show, among other aspects, the power of computer language in the constitution of signs through the possibilities of interaction with the subjects and their peers and that the experiences, built in the process of collaboration among the research participants, act as a source of learning and development for all.

Key words: special education; educational inclusion; technology; computer language

Resumen

Al reflexionar sobre la tecnología como posibilidad de innovación pedagógica y estrategia para la accesibilidad curricular, consideramos las singularidades de los sujetos y la pluralidad presente en el aula. En este artículo presentamos los resultados de una investigación que analizó los procesos de interacción/colaboración entre niños con y sin discapacidad y entre estos y el lenguaje informático desde una perspectiva inclusiva. Es una investigación cualitativa anclada en el enfoque histórico-cultural. Para la construcción de las escenas/episodios analíticos se utilizó como procedimiento de registro de datos la observación participante, los informes de seguimiento de las actividades y su filmación. Los resultados muestran, entre otros aspectos, el poder del lenguaje informático en la constitución de signos a través de las posibilidades de interacción con los sujetos y con sus pares y que las experiencias, construidas en el proceso de colaboración entre los participantes, actuaron como fuente de aprendizaje y desarrollo para todos.

Palabras clave: educación especial; inclusión educativa; tecnología; lenguaje de computación

O funcionamento humano vinculado a alguma deficiência depende das condições concretas oferecidas pelo grupo social, que podem ser adequadas ou empobrecidas. Não é o déficit em si que traça o destino da criança. Esse “destino” é construído pelo modo como a deficiência é significada, pelas formas de cuidado e educação recebidas pela criança, enfim, pelas experiências que lhe são propiciadas.

GOES, 2002, p. 99.

Refletindo sobre a cultura computacional e a aprendizagem colaborativa em uma visão de educação desenvolvida com e na diversidade humana e social, nos deparamos com a defesa da tecnologia enquanto estratégia para a acessibilidade educacional, principalmente no que se refere ao currículo. Sob estes aspectos, consideramos necessário argumentar sobre os usos de instrumentos tecnológicos e suas possibilidades de inovação pedagógica sem desprezar as singularidades dos sujeitos e a pluralidade presente em sala de aula.

Em outras palavras, ao compreender a tecnologia não como uma ferramenta apenas e sim como objeto cultural no qual as pessoas se apropriam da linguagem e dão um significado para ela, a tecnologia, aqui representada pela linguagem de computação, passou a ser vista como instrumento mediador. Isto é, a forma de apropriar-se do conhecimento se modifica por meio dela ao mesmo tempo que é mediada por ela. Vigotski (2004) nos ajudou a formular essa compreensão ao sinalizar que:

No ato instrumental atuam as propriedades psicológicas do fenômeno externo, o estímulo se transforma em instrumento técnico graças a sua utilização como meio de influência na psique e no comportamento. Por isso, todo instrumento é necessariamente um estímulo: se não o fosse, ou seja, se não gozasse da faculdade de influir no comportamento, não poderia ser um instrumento. (p. 98)

Se o homem é capaz de transformar a natureza de acordo com as suas vontades e objetivos, ele não passa ileso a esse processo. Então, assim como instrumentos alteram a estrutura do trabalho, os signos alteram a estrutura psicológica do homem. São atos mediados. Nessa perspectiva Veer e Valsiner com base em Vigotski sinalizam que “a inclusão de um signo em um ou outro processo comportamental (...) reforma toda a estrutura da operação psicológica, assim como a inclusão de um instrumento reforma toda a estrutura de uma operação de trabalho” (2009, p. 241).

Dessa maneira, ao defender essa proposta, trabalhamos com a ideia de tecnologia como algo que modifica a subjetividade do homem. A forma de apropriar-se do conhecimento se modifica por meio dela ao mesmo tempo que pode ser mediada por ela. Isto é, a cultura muda a relação do homem com a tecnologia.

Sabendo que tecnologia é uma área muito abrangente, neste trabalho restringimos a análise para a linguagem de computação, visando compreender como essas ferramentas de linguagem se constituem em elementos mediadores. Toda linguagem de computação, por mais técnica que ela seja, é semiótica. São traduzidas a algum tipo de informação e tem valor semiótico. Trata-se então de um elemento que pode representar outro, capaz de provocar uma reação ou resposta. Um estímulo-meio e um estímulo-objeto combinados em um só ato, o ato instrumental. Aqui defende-se a ideia da linguagem de computação como um auxílio mnemônico (X), um instrumento capaz de mediar a ligação entre A e B, tornando-se signo a partir do uso que cada sujeito faz dela. Com isso, torna-se uma linguagem capaz de afetar o desenvolvimento das funções psicológicas superiores (memória, imaginação, atenção e outros) dos sujeitos.

Sendo assim, vale ressaltar que tecnologias não são signos, são ferramentas. Mas tornam-se signos no momento em que o sujeito atribui a ela um objeto específico semiótico. Isto é, o sujeito ao interagir com a linguagem de computação por meio de atividades, sejam elas coletivas ou individuais e interpretá-las, nos permite compreender o papel da linguagem computacional na semiose. A linguagem de computação se constitui em signos por meio das possibilidades de interação com o sujeito. Ou seja, a significação que a criança dá à linguagem de computação é que faz dela um signo naquele determinado momento/tempo. Ainda sobre a linguagem de computação e seus caminhos de aprendizagem, gostaríamos de destacar que esta não deve ser vista como uma linguagem em si mesma, mas aquilo que o sujeito faz dela naquela situação.

Nesse sentido, o artigo apresenta os resultados de uma investigação de doutorado (Oliveira, 2020) que teve como campo de análise o projeto ‘Computação Para Todos’ com a participação de crianças com e sem deficiência. Nosso foco será analisar os processos de interação/colaboração entre os sujeitos participantes do projeto e deles com a linguagem de computação em uma perspectiva inclusiva.

Desenho Metodológico e Procedimentos Éticos

Este artigo1 apresenta resultados de uma tese de doutorado realizada durante o projeto interdisciplinar ‘Computação para Todos’, que desenvolveu uma metodologia para o ensino de Pensamento Computacional para 10 crianças com e sem deficiência entre 10 e 12 anos de idade. Participaram do projeto uma criança com deficiência intelectual (Cecília), uma com Transtorno do Espectro do Autismo (Francisco) e uma com indicadores de Superdotação/altas habilidades (Lucas). A pesquisa foi aprovada no comitê de ética sob o protocolo nº 466/12.

As ações foram desenvolvidas em duas fases. A primeira fase consistiu na seleção, organização e criação dos conteúdos que seriam utilizados, bem como a preparação dos planos de aula para os participantes do projeto e encontros para formação da equipe nos tópicos de Ciência da Computação. A segunda fase foi o desenvolvimento das aulas propriamente dito, que totalizaram 14 encontros semanais de duas horas cada, realizadas no laboratório de informática da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Nosso foco aqui será analisar somente as atividades desenvolvidas nos 4 meses iniciais do projeto com uso da Computação Desplugada baseadas em conceitos matemáticos, tais como números binários e ordenação - sem uso do computador, com atividades lúdicas (Adams & McKenzie, 2011). A Computação Desplugada foi utilizada para desconstruir o mito de que Ciência da Computação está relacionada somente à utilização de computadores. No final de cada aula eram apresentadas as relações entre o que foi feito nos exercícios e o funcionamento do computador.

Importante mencionar que as atividades eram acessíveis e quando necessário eram realizadas diferenciações pedagógicas nas estratégias de ensino, seguindo os referenciais do desenho universal da aprendizagem (DUA)2. Em outros termos, a proposta era oferecer o mesmo conteúdo para todos, mas diferenciando os caminhos e estratégias de acordo com as especificidades de cada aluno, fazendo os ajustes necessários na metodologia de ensino. Cabe destacar que nas aulas trabalhamos com alguns conceitos da Ciência da Computação que possuem diálogo com os conteúdos trabalhados no currículo escolar. O objetivo era saber se ao ter contato e interagir com essa linguagem e suas ferramentas hipertextuais os sujeitos desenvolveram também processos psicológicos superiores como memória, imaginação, atenção e criatividade.

A partir da abordagem histórico-cultural, utilizou-se os seguintes procedimentos de registro dos dados: 1) observação participante com registros em diário de campo; 2) relatório de acompanhamento das atividades (roteiro de observação sistematizado); e 3) análise de imagens de vídeo (filmagem), pautada na microgênese. Para a análise dos dados optou-se pela análise microgenética (microgênese), proposta por Góes (2000) em concordância com o estudo do método utilizado por Vigotski (2007) que consiste em “analisar processos e não objetos”; “explicação versus descrição” e; “o problema do comportamento fossilizado” (p. 64). Essa opção metodológica foi escolhida por acreditarmos que a mesma se constitui enquanto possibilidade de investigação ao nortear a coleta dos dados de forma pormenorizada, com a descrição e explicação de todo o processo. Além disso, oportuniza a descrição das relações do contexto analisado por meio da relação direta entre pesquisador e pesquisado.

Com base nesses pressupostos, a seguir discutiremos os resultados da investigação.

(Sobre) Vivências, Processos de Interação/Colaboração e a Linguagem de Computação em uma Perspectiva Inclusiva

Para apresentar os resultados da investigação sobre os processos de interação/colaboração entre as crianças e nas aulas de computação desplugada, destacaremos algumas cenas - aqui chamadas de episódios analíticos, a partir dos princípios propostos por Vigotski (1997).

Vale ressaltar que por tratar-se de uma pesquisa pautada nos princípios do desenho universal na aprendizagem (DUA), que mostra as interações entre os alunos e deles com a linguagem de computação, não iremos descrever apenas a participação dos sujeitos da Educação Especial. Observar a relação inter pares, as colaborações, aproximações e distanciamentos é fundamental para que possamos compreender o processo de aprendizagem e, consequente, desenvolvimento das crianças no decorrer das atividades.

Em diálogo com essas reflexões, destacamos que as atividades foram realizadas de forma colaborativa pelas crianças por meio de conversas mediadas pelos professores tutores, nas quais elas tinham que dizer o que poderiam fazer para solucionar os desafios (atividades propostas), a fim de desenvolver a imaginação e a criação por meio da interação/colaboração, bem como observar se eles conseguiam fazer relações com os conceitos que já aprenderam nas aulas. Segue o registro do episódio a seguir:

Estão presentes na sala de aula as crianças participantes da pesquisa sentadas em círculo e três professores tutores. Cinco alunos estão em pé na frente da sala, enquanto os demais quatro alunos estão sentados, observando. Os alunos de pé estão segurando cartões coloridos enquanto um dos professores tutores repassa instruções sobre a atividade. Professor tutor (ciência da computação): Ok, todo mundo em zero. Os alunos viram seus cartões conforme pedido. Professor tutor (ciência da computação): Então, vocês número zero (apontando para os alunos). Que é zero em binário e zero no nosso número que a gente já conhece, em decimal. Tudo zero. Agora nós vamos começar a transformar vocês em números binários. Ok? Vira, você. Professor tutor (ciência da computação) aponta para Victória e as demais crianças olham para ela. Victória vira seu cartão. Professor tutor (ciência da computação): Isso. Ela é o 1. Por acaso, o número dela também é 1. Um pontinho. Vocês são o número 00001. Isso em decimal também é 1. Ok? E você? Professor tutor (ciência da computação) aponta para Ulysses, que vira seu cartão. Os alunos olham para Ulysses. Professor tutor (ciência da computação): E… vira de novo. Para o zero (Ele diz a Victória, que vira seu cartão conforme pedido). Ele é 2. O dígito dele é 1, ou seja, o que eu falei é que cada um de vocês é um digito, né? Enquanto o Professor tutor (ciência da computação) explica, Lucas observa o cartão de Ulysses, e as outras crianças prestam atenção ao Professor tutor (ciência da computação). Francisco continua de cabeça abaixada. Professor tutor (ciência da computação): 00010. Agora vocês são o número zero (ele diz para as crianças com os cartões virados). Professor tutor (ciência da computação): Isso em decimal é 2. Vocês estão entendendo alguma coisa da regra que está acontecendo? Maíra confirma balançando a cabeça. Monique se balança na cadeira. Francisco levanta a cabeça e fica olhando para os colegas na frente da sala. Professor tutor (ciência da computação): 1, 2… e agora é você. 4 (diz apontando para Lucas. Lucas vira seu cartão). Professor tutor (ciência da computação) diz a Ulysses para virar seu cartão de volta. Professor tutor (ciência da computação): Ela era 1, ele era 2 e agora ele é 4 (ele aponta para as crianças que haviam virado o cartão). Vocês conseguem entender alguma coisa do que está acontecendo aí?. Alexandre: Ah, eu estou entendendo que… vai aumentando. Professor tutor (ciência da computação): Vai aumentando em quanto? Você sabe? Ulysses: Em 1? Professor tutor (ciência da computação): Não… perto. Ulysses: Zero Alexandre: Acho que 2. Não sei. Professor tutor (ciência da computação): Puxa, chegou bem perto! Alexandre: Quatro? Lucas: Dobrou. (Alexandre e Ulysses olham para Lucas surpresos). Professor tutor (ciência da computação): Dobrou. Todos os números foram dobrando. Entenderam? Então… então ela era 1. Quando o 1 dela vai para cá… não se esqueçam, vocês são números binários. O 1 dela que vai para cá, passa e vai dobrando. Era 1, vira 2, vira 4. O dela é 8, e o dele é 16. Monique começa a contar os pontinhos nos cartões dos colegas. Professora tutora (pedagógica) vai até Francisco e ele volta a prestar atenção na atividade (...). Professora tutora (pedagógica): Está todo mundo entendendo? Se não tiver pode falar. Pode falar, é igual na escola. Às vezes a gente entende, às vezes a gente não entende. E a gente repete. Monique: Mais ou menos. Professor tutor (ciência da computação): Todo mundo aqui gosta de matemática? Maíra e Lucas fazem sinal positivo com a cabeça. Monique sorri. Alexandre e Verônica fazem que não com a cabeça. Professora tutora (pedagógica): Quem gosta de matemática na escola? Lucas levanta a mão, Maíra levanta também. Francisco se agita na cadeira. Verônica: Mas eu tenho que gostar, porque a amiga da minha mãe é professora. E ela quer me dar aula. Senão ela fala para minha mãe. (Risadas ao fundo). Professora tutora (pedagógica): E a matemática é necessária. A gente usa todos os dias, na nossa vida. Às vezes a gente não percebe. A gente vai trabalhar a matemática também, mas de uma maneira mais divertida (...). (Transcrição da filmagem, setembro de 2017)

Conforme o episódio evidencia, o conteúdo da aula foi o número binário: cálculos que exigiam memorização, raciocínio lógico-matemático, abstração, atenção. Nota-se a participação das crianças apesar de ser o contato inicial. Cecília estava com dificuldades para interagir com os colegas e com os professores, passou praticamente a aula toda sem dizer uma palavra, apenas abaixava ou levantava a cabeça, por isso não “aparece” nessa cena. Francisco estava inquieto, por diversas vezes levantava e balbuciava palavras soltas tais como “mamãe”, o nome da sua escola e seu próprio nome seguido da palavra “não”. Ambos foram afetados pela mudança na rotina. Maíra, Alexandre, Lucas, Verônica e Ulysses demonstram interesse pelo material e interagiram mais com os professores. Monique e Victória ficaram mais caladas, uma relatando dificuldade para compreender o conteúdo e a outra por timidez. Aos poucos elas foram se soltando e no final da aula já estavam respondendo e interagindo.

No que diz respeito aos alunos público-alvo da Educação Especial especificamente, em trecho do diário de campo, relatou-se assim: “Francisco ainda é ‘vencido’ por problemas com o novo ambiente, quebra de rotina e dinâmica da aula. Cecília foge do contato visual, abaixa a cabeça se falamos com ela, mas presta atenção na hora da explicação. Lucas precisa ser desafiado”.

Nessa aula ainda não sabíamos, mas Francisco tem muito interesse por números. Por isso quando perguntamos quem gostava de matemática ele se agitou na cadeira. Cecília utilizava uma linguagem bastante infantilizada (aspecto ainda muito comum com sujeitos que apresentam deficiência intelectual) e em seus poucos momentos de fala tivemos dificuldades para compreender o que ela dizia, até mesmo quando pedia para ir ao banheiro. Lucas iniciou a aula bem participativo, mas quando as demais crianças têm dificuldades e precisamos repetir a explicação, ou mediamos com exemplos mais concretos, ele demonstra insatisfação se esticando na cadeira como se fosse deitar para dormir. Marcas de corpos que nem sempre se expressam da maneira convencional (ou convencionada?), mas que são afetados na interação com o outro.

Ainda sobre esse episódio, conseguimos notar o quão rápido Lucas respondia às perguntas e conseguia compreender a lógica da atividade, em outros momentos da aula a velocidade na resposta chegava a surpreender o tutor de Ciência da Computação e até a incomodar alguns alunos que diziam “Tia eu estava pensando, ele foi muito rápido”. Com isso, já na primeira aula percebemos que iríamos precisar de diferentes estratégias para que todos compreendessem o conteúdo e os conceitos que estavam sendo trabalhados. A aula precisava ser para todos/as e também para cada um/a.

Apesar da dificuldade comum para um primeiro contato, foi uma aula com ampla participação da turma. A atividade foi atrativa e eles interagiram bastante. Inicialmente teve uma certa competição em quem respondia mais rápido, com o tempo fomos nos ajustando. A parceria entre tutoras de Pedagogia e tutores de Ciência da Computação demonstrou bons resultados. No que se refere às intervenções e dinâmica cooperativa de explicação do conteúdo, a docência compartilhada mostrou contribuir para o processo de ensino e aprendizagem de todos.

Além disso, cabe ressaltar que algumas situações só ocorreram devido ao trabalho colaborativo e da coparticipação dos tutores nas ações no ambiente de ensino. As reuniões semanais para planejamento, organização e feedback da aula foram primordiais para que construíssemos uma metodologia de ensino que contemplasse a diversidade presente, constitutiva de práticas na qual todos pudessem participar. Nossos planejamentos foram pautados na proposta do ensino colaborativo, com respaldo em Braun (2012). Vejamos:

A proposta do ensino colaborativo, fundamentalmente, tem por finalidade a colaboração entre professores no desenvolvimento de atividades no cotidiano escolar, mais especificamente da sala de aula. Ou seja, todos os envolvidos no processo educacional compartilham as decisões tomadas e são responsáveis pela qualidade das ações efetivadas. (Braun, 2012, p. 76)

Com base no ensino colaborativo, Pletsch e Oliveira (2017) defendem que o ensino envolve três dimensões principais: a) conceituais (conteúdos e conceitos ensinados na escola); b) procedimentais (processos, recursos e mediações realizadas para o ensino dos conhecimentos escolares), e c) atitudinais (crenças e concepções sobre as possibilidades dos alunos). A pesquisa mostrou que as concepções dos professores (neste caso ainda alunos de graduação) acabam influenciando na trajetória educacional das crianças. Nesse sentido, nota-se no episódio que os tutores acreditavam na capacidade de aprendizagem de todos e insistiam nas possibilidades.

Dessa maneira, no decorrer da aula foram utilizadas estratégias como: desenhar o conteúdo das placas no quadro para que as crianças compreendessem o que estava sendo representado em binário para depois conseguirem fazer a relação com as letras; mostrar como o aluno chegou até o resultado ao invés de apenas dar a resposta final e pedir que eles memorizassem como certa; utilizar o “relembrando” como estratégia para facilitar o desenvolvimento da memória e a construção de rotinas, que beneficiaram sobretudo o Francisco. No “relembrando” conversávamos com as crianças sobre o que tinha sido trabalhado em aula, quais as relações do conteúdo com o computador e juntos construíamos um resumo do dia. Ao dar início à aula seguinte retomávamos o que tinha sido trabalhado na aula anterior e assim sucessivamente.

Por outro lado, no episódio destacado anteriormente podemos perceber que utilizar a estratégia de “reprimir” a agilidade das respostas de Lucas dizendo “agora você já foi, não pode responder mais” fez com que o aluno se desmotivasse. Tal desempenho poderia ser melhor aproveitado. Nem sempre acertamos! Quando o mesmo aconteceu com Maíra, optamos por perguntar aos demais se a resposta da colega estava certa e conferirmos juntos.

Dando continuidade à aula, ainda nessa atividade, nota-se uma mudança atitudinal do tutor de Ciência da Computação que reverberou em mudanças no comportamento dos alunos. O trecho não está transcrito, mas tem um momento que Verônica dá a resposta correta e ele pede que a menina explique como foi que ela chegou até o resultado, pois “temos que ver se todo mundo aprendeu”. Ao explicar para os colegas, ao invés de se sentir desmotivada a continuar respondendo (como aconteceu com Lucas), ela fez com que outras crianças passassem a interagir conosco - “ah deixa eu falar também”.

Tais aspectos nos fizeram refletir sobre o oferecimento de atividades mais coletivas e desenvolvidas por meio da “tutoria por pares”, visando a aprendizagem cooperativa ou colaborativa. Essa prática sugere, também, que os colegas “mais adiantados” auxiliem o aluno que ainda está construindo seus conhecimentos sobre o assunto e/ou conceito abordado pelo professor (Braun, 2012; Pletsch & Oliveira, 2017).

Seguindo com a análise dos dados, destacamos 3 aulas/episódios subsequentes (a mágica de virar as cartas, batalha naval e seja o mais rápido) que ressaltam a forma como a tutoria por pares colaborou com o processo de ensino e aprendizagem, bem como os processos de interação/colaboração entre eles.

Conteúdo da aula: Detecção de erros/Paridade. As crianças interagiram mais nessa aula. Os desafios e a cooperação/interação entre eles facilitaram a aprendizagem e deixou a aula mais divertida. Nessa aula nota-se a importância da aprendizagem significativa. Francisco participa da aula apesar de se dispersar em alguns momentos e ficar agitado. Seus gritos não parecem atrapalhar a concentração dos colegas, embora por vezes desconcentre os tutores. Todos estão muito felizes! Cecília continua reagindo com timidez (o exercício era em pé e ela não quis levantar, mas pedia que saíssem da frente dela para que pudesse ver tudo que estava acontecendo). Ela não respondia às perguntas, mas sorria e reagia através de olhares e expressões corporais a todas as nossas ações. O medo de errar estava presente na aula. Juntos todos superaram esse bloqueio e perceberam que a aprendizagem pode ser leve e colaborativa. (Registro em diário de campo, setembro de 2017)

Conforme o trecho anterior, nessa aula trabalhamos com uma atividade que utilizou um truque de mágica para mostrar como detectar quando os dados foram corrompidos e como podemos corrigi-los. O primeiro momento do vídeo é marcado pelos sorrisos das crianças. Para contextualizar, antes de explicar a lógica da atividade - o truque de mágica, o Professor tutor (ciência da computação) pediu que Lucas escolhesse uma carta dizendo que conseguiria acertar. Porém, o tutor errou. A disposição das cartas estava errada e ele acabou se atrapalhando. O professor tutor (ciência da computação) ficou nervoso e essa atitude foi suficiente para que Lucas tivesse a atenção redobrada na aula. Pela primeira vez ele demonstrou que o desafio era sua força motriz para aprender. Essa atividade envolvia concentração, lógica matemática, números pares e ímpares e memorização. Conceitos que são trabalhados nos conteúdos escolares e é importante ressaltar que a atividade não dependia do computador.

Nessa atividade, podemos notar que a tutoria por pares e os processos de colaboração/interação mediados pela linguagem de computação ressoam entre os sujeitos, de modo que a proposta da aula nos remete as reflexões sobre uma aprendizagem que seja de fato significativa e colabore com o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. Em vista disso, apresentaremos algumas considerações sobre essa aproximação.

A constituição do sujeito durante e pela interação com o outro afeta o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. Nesse sentido, as palavras de Souza (2013) são contundentes:

(...) ainda mais quando assumimos que a constituição do sujeito está sempre na relação com o outro, implicando considerar que a matriz biológica não é a única determinante dessa constituição, sobretudo no trato das funções psicológicas humanas, mas também atua como fundadora dela, nas relações sociais de que o sujeito participa. Para Vigotski (...), é na participação do sujeito nas práticas/relações sociais que ele vai se constituindo à medida que vai se apropriando/incorporando do conteúdo e dos possíveis modos de participação na vida social. Tal processo só é possível se considerarmos a linguagem como matéria (realidade objetiva, produto histórico e constitutivo do sujeito) e instrumento de mediação entre o corpo (organismo) e o mundo histórico-cultural (...). (Souza, 2013, p. 212)

Ainda nessa temática, organizamos um episódio a partir da observação participante da aula de busca binária e ordenação com o exercício da batalha naval. Nessa aula Cecília começou a participar de maneira efetiva, com auxílio da mediação pedagógica, interagindo com seus colegas e com a linguagem de computação, conforme demonstra o registro a seguir.

As crianças sentadas com suas folhas de atividade da Batalha Naval, estão dispostas em duplas - Cecília e Alexandre; Maíra e Monique; Lucas e Verônica; Ulysses e Francisco (Victória faltou) (...). Professor tutor (ciência da computação) explica a atividade informando que os números de cima são os navios da pessoa e os debaixo são as tentativas de achar os navios do colega da dupla. Para jogar as crianças precisavam dizer um número de algum navio. Por exemplo, eu digo o número de um navio meu para o Alexandre. O Alexandre vai ter que procurar dentro dos meus navios qual número do navio é o certo. Então, se eu digo o número 2713, e ele vai tentar acertar dizendo: ‘Eu acho que esse é o navio D’, mas ele errou, o D é o 1410. O que ele faz? Ele anota embaixo da folha para ele lembrar. Depois vamos ver quantas tentativas foram realizadas pela criança para acertar a partir do que aprenderam anteriormente em busca binária. Alexandre marca uma coordenada com o lápis na folha de atividade de Batalha Naval e esconde com a mão. Ao lado dele, estou auxiliando Cecília com a folha de atividade. Após conferir com Alexandre qual coordenada ele havia escolhido percebo que Cecília está sorrindo (...). Cecília está feliz por ter acertado, parabenizo a menina e ela bate palmas. Alexandre também fica feliz por Cecília (...). Cecília chama Professor tutor (ciência da computação) para perto dela. Alexandre pede para jogar a Batalha Naval com Ulysses e Cecília passa a jogar com Francisco. Francisco interage mais e demonstra muita felicidade em acertar. Ainda não sabemos se foi apenas sorte ou se ele compreendeu a lógica da atividade. Cecília participa da atividade do início ao fim, com algumas negociações (tais como ficar trocando de mediadora, ao final da aula ela tinha jogado comigo, com a Professora tutora (pedagógica) e com o Professor tutor (ciência da computação) e adorava ver nossas expressões cada vez que ela pedia para “trocar de parceiro”; comer maçã enquanto jogava pois já estava cansada de jogar e precisava de uma “maçãzinha”; usar uma folha extra para esconder sua folha de atividades). Ficamos muito felizes ao ver que ela estava interagindo conosco. De alguma maneira tínhamos conseguido afetar ela nesse dia. Nessa aula, Lucas demonstrou maiores problemas na interação com as crianças e suas dificuldades. Passamos um exercício extra para ele com um grau de dificuldade maior (conforme fossem terminando de jogar a “batalha naval de computação”, as demais crianças também poderiam fazer essa atividade, embora apenas Lucas e Verônica que era a sua dupla tenham conseguido realizar a atividade extra nessa aula). Percebe-se que Lucas possui muitas questões para participar de atividades colaborativas, bem como dificuldades com o convívio inter pares, até mais do que o Francisco que já nos foi apresentado com essa condição. Fica também a reflexão sobre a descrença quando a pessoa com deficiência acerta; Francisco precisou “ganhar” o jogo várias vezes para que todos acreditassem que não era apenas sorte. Contudo, destaco o momento que ele jogou com Cecília - na verdade um quarteto: Francisco e eu; Cecília e Professora tutora (pedagógica). Eles se divertiram e aprenderam sobre respeitar o tempo de cada um. Nessa aula Francisco nos surpreendeu com algumas ações - toda vez que ele se agitava (levantava, repetia algumas palavras e números) e eu ia até ele, o menino repetia (com um tom de voz diferente): “MA - RI - A - NA, bate” (batendo suas mãos nas minhas), com isso ele se acalmava e eu pedia para ele sentar e voltar para a atividade. Vale ressaltar que as crianças se acostumaram rapidamente com as inquietações do Francisco e não reagiam com olhares repressores. Tal atitude retrata parte de nossas experiências coletivas e a força de práticas significativas e afetivas. (Transcrição da filmagem e diário de campo, setembro de 2017)

A interação inter pares durante as aulas fez com que os sujeitos fossem compartilhando as experiências e os sentidos e significados que cada um atribuiu a aquela linguagem e possível signo naquele determinado momento/tempo, afetando assim todos os participantes da relação. Tendo a significação como elemento fundamental para compreender como a cultura vai sendo sinalizada nos corpos como marcas, embasados por Vigotski, compreendemos que são as possibilidades de interação dos sujeitos com essas linguagens e a significação que eles dão a elas, que faz com que tais linguagens possam vir a se constituir em signos.

Tendo em mente estas considerações, o “olhar do outro” - detentor da significação - confere-nos a possibilidade de interpretação. Ainda que por vezes possamos escutar que o significado da palavra não muda e sim o sentido, nos apoiamos em Vigotski (2004) para afirmar que “o significado não é a soma de todas as operações psicológicas que estão por trás da palavra. O significado é algo mais definido: é a estrutura interna da operação do signo. Isso é o que se encontra entre o pensamento e a palavra” (p. 179). Os significados implicam generalizações, enquanto o sentido é resultado; mais amplo e produto do significado, não foi fixado pelo signo. Os sentidos também são produzidos historicamente embora estejam mais ligados a construções pessoais e aspectos afetivos (Marques & Carvalho, 2019).

Dessa maneira, nas relações sociais, ao se apropriar, o sujeito o faz com base em suas experiências de vida, mediadas pelas condições concretas da sua existência, “dos significados constituídos nas contradições intrínsecas às práticas sociais marcadas pelas tensões histórico-culturais, e não pelo apagamento dos conflitos” (Souza, 2013, p. 204); assim são produzidos os sentidos que levam o sujeito a alterar a forma como se relaciona com a realidade. Vigotski em seus estudos também nos mostra que a palavra está sempre entrelaçada a algum contexto e nesse meio ela incorpora não só os conteúdos intelectuais, processos cognitivos, mas também os afetivos.

Nesse prisma do coletivo mediando a constituição humana, para encerrar os episódios sobre computação desplugada, destacamos um trecho da aula sobre redes de ordenação - “seja o mais rápido”. Essa aula, além de trabalhar com a comparação e ordenação (números maior e menor que), enfatizou a cooperação para resolução de problemas. Trata-se de uma atividade totalmente colaborativa e por isso as crianças tiveram que aprender a colaborar umas com as outras para chegarem ao objetivo final - “chegar mais rápido”.

Após o “relembrando”, explicamos para as crianças que dessa vez eles vão ser as peças do jogo e que só vão conseguir concluir a atividade se trabalharem juntas. Professor tutor (ciência da computação) explicou que o tema da aula é Redes de Ordenação e que tudo no computador funciona melhor quando está ordenado. O tutor explicou que os arquivos podem ser ordenados por data, por ordem alfabética, etc. e iniciou a orientação da dinâmica do “jogo humano”:

Professor tutor (ciência da computação): Hoje nós vamos fazer o chamado Redes de Ordenação, que é exatamente isso aqui. Essa é nossa rede para ordenar vocês. Cada um de vocês vai ter um número, que eu vou dar para vocês e através de alguns métodos, que a gente vai explicar daqui a pouco, vocês vão sair desse lado ordenados. Só que dessa vez, numa atividade interativa. Vocês vão ser números novamente. Professora tutora (pedagógica): Então vamos lá, levantando. Professor tutor (ciência da computação) começa a explicar as regras: Vocês vão seguir essas linhas, para formar duplas. Vocês não precisam os dois ficarem em cima desses círculos, pois não tem como. Mas vocês vão formar duplas, e comparar seus números com a sua dupla, ok? Quem tiver o número maior, vai para direita. Quem tiver o número menor, vem para esquerda. Professora tutora (pedagógica) pergunta se todos sabem diferenciar entre esquerda e direita. As crianças confirmam. Professora tutora (pedagógica): O menor vai para esquerda e o maior vai para a direita. Professora tutora (pedagógica): Todo mundo entendeu? Professor tutor (ciência da computação) autoriza que as crianças comecem (...). As crianças começam a avançar de forma desorganizada. Professora tutora (pedagógica): Não, calma! Vamos fazer uma vez devagar para todo mundo entender. Professor tutor (ciência da computação): Agora vocês vão comparar o número com sua dupla. Quem tiver o menor, vai para esquerda. (As crianças observam os números). Professor tutor (ciência da computação): Quem tiver o maior, vai para direita. Algumas crianças avançam, porém Verônica e Cecília continuam na posição anterior. Professor tutor (ciência da computação) fica confuso. Professora tutora (pedagógica) sugere que comecem novamente (...). Professor tutor (ciência da computação) posiciona Ulysses e Alexandre; depois percebe que Cecília ainda está de mão dada com Verônica, mesmo com o Alexandre entre elas. Professora tutora (pedagógica) pede para Cecília soltar as mãos de Verônica e dar as mãos para o Ulysses, pois as duplas vão mudando conforme eles avançam no tabuleiro (...). As crianças estão na posição inicial novamente. Professora tutora (pedagógica) repassa as regras com as crianças, e elas vão respondendo e começam a comparar os números. Professora tutora (pedagógica) auxilia Cecília. Aos poucos, todos tentam avançar (...). Cecília precisa comparar seu número com Lucas. Professora tutora (pedagógica) vai até eles para ajudar se for necessário. Os dois avançam. As crianças estão na mesma direção e novamente comparam os números. Professora tutora (pedagógica) vai até Cecília e ajuda a comparar com o número de Ulysses. Cecília segue até o quadrado vermelho no chão e a Professora tutora (pedagógica) a parabeniza por ter chegado ao final do tapete improvisado. Professor tutor (ciência da computação) comenta que Cecília tem o menor número e Lucas o maior número e que os outros ainda precisam comparar os números. As crianças comparam e avançam (...). Todos comemoram. Professor tutor (ciência da computação): Agora vocês vão fazer sem a nossa intervenção direta. Vamos marcar o tempo no cronômetro (conforme a atividade sugeria) (...). Monique: Tia, acho que o dele é maior do que o meu. Professora tutora (pedagógica): Mostra para ele, ele sabe comparar. Seu número é maior do que o da Monique, Francisco? Monique: É Francisco: Sim Ulysses pede que Cecília dê a mão ao Francisco. Professora tutora (pedagógica) faz com que as crianças interajam entre si para resolver as comparações. Professora tutora (pedagógica): Qual que é maior, Cecília? O seu ou o dele? Fala para ele. Francisco: 29 As crianças conversam entre si e comparam. Professora tutora (pedagógica): Vai, Cecília. Ulysses: Vem, Francisco. Professora tutora (pedagógica) comenta baixinho: Tem que deixar eles resolverem. Monique: Tia, o meu é maior que o dela. Professora tutora (pedagógica): Pergunta para ela, vê com ela. Ulysses ajuda Cecília a comparar com Monique. Professora tutora (pedagógica) incentiva Cecília a comparar (...). Monique: Eu vou para onde? Eu vou com quem, gente? Ulysses: Fica aí, eu estou com o Francisco. Vai para o quadrado. Ulysses conversa com Francisco e incentiva ele a fazer a comparação. Francisco responde e Ulysses diz para onde eles devem ir. As crianças vão avançando rápido demais, e começam a se confundir. Victória é deixada para trás. Enquanto Maíra já está no estágio final do tapete. Verônica também não tem com quem comparar. E Alexandre avança sem nem ter comparado com ninguém. Professora tutora (pedagógica): Olhem para os lados. Professora tutora (pedagógica): Victória vai comparar com quem? Ulysses: A Victória ficou para trás. Professora tutora (pedagógica) aponta o quem tem de errado na execução, imitando as crianças. Lucas conversa com Alexandre sobre a atividade, gesticulando com as mãos. Professora tutora (pedagógica) diz que eles precisam esperar os outros. Professor tutor (ciência da computação): Vocês lembram que o computador só compara de 2 em 2? Professora tutora (pedagógica): É por isso que o jogo não dá certo se vocês não compararem. Professora tutora (pedagógica): Se for sozinho, não dá. As crianças tentam novamente, dessa vez mais concentrados (...) Professora tutora (pedagógica): Agora sim Professora tutora (pedagógica) pedem para que virem os números nos cartões. Todos comemoram quando percebem que está certo. (...) As crianças “jogam” novamente para tentar terminar em menor tempo. Professora tutora (pedagógica) pede que eles troquem de dupla, para jogarem outra vez. Algumas crianças trocaram de cartões. As crianças finalmente compreenderam que precisam jogar juntos e estão avançando sem errar. Ao final, percebem que conseguiram mais rápido. (Transcrição da filmagem, outubro de 2017).

Ressaltamos que esse processo de voltar ao início da atividade aconteceu muitas vezes. Na tentativa de terminar mais rápido “para ganhar” eles atropelavam uns aos outros, não comparavam os números corretamente e/ou terminavam com números desordenados. Demorou até que todos compreendessem que precisavam uns dos outros e que ninguém conseguiria ganhar sozinho. Embora tenha sido esse o maior aprendizado do jogo, o fato de voltar várias vezes colaborou também para os processos de interação inter pares, sobretudo para os sujeitos público-alvo da Educação Especial.

Com efeito, para que a intencionalidade do trabalho em grupo não se perdesse a atividade exigiu ações estratégicas e intervenções pontuais. De fato, foram várias repetições e constante a participação dos tutores para reorganizar as crianças no espaço, a fim de garantir o objetivo proposto e a participação de todos e de cada um. Isso não estava previsto no planejamento, mas foram “os erros” que contribuíram para a maior interação. O jogo era um desafio. Ao final da aula constatamos que todos nos divertimos muito e aprendemos bastante uns com os outros.

Partindo desse ponto de vista, os dados nos permitem observar que as aulas de computação desplugada com suas atividades colaborativas aproxima-nos de outro conceito do estatuto teórico de Vigotski que perpassa todo o processo de desenvolvimento humano: a zona de desenvolvimento proximal (ZDP) (Vigotski, 2007). O conceito dialoga com as práticas pedagógicas que utilizam a mediação como base, visto que sugere que a criança pode atingir níveis mais elevados de desenvolvimento quando soluciona seus problemas com o auxílio do outro em uma proposta colaborativa, implicando assim a reorganização de um processo interpessoal em um processo intrapessoal, que está em iminência. Senna (2019), em seus estudos, afirma que:

O sentido social da teoria de Vygotsky acerca da construção do conhecimento se fundamenta, (...) a partir da forma como cada qual representa para si mesmo a realidade à sua volta e como se apropria das formas como as demais pessoas a representam. Portanto, (...) cada ato de interação entre duas pessoas necessariamente produz uma situação de desenvolvimento proximal, através da qual os interlocutores se esforçam para se compreender mutuamente. (p. 297)

A potencialidade dessas ações está permeada por funções já amadurecidas e outras que ainda não amadureceram, em um movimento dialético. Então se hoje a criança não desempenha ainda uma determinada atividade sozinha, amanhã, após a internalização/apropriação do conceito e a compreensão de tal tarefa, ela poderá desempenhar a mesma sem ajuda (VIgotski, 2007). Por isso o aprendizado colaborativo é considerado tão importante, visto que a mediação do outro influencia no desenvolvimento da elaboração conceitual e na tomada de consciência pelo sujeito de seus próprios processos mentais (Vigotski, 2012).

Em síntese, fica evidenciado por meio dos dados que o “problema” da aprendizagem de conceitos matemáticos em uma perspectiva inclusiva não está na deficiência e sim na forma de acesso a informação, visto que as aulas de computação desplugada, em grande medida, tiveram como conteúdos conceitos da matemática que poderiam ser trabalhados no ambiente escolar. Por meio da colaboração/interação entre os sujeitos, intervenções e reconstruções de sentidos e significados todos conseguiram avançar, inclusive em questões de lógica e atividades que envolviam a abstração.

Afinal, Qual o Limite para o Desenvolvimento Humano?

Sendo assim, considerando os processos de colaboração/interação mediados pela linguagem de computação para a aprendizagem e a discussão apresentada aqui por meio dos episódios de computação desplugada, surgem questionamentos como: são os “novos” modos de acesso ao conhecimento que afetaram os sujeitos da pesquisa? Estamos diante da tão falada “inovação tecnológica”? Ou o que contribuiu para a construção desses resultados foram as práticas e estratégias de ensino diversificadas para sujeitos diversos? Essas são questões que ficam para análises futuras, embora possamos afirmar por meio dessa pesquisa que inovar envolve concepção e prática - a linguagem de computação e/ou o uso do computador em si “não basta”; o uso que fazemos deles e sua aplicação articulada com conhecimentos e propostas pedagógicas é que possibilitaram a realização de um trabalho educacional significativo.

Além disso, compreende-se por meio dos dados levantados nesse estudo que, ao elaborarmos uma proposta de ensino colaborativa e interdisciplinar, em um movimento coletivo de construção do conhecimento, propiciou-se a aprendizagem e o desenvolvimento por meio da interação entre os sujeitos e deles com a linguagem de computação. Igualmente, nota-se a mediação do outro (neste caso do professor tutor) como aspecto central desse processo.

No que se refere ao uso da tecnologia, buscando problematizar o uso desta enquanto elemento mediador, a partir da análise dos dados compreendemos que essa é a chave da história que vai entender porque as crianças que participaram da pesquisa, em grande medida, tinham mais hipóteses sobre a construção das linguagens tecnológicas do que da escrita alfabética. Visto que a mediação tecnológica, e nesse caso especificamente a sua linguagem, favorece uma escrita voltada para as possibilidades, nota-se que a interação com a tecnologia (aqui a chamada computação desplugada) afeta também a nossa percepção e ação sob o objeto.

Dessa maneira, a linguagem tecnológica e sua própria maneira de proceder facilitaram a implementação de atividades que dialogam com o desenho universal para a aprendizagem. Dessa maneira possuem procedimentos e estruturas mais inclusivos, bem como seu uso permeia uma nova cultura. Nesta, o professor não é substituído, mas as formas de interação com o objeto, com o conteúdo/conceitos e suas interações é diferente. Os caminhos do pensamento e das atividades cognitivas são transformados.

Dito isso, podemos notar que a mediação tecnológica, por meio das linguagens de computação, ao gerarem um novo ciclo de memórias, experiências e pensamento, passa a fazer parte da subjetividade. Para além de códigos, letras, números e símbolos, a tecnologia colabora com métodos, procedimentos e estratégias pedagógicas que transformaram o desenvolvimento das crianças com ou sem deficiência que participaram do projeto. No que se refere à importância dessa análise, permeada pelo olhar da cultura computacional como possibilidade de criação e método de ensino e aprendizagem, reconhecemos a tecnologia como dimensão da vida humana.

A partir dos registros apresentados destacamos que os sujeitos conseguiram fazer relações com os conceitos que já tinham aprendido nas aulas anteriores, afetando assim o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores, tais como: memória, linguagem, atenção, concentração e outros. A interação e convivência entre os sujeitos durante a pesquisa foi fazendo com que as vivências se transformassem, por meio da diversidade cultural e, sobretudo, do diálogo e da imaginação, o que se refletiu na aprendizagem dos sujeitos em seus diferentes modos de leitura de mundo e diversas formas representacionais.

Diante o exposto, evidenciamos com os resultados desse estudo o que já nos dizia Vigotski (2009): “A criação traz grandes alegrias para a pessoa. Mas há também os ‘suplícios da criação’. Criar é difícil. A necessidade de criar nem sempre coincide com as possibilidades de criação (...)” (p. 55). Ainda em diálogo com o autor, ressaltamos que as vivências, compreendidas como papel do meio/ambiente no desenvolvimento humano, atuam/atuaram como fonte de desenvolvimento, pois este está na relação interpessoal. Por isso, o foco na interação/colaboração ao longo da pesquisa. Nesse movimento plural e dialético, repleto de marcas de aprendizagem e indícios de desenvolvimento, apontamos que é possível fazer um trabalho educacional com os sujeitos independente da diversidade e pluralidade cognitiva e social e, mais do que isso, que é por meio da diversidade que construiremos uma educação inovadora, capaz de proporcionar bases sólidas para as possibilidades de criação.

Agradecimentos

Agradecemos as agências de fomento que financiaram a pesquisa: a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001 e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ).

Referências

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1 Este artigo é fruto da pesquisa desenvolvido durante doutorado da primeira autora sob a supervisão da segunda.

2O conceito de desenho universal na aprendizagem sustenta-se pela ideia do desenho universal, definido na Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência (BRASIL, 2007), como “concepção de produtos, ambientes, programas e serviços a serem usados, na maior medida possível, por todas as pessoas, sem necessidade de adaptação ou projeto específico”. A partir dessas considerações, Pletsch, Souza e Orleans (2017) apontam que o conceito de desenho universal na aprendizagem, “(...) respeitando as dificuldades e os talentos dos alunos, a partir do uso de estratégias pedagógicas diferenciadas, pode ampliar consideravelmente a inclusão com desenvolvimento acadêmico e social do sujeito com deficiências” (p. 273).

Recebido: 29 de Junho de 2022; Revisado: 02 de Setembro de 2022; Aceito: 27 de Setembro de 2022

Concetualização: Mariana Corrêa Pitanga de Oliveira e Márcia Denise Pletsch; Metodologia: Mariana Corrêa Pitanga de Oliveira e Márcia Denise Pletsch; Software: Mariana Corrêa Pitanga de Oliveira e Márcia Denise Pletsch; Validação: Mariana Corrêa Pitanga de Oliveira e Márcia Denise Pletsch; Análise formal: Mariana Corrêa Pitanga de Oliveira e Márcia Denise Pletsch; Investigação: Mariana Corrêa Pitanga de Oliveira e Márcia Denise Pletsch; Recursos: Mariana Corrêa Pitanga de Oliveira; Curadoria dos dados: Mariana Corrêa Pitanga de Oliveira e Márcia Denise Pletsch; Redação do rascunho original: Mariana Corrêa Pitanga de Oliveira; Redação - revisão e edição: Mariana Corrêa Pitanga de Oliveira e Márcia Denise Pletsch; Visualização: Mariana Corrêa Pitanga de Oliveira; Supervisão: Márcia Denise Pletsch; Administração do projeto: Márcia Denise Pletsch; Aquisição de financiamento: Márcia Denise Pletsch.

Mariana Corrêa Pitanga de Oliveira é Professora Substituta do Departamento Educação e Sociedade, curso de Pedagogia, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Coordenadora de disciplina no Curso Lato Sensu de Pós-Graduação em Educação Especial e Inovação Tecnológica, promovido pela UFRRJ e Fundação CECIERJ. Doutora e Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares (PPGEduc) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Pesquisadora do Observatório de Educação Especial e Inclusão Educacional (ObEE). E-mail: pitanga.mariana@yahoo.com.br Morada: Avenida Governador Roberto Silveira s/nº, sala 104 Prédio da Pós-Graduação/UFRRJ, Moquetá, Nova Iguaçu/EJ, CEP 26285-060

Márcia Denise Pletsch é Professora Associada do Departamento Educação e Sociedade, do Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares (PPGEduc) e do Programa de Pós-Graduação em Humanidades Digitais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Coordenadora do Observatório de Educação Especial e Inclusão Educacional (ObEE). Coordenadora Geral do Núcleo de Acessibilidade e Inclusão (NAI/UFRRJ). Vice-Presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores de Educação Especial (ABPEE 2022-2024). Editora coordenadora da edição em Língua Portuguesa da RevistaEducation Policy Analysis Archives. Cientista do Estado do Rio de Janeiro da FAPERJ e pesquisadora do CNPq. E-mail: marcia_pletsch@ufrrj.br

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