SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.34 issue1ARP Case Report nº 24: Peribiliary Cysts - An Uncommon DiagnosisPrimary Breast Lymphoma - Case Report author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Indicators

Related links

  • Have no similar articlesSimilars in SciELO

Share


Acta Radiológica Portuguesa

Print version ISSN 2183-1351

Acta Radiol Port vol.34 no.1 Lisboa Apr. 2022  Epub Apr 29, 2022

https://doi.org/10.25748/arp.24568 

Casos Clínicos

Gastrite Erosiva Grave Induzida por AINES: Tratamento Endovascular Minimamente Invasivo

Life-Threatening NSAIDs-Induced Erosive Gastritis: Minimally Invasive Endovascular Haemorrhage Control

1Serviço de Imagem Médica, Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, Coimbra, Portugal

2Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, Coimbra, Portugal


Resumo

Os anti-inflamatórios não esteróides (AINEs) são dos fármacos mais usados a nível mundial e podem provocar efeitos adversos gastrointestinais potencialmente graves, mesmo quando usados a curto prazo. São atualmente a principal causa de doença ulcerosa péptica, que é responsável pela maioria das hemorragias digestivas altas. Após medidas gerais de suporte e estabilização hemodinâmica, a endoscopia digestiva alta é o método de eleição para confirmar o diagnóstico e tratar a hemorragia. Como segunda linha recorre-se frequentemente a embolização endovascular. O presente trabalho retrata um caso de gastrite erosiva hemorrágica aguda em jovem após toma de AINEs em doses excessivas, manifestada por quadro de hematémeses e choque hemorrágico, submetida a embolização arterial endovascular terapêutica com resultado favorável.

Palavras-chave: Hemorragia gastrointestinal; AINEs; Embolização terapêutica.

Abstract

Non-steroidal anti-inflammatory drugs (NSAIDs) are one of the most used drugs worldwide and can cause potentially serious gastrointestinal complications, even when used in the short-term. They are currently the main cause of peptic ulcer disease, which is responsible for the majority of upper gastrointestinal bleeding. After resuscitation measures and hemodynamical stabilization, upper gastrointestinal endoscopy is the preferred method to confirm the diagnosis and treat the haemorrhage. Endovascular embolization is frequently chosen as a second line therapy. The present work describes a case of acute haemorrhagic erosive gastritis in a young patient after high doses of NSAIDs, manifested by episodes of hematemesis and haemorrhagic shock, treated with endovascular arterial embolization with favourable outcome.

Key-words: Gastrointestinal haemorrhage; NSAIDs; Therapeutic embolization.

Introdução

Os anti-inflamatórios não esteróides (AINEs) são amplamente usados a nível mundial pelo seu efeito inibidor de enzimas cicloxigenases (COX) com redução das prostaglandinas mediadoras de inflamação, dor e febre. Contudo, associam-se a efeitos adversos gastrointestinais, sobretudo pelo papel das prostaglandinas na proteção da mucosa gástrica (mediado pela isoenzima COX1). Os AINEs seletivos de COX2 (responsável pelos efeitos anti- inflamatórios) têm menor risco destas complicações, mas associam-se a complicações cardiovasculares.1,2As lesões gastrointestinais podem ser precoces (horas a dias), são dependentes da dose e potência farmacológica e a gravidade da clínica é variável, desde dispepsia a hemorragia digestiva potencialmente fatal.3,4

A abordagem inicial da hemorragia digestiva alta (HDA) envolve medidas gerais de suporte e correção hemodinâmica seguida de endoscopia digestiva alta (EDA), que além de diagnóstica pode tratar a hemorragia. Quando esta persiste (5-10%) há necessidade de cirurgia ou embolização endovascular. A taxa de mortalidade cirúrgica atinge os 20- 40%, particularmente nos doentes hemodinamicamente instáveis ou com comorbilidades, nos quais a embolização endovascular pode ser uma alternativa mais segura e menos invasiva com elevado sucesso, embora apenas detete hemorragias com taxa superior a 0,5 ml/min.5

O presente trabalho visa descrever um caso de gastrite erosiva hemorrágica aguda em jovem após toma de AINES em doses excessivas e rever os seus potenciais efeitos adversos e respetivas abordagens terapêuticas e preventivas.

Descrição do Caso

Doente do sexo feminino com 21 anos de idade, que recorreu ao Serviço de Urgência (SU) por hematemeses com um dia de evolução. Referia síndrome febril refratário a anti-piréticos, episódios de vómitos alimentares e dor abdominal epigástrica com uma semana de evolução, que motivou duas idas prévias ao SU de outro Hospital, onde foi medicada com metamizol magnésico e desloratidina. Por iniciativa própria tomou adicionalmente Ibuprofeno. Negava outras queixas, antecedentes pessoais ou familiares relevantes, alergias, hábitos etílicos ou medicação habitual. Ao exame objetivo apresentava temperatura auricular de 38,8ºC e dor à palpação abdominal. Analiticamente apresentava redução do valor de hemoglobina (10.4 g/dL), em decrescendo face aos dias anteriores. No SU apresentou vários episódios de hematemeses e iniciou Ondasetron e Pantoprazol.

A EDA revelou pequenas erosões gástricas de predomínio no antro. Durante a vigilância objetivou-se redução progressiva dos valores de hemoglobina (mínimo 5.1 mg/dL) e hematémeses. Repetiu EDA, identificando- se volumoso coágulo fresco na grande curvatura, não passível de remoção. Foi então submetida a angiografia com cateterismo seletivo do tronco celíaco e superseletivo das artérias gastroduodenal e gástrica esquerda acessória (origem na esplénica), tendo-se observado área de retenção de contraste na grande curvatura gástrica (Fig. 1). Foi realizada embolização de ramos arteriais distais com partículas de álcool polivinílico e microcoils (Fig. 2). A principal hipótese de diagnóstico colocada foi a de gastropatia erosiva secundária a toma excessiva de AINEs, complicada de hemorragia e choque hemorrágico.

Durante a permanência Hospitalar recebeu múltiplos hemoderivados, com subida do valor de hemoglobina. A EDA de controlo ao 2º dia de admissão revelou duas úlceras de fundo branco na grande curvatura e parede anterior gástrica. Manteve-se hemodinamicamente estável e assintomática e foi transferida para o Hospital da sua área de residência ao 5º dia após a admissão.

Figura 1: Angiograma de subtração digital superseletivo da artéria gastroepiplóica direita, mostrando área de retenção de contraste na zona da grande curvatura gástrica (*), submetida a embolização. Seta - extremidade do microcatéter na artéria gastroepiplóica direita. GEac - artéria gástrica esquerda acessória. 

Figure 2: Angiograma de subtração digital superseletivo da artéria gástrica esquerda acessória (GEac), verificando-se em A irrigação arterial colateral à região de prévia hemorragia por pequenos ramos distais, pelo que se optou por embolizar também este território, após a qual essa irrigação deixa de ser visível (B). Após ligeira retração do cateter (C), verifica-se ausência de focos de extravasamento de contrastes e de fontes de irrigação arterial colateral nas zonas embolizadas, traduzindo embolização bem sucedida.. Setas azuis - extremidade do catéter na GEac; setas verdes - microcoils de embolização. 

Discussão

Os AINEs podem dar complicações gastrointestinais graves, mesmo quando usados a curto prazo, com lesões evidentes dentro de várias horas.3,4O risco parece ser maior no primeiro mês (presumivelmente pela adaptação posterior da mucosa), com doses maiores e combinação de vários AINEs.4 A doente deste caso desenvolveu gastrite hemorrágica grave com apenas uma semana de toma. Admitiu ter ultrapassado a dose recomendada e além do AINE prescrito pelo médico tomou adicionalmente Ibuprofeno, vendido sem prescrição médica. Embora considerado relativamente seguro, o Ibuprofeno é responsável por um número crescente de intoxicações, possivelmente pelo acesso fácil e barato.3,6

Os inibidores seletivos da COX2, desenvolvidos no sentido de reduzir os efeitos gastrointestinais, revelaram associação a complicações cardiovasculares, pelo que poderão não ser uma alternativa segura em muitos doentes. Uma alternativa melhor envolve medidas terapêuticas preventivas, nomeadamente o uso concomitante de fármacos inibidores da bomba de protões (IBPs), antagonistas histamínicos H2 ou misoprostol (análogo de Prostaglandina E2).7

A HDA tem mortalidade estimada em 10%. A grande maioria é provocada por doença ulcerosa péptica, cuja principal etiologia atualmente é o uso de AINEs.8 A EDA é o método de eleição para confirmar o diagnóstico e tratar a hemorragia, com eficácia superior a 90%. Com os avanços das técnicas de embolização transarterial, suplanta atualmente a cirurgia como tratamento de 2ª linha, sendo menos invasiva e com menos complicações.8,9

A irrigação gastroduodenal (Fig. 3A) é rica e abundante, o que embora possa dificultar a embolização, reduz a incidência de isquemia. A probabilidade de sucesso da embolização dependerá do conhecimento prévio do local da hemorragia.10 Muitos doentes apresentarão variantes arteriais anatómicas. No presente caso identificou-se artéria gástrica esquerda acessória, responsável por irrigação colateral à zona da hemorragia (Fig. 3B).

Figure 3: Representação esquemática da anatomia da irrigação arterial ao estômago e duodeno presente na maioria da população (A) e da variante anatómica da doente do presente caso clínico (B). AE - artéria esplénica; AGd - artéria gastroduodenal; AGEP - artéria gastroepipólica; AHC - artéria hepática comum; AMS - artéria mesentérica superior; APDA - arcada pancreaticoduodenal anterior; APDP - arcada pancreaticoduodenal posterior; GD - artéria gástrica direita; GE - artéria gástrica esquerda; GEac - artéria gástrica esquerda acessória; TC - tronco celíaco. Adaptado de 10. 

Apesar de não haver consenso baseado na evidência quanto ao melhor agente de embolização a utilizar em cada caso, a literatura sugere que os coils devem ser usados com esponja de gelatina, partículas ou cola.10 No caso descrito o uso de partículas PVA e microcoils revelou-se eficaz e isento de complicações, ilustrando o potencial terapêutico bem sucedido e seguro desta abordagem.

Apesar do baixo custo dos IBPs, não é consensual se a profilaxia de complicações gastrointestinais será custo- eficaz.6,7Contudo, as complicações graves além de custos económicos significativos, mais importante ainda trazem morbilidade e potencial mortalidade. Havendo estratégias preventivas, a sua aplicação não deve ser retida pelo custo financeiro associado, e a mera consciencialização da população para os riscos da toma desmedida de AINEs pode ser uma excelente forma de prevenção não dispendiosa.

A falta de sensibilização para os riscos da toma excessiva de AINEs, acrescida ao seu fácil acesso podem ter consequências nefastas, nomeadamente gastrointestinais. O presente caso clínico de choque hemorrágico por gastrite hemorrágica aguda ilustra uma complicação grave deste comportamento. É essencial alarmar os doentes para os potenciais efeitos nocivos da toma desmedida desta classe farmacológica, mesmo a curto prazo.

References

Mau S, Lovely G, Prakash KS, Punit Kaur, Sujata S, Tej PS. Current perspectives in NSAID-induced gastropathy. Mediators Inflamm. 2013:258209. [ Links ]

Mărginean MO, Melit LE, Mocanu S, Săsăran V. Ibuprofen, a potential cause of acute hemorrhagic gastritis in children - a case report. J Crit Care Med. 2018;4:143-6. [ Links ]

Clarke SF, Arepalli N, Armstrong C, Dargan PI. Duodenal perforation after ibuprofen overdose. J Toxicol Clin Toxicol. 2004;42:983-5. [ Links ]

Lichtenstein DR, Syngal S, Wolfe MM. Nonsteroidal anti-inflammatory drugs and the gastrointestinal tract the double-edged sword. Arthritis & Rheumatism. 1995;38:5-18. [ Links ]

Weledji EP. Acute upper gastrointestinal bleeding: a review. Surgery in Practice and Science. 2020;4:2666-20. [ Links ]

Hawkins C, Hanks GW. The gastroduodenal toxicity of nonsteroidal anti-inflammatory drugs: a review of the literature. J Pain Symptom Manage. 2000;20:140-51. [ Links ]

Goldstein JL, Cryer B. Gastrointestinal injury associated with NSAID use: a case study and review of risk factors and preventative strategies. Drug Healthc Patient Saf. 2015;7:31-41. [ Links ]

Širvinskas A, Smolskas E, Mikelis K, Brimienė V, Brimas G. Transcatheter arterial embolization for upper gastrointestinal tract bleeding. Wideochir Inne Tech Maloinwazyjne. 2017;12:385-93. [ Links ]

Kuyumcu G, Latich I, Hardman RL, Fine GC, Oklu R, Quencer KB. Gastrodoudenal embolization: indications, technical pearls, and outcomes. J Clin Med. 2018;7:101. [ Links ]

Loffroy R, Favelier S, Pottecher P, Estivalet L, Genson PY, Gehin S, et al. Transcatheter arterial embolization for acute nonvariceal upper gastrointestinal bleeding: Indications, techniques and outcomes. Diagn Interv Imaging. 2015;96:731-44. [ Links ]

Divulgações Éticas

Suporte financeiro: O presente trabalho não foi suportado por nenhum subsídio ou bolsa.

Recebido: 09 de Maio de 2021; Aceito: 14 de Dezembro de 2021

Correspondência: Serviço de Imagem Médica, Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, Praceta Professor Mota Pinto, 3004-561 Coimbra, Portugal, e-mail: anapsborges0593@gmail.com

Conflitos de interesse: Os autores declaram não possuir conflitos de interesse.

Confidencialidade dos dados: Os autores declaram ter seguido os protocolos do seu centro de trabalho acerca da publicação dos dados de doentes.

Protecção de pessoas e animais: Os autores declaram que os procedimentos seguidos estavam de acordo com os regulamentos estabelecidos pelos responsáveis da Comissão de Investigação Clínica e Ética e de acordo com a Declaração de Helsínquia da Associação Médica Mundial.

© Autor (es) (ou seu (s) empregador (es)) e ARP 2022. Reutilização permitida de acordo com CC BY-NC. Nenhuma reutilização comercial.

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons