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Acta Radiológica Portuguesa

Print version ISSN 2183-1351

Acta Radiol Port vol.32 no.2 Lisboa Aug. 2020  Epub July 07, 2021

https://doi.org/10.25748/arp.18883 

Casos Clínicos

Calcificação Caseosa do Anel da Válvula Mitral: A Propósito de um Caso Clínico

Caseous Calcification of the Mitral Valve Annulus: A Case Report

João Rebelo1 
http://orcid.org/0000-0003-0991-3044

André Carvalho1 
http://orcid.org/0000-0003-2694-0909

Inês Portugal11 

Rui Cunha1,21  2 

1Serviço de Radiologia, Centro Hospitalar Universitário de São João, Porto, Portugal

2Faculdade de Medicina, Universidade do Porto, Porto, Portugal


Resumo

A calcificação caseosa do anel da válvula mitral resulta da degenerescência crónica do seu anel valvular fibroso que se apresenta sob a forma de calcificação caseosa. Esta representa uma variante rara e idiopática, cujo desconhecimento pode levar a diagnósticos equívocos.

Os autores apresentam um caso clínico de calcificação caseosa do ânulo da válvula mitral, incluindo os seus principais achados imagiológicos e diagnósticos diferenciais.

Palavras-chave: Válvula mitral; Calcificação ectópica; Tomografia computorizada; Ressonância magnética.

Abstract

Annular calcification of the mitral valve annulus results from chronic degeneration of its fibrous valve annulus that may present as caseous calcification. This represents a rare and idiopathic variant whose lack of knowledge can lead to misdiagnosis.

The authors present a case report of caseous calcification of the mitral valve annulus, including its main imaging findings and differential diagnoses.

Keywords: Mitral valve; Ectopic calcification; Computed tomography; Magnetic Resonance.

História Clínica

Paciente do sexo feminino, 72 anos, dá entrada no Serviço de Urgência (SU) após paragem cardiorrespiratória por fibrilação ventricular, rapidamente assistida e revertida após quatro ciclos de suporte avançado de vida. Na sala de emergência foi realizado eletrocardiograma (ECG) que demonstrou fibrilação auricular e supradesnivelamento do segmento ST nas derivações inferiores e em V5-V6. A paciente foi submetida a cateterismo emergente, onde se verificou disfunção moderada a grave do ventrículo esquerdo, com marcada hipocinésia dos segmentos apicais e moderada dos restantes segmentos, à exceção dos basais que se apresentavam hipercontrácteis. No decorrer do exame identificou-se ainda a presença de uma imagem calcificada em íntima relação com o miocárdio basal inferior.

Após o procedimento, que decorreu sem complicações, a doente foi admitida nos Unidade de Cuidados Intensivos, com o diagnóstico de enfarte agudo do miocárdio ínfero-lateral e massa justacardíaca calcificada de origem desconhecida. No decorrer do internamento, realizou ecocardiograma transtorácico (ETT), que confirmou a presença de massa calcificada, envolvendo o anel mitral posterior e os segmentos basais inferior, posterior e lateral do ventrículo esquerdo (Fig. 1), levantando a suspeita de calcificação caseosa do anel da válvula mitral.

Figura 1: Ecocardiograma transtorácico. Na topografia da válvula mitral observa-se uma estrutura grosseiramente calcificada, condicionando intensa sombra acústica (A), com uma área central marcadamente hipoecogénica, em relação provável com alterações de liquefação (B). Aparente extensão à cavidade do ventrículo esquerdo. 

A avaliação adicional por Tomografia Computadorizada (TC) torácica (sem sincronização ECG) documentou uma lesão grosseiramente calcificada na topografia da válvula mitral, medindo cerca de 6x5x5 cm de maiores eixos (transverso x anteroposterior x longitudinal), sem aparente envolvimento dos seus folhetos, projetando-se para a cavidade do ventrículo esquerdo (Fig. 2). Estes achados eram concordantes com as alterações ecocardiográficas previamente descritas. A presença de calcificações com a extensão descrita, indiciava uma etiologia provavelmente crónica, sendo esta apresentação compatível com o diagnóstico de calcificação caseosa do anel da válvula mitral.

Figura 2: Tomografia Computorizada (sem sincronização ECG) com contraste intravenoso, imagem axial (A) e sagital (B). Observa-se uma massa ligeiramente hiperdensa centrada ao anel da válvula mitral demonstrando um bordo periférico grosseiramente calcificado (seta). Refere-se também derrame pleural bilateral e consolidação do parênquima pulmonar do lobo inferior direito. 

Adicionalmente, foi realizada uma Ressonância Magnética Cardíaca (RMC), que confirmou a presença de “massa” centrada na vertente inferior e lateral do anel mitral, com infiltração do segmento basal inferior do ventrículo esquerdo, condicionando redução da sua espessura mural. A massa demonstrava sinal intermédio nas sequências ponderadas em T2 e hipossinal com vazio de sinal à periferia nas sequências de eco de gradiente. Não se identificou captação anómala de contraste, salientando-se, contudo, discreto realce tardio periférico nas sequências PSIR (Phase-Sensitive Inversion Recovery), aspeto sugestivo da presença de fibrose (Fig. 3).

Figura 3: Ressonância Magnética Cardíaca com administração de gadolínio. (A) Sequência T2 HASTE (Half Fourier Acquisition Single Shot Turbo Spin Echo) em longo-eixo vertical (B) Sequência cine-SSFP no longo- eixo vertical e imagens de realce tardio após gadolínio (PSIR) em longo- eixo horizontal (C) e curto-eixo (D). Documenta-se massa hipointensa de características expansivas, centrada ao anel valvular mitral, com vazio de sinal periférico traduzindo a presença de calcificação (seta, B) que se torna muito mais evidente nas imagens de realce tardio (setas, C e D). Associa- se realce tardio apical transmural traduzindo enfarte do miocárdio, (estrela C). Derrame pericárdico de pequeno volume. 

Em retrospetiva, verificou-se que esta lesão já era evidente em estudos de radiografia torácica, com relativa estabilidade imagiológica ao longo do tempo (Fig. 4).

O caso foi apresentado e discutido em reunião multidisciplinar, com intuito de avaliar a necessidade de excisão cirúrgica da massa. Dada a extensão das calcificações e por se tratar de uma lesão assintomática, optou-se por não prosseguir para cirurgia valvular.

Atualmente, a doente encontra-se assintomática, sem queixas de dispneia ou de dor torácica, estável e em estádio de insuficiência cardíaca classe NYHA II (New York Heart Association).

Figura 4: Radiografia torácica, face (A) e perfil (B). Assinalado pelas setas, de forma mais evidente na incidência de perfil, observa-se uma “massa” grosseiramente calcificada em topografia expectável da válvula mitral. Dentro dos diagnósticos diferenciais poder-se-iam incluir patologia valvular reumática, calcificação caseosa da válvula mitral ou mesmo patologia tumoral com calcificações na sua dependência. 

Discussão

A maioria das massas cardíacas é detetada incidentalmente durante exames de rotina realizados por outras indicações.1,2,3 A calcificação caseosa do ânulo da válvula mitral é um processo degenerativo crónico que geralmente envolve o anel posterior.1,2,4,5 A terminologia é peculiar, uma vez que o termo caseoso está geralmente associado a um tipo de necrose encontrado em contexto de tuberculose.2 É mais prevalente em mulheres idosas e em pacientes com doença renal crónica, como no caso descrito. Doentes em hemodiálise ou com distúrbios metabólicos que induzam alterações na normal homeostasia do cálcio parecem induzir aumento do risco.1,2 A sua patogénese não é ainda completamente compreendida, mas pela associação com patologia aterosclerótica, apresenta fatores de risco similares a outras doenças cardiovasculares.1,2,3

A maioria dos pacientes são assintomáticos, e embora seja predominantemente um processo benigno, em alguns casos pode condicionar disfunção da válvula mitral, por regurgitação mitral crónica ou em casos mais raros por estenose mitral.2,3,6 No presente caso, refere-se a presença de insuficiência mitral grave associada.

O anel mitral tem uma localização muito particular, encontrando-se próximo do nódulo auriculoventricular e do sistema de condução, pelo que patologia nesta topografia pode dar origem a bradiarritmias ou outras alterações do ritmo cardíaco. Casos raros de embolização sistémica foram também descritos na literatura.2,3 No acompanhamento à doente, não foram detetadas quaisquer anomalias de ritmo ou fenómenos embólicos.

A ecocardiografia transtorácica (ETT) é considerada o método mais fiável para o seu diagnóstico. Normalmente, traduz-se por massa arredondada, de grandes dimensões e de limites bem definidos, apresentando hiperecogenecidade periférica e áreas centrais hipoecogénicas correspondendo a áreas de liquefação.3,5,7 A reflexividade das calcificações é menor face às calcificações típicas, geralmente sem efeito de sombra acústico posterior associado.1,3,5 Devido à sua baixa incidência e à sua apresentação expansiva, como pseudo-massa, a calcificação casesosa do ânulo da válvula mitral pode ser erroneamente interpretada como processo neoplásico. A presença de alguns achados favorece o diagnóstico de benignidade, nomeadamente a sua localização típica, com possível extensão a todo o anel mitral, a presença de limites bem definidos e a existência de uma área hipoecogénica central.2,3 Em situações duvidosas é recomendável uma avaliação imagiológica adicional para adequada caracterização da lesão, estratificação de risco e eventual planeamento cirúrgico, nomeadamente através de TC e RM.

A TC Cardíaca é usada como modalidade de diagnóstico de segunda linha na avaliação de massas cardíacas. Os recentes avanços tecnológicos, nomeadamente a introdução de um maior número de detetores e a possibilidade de realizar aquisições com sincronização eletrocardiográfica, resultaram numa melhor resolução espacial das estruturas cardíacas com esta técnica de imagem. A TC permite ainda obter algumas informações adicionais, designadamente a presença de calcificações (sendo superior à RM nesta avaliação), de gordura ou de vascularização.2,3,6

A RMC pode ser utilizada para prever a malignidade de uma massa cardíaca. Em comparação com a tomografia computadorizada, a ressonância magnética oferece maior resolução temporal e melhor caracterização tecidular, sem exposição a radiação ionizante. Contudo, a acessibilidade a esta técnica de imagem continua limitada face as outras técnicas.2,3,6,8

A calcificação caseosa do ânulo da válvula mitral traduz- se em TC Cardíaca por uma massa hiperdensa bem definida, oval ou em forma de crescente, com calcificações periféricas e geralmente ao longo do anel mitral posterior, sem evidência de captação de contraste.1,2,5 Acredita-se que a hipodensidade central seja secundária ao material liquefeito que preenche o centro da lesão.2,3,5,6

No caso exposto, não foi utilizada sincronização ECG ou adquiridas imagens sem contraste, por impossibilidade técnica, aspetos que poderiam condicionar a avaliação das estruturas cardíacas. Contudo, dadas as dimensões, a localização e a elevada densidade demonstrada pela massa, compatível com conteúdo cálcico, o diagnóstico mais provável de calcificação caseosa do anel da válvula mitral manteve-se.

Na RMC, apresenta-se como uma massa bem definida, que em T1 exibe hipersinal central e hipossinal periférico. Nas sequências ponderadas em T2, hipossinal central, mas com anel de hipersinal relativamente ao miocárdio adjacente. Não demonstra captação de contraste paramagnético, embora, por vezes, ocorra realce tardio traduzindo fibrose associada.1,2,3,5,6,8

Os achados do presente caso, embora não patognómicos, são muitos sugestivos de calcificação caseosa da válvula mitral. Assim, dada a baixa probabilidade de outras etiologias, nomeadamente malignas, e atendendo à estabilidade clínica da examinada, decidiu-se optar por vigilância em consulta em detrimento de procedimentos invasivos como biópsia ou excisão cirúrgica. O bom estado geral da examinada, sem significativa repercussão, adequa- se ao diagnóstico proposto.

Por ser uma patologia pouco frequente e pouco familiar para os radiologistas não dedicados à área da radiologia cardíaca, pode ser potencialmente mal interpretada. Os principais diagnósticos diferenciais a considerar incluem outras massas intracardíacas, como tumores (mais comumente mixoma), abcessos ou vegetações.2,3,6

O mixoma é uma lesão intracardíaca comum, com características distintas, apresentando-se como uma massa pedunculada única, com origem na fossa oval, e que se projeta para a aurícula esquerda.2,3

Em casos atípicos podem demonstrar morfologia irregular e textura heterogénea, levando à necessidade de recorrer a outras técnicas como complemento da ecocardiografia. Na RMC exibem isosinal em T1 e hiposinal em T2. A utilização de gating cardíaco é útil no estudo de mixomas, devido à sua elevada mobilidade.2,3

Outros tumores incomuns a considerar, incluem o hemangioma da válvula mitral e lesões malignas como o leiomiossarcoma. No estudo ecográfico os hemangiomas apresentam áreas hipoecogénicas que representam vascularização tumoral e que se estendem perifericamente, não se identificando calcificações na sua dependência. Por outro lado, o leiomiossarcoma apresenta maior heterogeneidade, com áreas de necrose e calcificações.2,3

A patologia infeciosa deverá constar sempre na lista dos diagnósticos diferenciais, sendo que os abscessos intracardíacos se apresentam como coleções no interior do miocárdio/região anular, com ecogenicidade homogénea no ecocardiograma. Estes não exibem calcificações, podendo, contudo, demonstrar fluxo periférico ao estudo Doppler.2,3

Em resumo, a calcificação caseosa do ânulo da válvula mitral é uma patologia rara e benigna, associada a bom prognóstico e, na maior parte dos casos, sem necessidade de terapêutica dirigida. Embora tenha critérios diagnósticos imagiológicos bem estabelecidos, ainda são desconhecidos para muitos cardiologistas e radiologistas, podendo levar a possíveis interpretações diagnósticas incorretas e a procedimentos cirúrgicos desnecessários.

Referências

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Divulgações Éticas

Suporte financeiro: O presente trabalho não foi suportado por nenhum subsídio ou bolsa.

Recebido: 24 de Novembro de 2019; Aceito: 26 de Março de 2020

Correspondência João Ferreira Rebelo Serviço de Radiologia, Centro Hospitalar Universitário de São João, Alameda Prof. Hernâni Monteiro 4200-319 Porto, Portugal e-mail: rebelo.jmr@gmail.com

Conflitos de interesse: Os autores declaram não possuir conflitos de interesse.

Confidencialidade dos dados: Os autores declaram ter seguido os protocolos do seu centro de trabalho acerca da publicação dos dados de doentes.

Protecção de pessoas e animais: Os autores declaram que os procedimentos seguidos estavam de acordo com os regulamentos estabelecidos pelos responsáveis da Comissão de Investigação Clínica e Ética e de acordo com a Declaração de Helsínquia da Associação Médica Mundial.

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