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e-Pública: Revista Eletrónica de Direito Público

versão On-line ISSN 2183-184X

e-Pública vol.7 no.2 Lisboa set. 2020

 

A Fundamentalidade Subordinada do Direito de Acesso à Internet no Cenário Jurídico-Constitucional Brasileiro1

The Subordinated Fundamentality of the Right to Internet Access in the Brazilian Legal-constitutional Context



Andressa De Bittencourt Siqueira2

Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
Av. Ipiranga, 6681 – Partenon
Porto Alegre (RS) Brasil
andressa.siqueira@edu.pucrs.br



RESUMO

O estudo está alicerçado na adaptação do constitucionalismo ao desenvolvimento tecnológico, em razão de sua inserção no cotidiano e seu impacto nos direitos fundamentais. É importante, assim, analisar a fundamentalidade do direito de acesso à internet, estabelecendo-se como hipótese de pesquisa que a fundamentalidade do direito de acesso à internet não é autônoma. Logo, com a análise de doutrina, da legislação pertinente, da avaliação das Propostas de Emenda à Constituição brasileira, além de documentos internacionais, bem como das políticas públicas adotadas em âmbito federal e da investigação de dados estatísticos no índice de utilização da internet no Brasil, tornou-se possível confirmar a hipótese lançada ao início, tendo em vista que o direito de acesso à internet possui fundamentalidade subordinada a direitos fundamentais já reconhecidos, precipuamente aos direitos comunicativos. É contraproducente, portanto, a classificação como fundamental autônomo, uma vez que ao identificar um instrumento, desencadeia-se a fragmentação da fundamentalidade dos direitos.

Palavras-chave: Direitos fundamentais. Direitos comunicativos. Fragmentação dos direitos fundamentais. Acesso à internet.

Sumário: Introdução. 1. Da fundamentalidade: uma abordagem indispensável à compreensão do problema. 1.1. Catálogo de direitos fundamentais no panorama dos então denominados “novos” direitos: contextos material e formal. 1.2. Das fundamentalidades formais e materiais. 2. Do direito de acesso à internet na perspectiva dos direitos fundamentais. 2.1. Direito de acesso à internet: noções abrangentes. 2.2. Análise das perspectivas formal e material do direito de acesso à internet. 2.2.1. Da abrangência do uso da internet: exame de políticas públicas em nível federal e dados estatísticos quanto ao uso da internet no Brasil. 2.3. Fundamentalidade subordinada do direito de acesso à internet. Conclusão. Referências.


ABSTRACT

The study is based on the adaptation of constitutionalism to the technological development, due to its insertion into daily life and its impact on fundamental rights. Thus, the analysis of the fundamentality of the right to Internet access is remarkable, establishing as a research hypothesis that the fundamentality of the right to Internet access is not autonomous. By the analysis of the doctrine, in addition to the relevant legislation, the evaluation of the Proposals to Amend the Brazilian Constitution and the international documents, as well as public policies adopted at the federal level and the investigation of statistical data in the rate of use of internet in Brazil, it is possible to confirm the hypothesis launched at the beginning, since the analyzed right has its fundamentality subordinated to already recognized fundamental rights, primarily the communicative rights. It is counterproductive, therefore, to classify it as an autonomous fundamental right, because once an instrument is identified, the fragmentation of the fundamentality of rights is unleashed.

Keywords: Fundamental rights. Communicative rights. Fragmentation of fundamental rights. Access to the internet.

Summary: Introduction. 1. On fundamentality: an indispensable approach to understanding the problem. 1.1. The catalogue of fundamental rights in the panorama of the then called "new" rights: material and formal contexts. 1.2. The formal and material fundamentalities. 2. On the right to Internet access from a fundamental rights perspective. 2.1. The right to Internet access: general concepts. 2.2. Analysis of the formal and material perspectives of the right to Internet access. 2.2.1. The coverage of Internet use: a review on the public policies at the federal level and on statistical data on Internet use in Brazil. 2.3. Subordinated fundamentality of the right to Internet access. Conclusion. References.




Introdução

Com o uso exponencial de dispositivos tecnológicos que dispõem de acesso à internet, mostra-se imprescindível a apreciação de sua influência no panorama constitucional dos direitos fundamentais. O acesso à internet tem o condão de ser fundamental – no sentido coloquial do termo – para um contingente populacional, mas emerge, então, a indagação se tal característica bastaria para o reconhecimento de uma fundamentalidade Jurídico-Constitucional.

Frente ao cenário proposto, a presente pesquisa tem como alicerce o seguinte problema de pesquisa: de que maneira pode-se estender a fundamentalidade conferida aos direitos fundamentais já reconhecidos ao direito de acesso à internet? Sendo assim, em linha de hipótese de pesquisa, estabelece-se a seguinte proposição: a fundamentalidade do direito de acesso à internet não é autônoma, mas subordinada aos direitos fundamentais já reconhecidos.

Como objetivo geral, a pesquisa tenciona estabelecer o modo pelo qual o direito de acesso à internet pode ser revestido de fundamentalidade, enquanto que os objetivos são tecidos na seguinte estrutura: (i) analisar o modo pelo qual reconheceram-se os direitos fundamentais já previstos constitucionalmente; (ii) investigar o conteúdo dos direitos materialmente fundamentais e dos direitos formalmente fundamentais; (iii) empregar o que foi inferido acerca do reconhecimento de direitos fundamentais no ordenamento jurídico brasileiro ao então direito de acesso à internet; e, por fim, (iv) desenvolver uma nova ótica de extensão da fundamentalidade desses direitos ao direito de acesso à internet.

No que tange à metodologia, emprega-se o método hipotético-dedutivo de abordagem, uma vez que se estabelece como linha diretriz que a fundamentalidade do direito de acesso à internet, no cenário Jurídico-Constitucional brasileiro, não é autônoma, mas, sim, vinculada à de direitos fundamentais já reconhecidos. Como método de procedimento, aplicam-se o funcionalista e o estruturalista, concomitantemente, porquanto parte-se tanto para a observação do acesso à internet na sociedade brasileira, como parte-se concretamente do fenômeno de utilização da tecnologia a fim de, em seguida, propor uma perspectiva abstrata do problema, de modo que seja possível retornar ao concreto com um arquétipo ideal estruturado. Como método de interpretação, emprega-se o sistemático-teleológico, uma vez que se percebe o ordenamento Jurídico-Constitucional brasileiro como um sistema complexo e organizado, destinado a satisfazer determinados fins. Evidentemente, a pesquisa é majoritariamente teórica e bibliográfica, porquanto é lastreada na bibliografia especializada – somada a uma análise de dados quantitativos do uso da internet no Brasil –, ao mesmo tempo em que a pesquisa detém seu cunho exploratório e explicativo, uma vez que coletam-se e analisam-se dados, apontando não apenas suas causas determinantes, como também a pluralidade de consequências advindas do reconhecimento do direito de acesso à internet como fundamental. Para a presente análise, perquiriu-se precipuamente, além da Constituição brasileira de 1988, o Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014), no âmbito da Assembleia Geral da ONU, o Relatório do Relator Especial sobre a Promoção e Proteção do Direito à Liberdade de Opinião e Expressão, Frank La Rue, bem como as Resoluções A/HRC/20/L.13, A/HRC/32/L.20 e A/RES/68/167, para além do documento final da UNESCO General Conference 38 C/53, August 10th, 2015 e do Relatório sobre a Liberdade de Expressão e Internet, no âmbito da OEA. Quanto a projetos de lei, analisaram-se a PEC n. 185/2015 e a PEC n. 6/2011. Quanto à análise estatística, perquiriram-se os dados e estimativas publicadas pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (TIC Domicílios 2005, 2012, 2015, 2017 e 2018), e, para fins complementares, os divulgados pela International Telecommunication Union (ITU) e pela Statistica. Quanto a políticas públicas a nível federal, analisam-se os programas PNBL, PBI, GESAC, e, no que foi possível analisar em perspectiva futura, o ainda embrionário PNC. Para perquirir uma posição teórica acerca da matéria, percorre-se a mais variada gama de autores atinentes aos direitos fundamentais e ao uso da internet, a partir de diálogos e contraposições para uma posição consentânea ao problema proposto.

Cabe dizer, nesse ponto de apreciação, que de modo algum almeja-se o esgotamento da temática. A pesquisa apresentada pretende meramente sugerir uma outra visão, a partir de nova perspectiva de avaliação do problema, não pretendendo ser uma resposta única ao tratamento constitucional do direito de acesso à internet.

 

1 Da fundamentalidade: uma abordagem indispensável à compreensão do problema

Antes revestir-se o direito de acesso à internet de fundamentalidade, é necessária uma análise de aspectos basilares da teoria geral dos direitos fundamentais para melhor compreensão do proposto. Em função disso, nesse primeiro bloco, perquire-se o modo pelo qual os direitos fundamentais já previstos constitucionalmente foram reconhecidos, como também investigam-se as fundamentalidades materiais e formais.

 

1.1. Catálogo de direitos fundamentais no panorama dos então denominados “novos” direitos: contextos material e formal

No que tange à determinação de quais sejam os direitos fundamentais reconhecidos pela ordem jurídica brasileira, desde já se estabelece que o direito constitucional positivo não se limita unicamente à literalidade do texto constitucional, abarcando não apenas os direitos fundamentais sob uma então perspectiva formal, como pela perspectiva material3. Os direitos fundamentais, em vista disso, são aqueles previstos constitucionalmente, isto é, são positivados dentro de cada Estado na esfera constitucional4.

Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins aprofundam que “para se poder falar em direitos fundamentais, deve-se constatar a presença de três elementos. (a) Estado; […] (b) Indivíduo; […] (c) texto normativo de regulação da relação entre Estado e indivíduos”5, o qual precisa ser dotado de supremacia constitucional6. Pontua-se fortemente que não cabe a lei a criação de direitos fundamentais, uma vez que “os direitos fundamentais se fundam na Constituição, e não na lei – como o que se deixa claro que é a lei que deve mover-se no âmbito dos direitos fundamentais, não o contrário”7.

No panorama Jurídico-Constitucional brasileiro, tais direitos são previstos tanto (i) no título II da Constituição (dos direitos e garantias fundamentais), bem como (ii) em outros títulos, podendo tal conceito ser estendido aos (iii) tratados internacionais os quais a República Federativa do Brasil seja parte, no caso de compatibilidade de conteúdo, além (iv) dos princípios e regime adotados pela Constituição, incluindo aqui não apenas os princípios constitucionais já reconhecidos, como também, no que couber8, os panoramas legislativo e executivo, na promoção de políticas públicas9. É nesse arquétipo, portanto, em que se aponta o reconhecimento de outros direitos fundamentais, chamados de direitos fundamentais implícitos no texto constitucional, então adjetivados de “novos” direitos10.

Os direitos manifestamente fundamentais, uma vez que não há quaisquer ambiguidades quanto a isso, são aqueles constantes do título II, acerca dos direitos e garantias fundamentais, permeando os artigos 5.º ao 17 da Constituição brasileira (doravante também CRFB). No entanto, não pode incorrer-se em conclusões precipitadas com base na localização topográfica dos direitos elencados constitucionalmente, porquanto seria demasiadamente ingênuo apontar que um único título seria suficiente para albergar todo e qualquer direito fundamental a ser reconhecimento por determinada ordem jurídica. Com efeito, consta ainda no título II a aplicabilidade imediata das normas constitucionais (artigo 5.º, § 1.º, da CRFB), cuja normativamente estende-se a todo e qualquer direito fundamental, sendo ele arrolado expressamente, ou não, na relação de direitos fundamentais do capítulo supracitado. O segundo bloco de direitos, a partir da classificação aqui proposta, alberga aqueles previstos em outros títulos da Constituição, que não os do título II. Em outros termos, são direitos revestidos de fundamentalidade autônoma em razão da concretização de um ideal de dignidade (da pessoa) humana adotado pelo Estado11. Apesar tudo, assumindo as falhas de uma classificação, pode-se dizer estes também encontram albergue indiretamente no título II, uma vez que se vinculam ao regime adotado pela Constituição, sob os preceitos da cláusula de abertura do artigo 5.º, § 2.º, da CRFB. O terceiro bloco de direitos fundamentais englobam aqueles previstos em tratados internacionais que a República Federativa do Brasil seja parte, com fulcro no artigo 5.º, § 2.º, da CRFB, segundo a qual incluem-se dentre os direitos e garantias reconhecidos pela Constituição, integrando, assim, o denominado bloco de constitucionalidade, cujas discussões pormenorizadas – jus cogens, supralegalidade etc. – deslocam-se para momento oportuno, já que não se trata do enfoque aqui proposto

Por fim, o último bloco da classificação aqui proposta – e a qual mormente é de maior interesse – permeia os direitos fundamentais decorrentes dos princípios e regime adotados pela Constituição (artigo 5.º, § 2.º, da CRFB), guardando uma relação intrínseca com o sentido material dos direitos fundamentais. Os princípios sobre os quais está se tratando não se limitam àqueles previstos no título I – princípios fundamentais adotados pela Constituição – (artigos 1.º ao 4.º, da CRFB), já que os princípios adotados pela Constituição a permeiam em sua totalidade, sendo possível identificá-los em todo o texto constitucional. O regime supra-assinalado, de igual modo, guarda íntima relação com a materialidade dos direitos fundamentais. José Joaquim Gomes Canotilho, inclusive, prefere o termo “fattispecie aberta” para relacionar os direitos materialmente fundamentais em razão de uma concepção mais aberta do contexto normativo constitucional para sua melhor concretude e desenvolvimento12. O regime, vale dizer, não se limita ao regime político democrático, mas ao conjunto de disciplinas, estatutos, normas, para além das mais variadas formas de condução e concretização de normas constitucionais, envolvendo aqui não apenas a legislação infraconstitucional, como também políticas públicas. De qualquer sorte, ao fim e ao cabo, o artigo 5.º, § 2.º, da CRFB, viabiliza o reconhecimento direitos fundamentais implícitos à Constituição, chancelando a dinamicidade do texto constitucional no tempo, não sendo, portanto, um documento estático.

Ainda assim, deve-se ter prudência no reconhecimento de então “novos” direitos implícitos ao texto constitucional, a fim que não haja a banalização da Constituição a ponto de tal reconhecimento tornar-se algo não apenas inadequado, como também improfícuo13. Como bem aponta Ingo Wolfgang Sarlet, não há o que falar propriamente em novos direitos, uma vez que estes apenas concretizam preceitos constitucionais já existentes14, enquanto que José Carlos Vieira de Andrade os denomina de “extraconstitucionais”15. Há, em verdade, uma recontextualização de valores e princípios nos novos contornos que a vida oferece. Em outros termos, direitos implícitos consistem na manifestação de um direito já existente num novo contexto, a partir de novos problemas que surgem. Logo, há direitos que podem vir a ser implícitos, mas não são propriamente novos. Aliás, nem todo direito implícito terá sua fundamentalidade autônoma, v.g. no caso do direito de acesso à internet, o é subordinada.

Logo, um direito implícito não precisa estar previsto na legislação para ser considerado como juridicamente fundamental16, sendo tais esferas relacionadas, mas independentes, isto é, a legislação apenas pode vir a concretizar direito implícito, mas não cria direito novo. Afinal, o fundamento é a Constituição e não a legislação, já que direitos fundamentais possuem fundamento constitucional. Na medida em que a legislação inove e estabeleça direitos subjetivos, estes consistiriam em direitos legais17. Isso ocorre em razão de o constituinte originário não conceder ao legislador a possibilidade estender como bem entender o catálogo de direitos fundamentais18. Isso, inclusive, caso fosse possível, significaria permitir o alargamento infinito das cláusulas pétreas, previstas no artigo 60.º, § 4.º, da CRFB, não havendo mais fronteiras v.g. nas hipóteses de interposição de mandado de injunção e de ingresso de ação direta de inconstitucionalidade por omissão, dentre outras formas efetivação de direitos voltadas unicamente à promoção daqueles dotados de fundamentalidade.

 

1.2. Das fundamentalidades formais e materiais

Nesse ponto da apreciação, tece-se considerações – ainda que não exaustivas –acerca do conteúdo dos direitos fundamentais, tanto quanto à sua forma, quanto à sua matéria. Seguindo o proposto por Robert Alexy, num primeiro momento realiza-se uma abordagem abstrata dos direitos fundamentais, estudando quais critérios pelos quais uma norma configura-se fundamental, para que posteriormente seja possível assinalar uma abordagem concreta, apontando quais as normas de um ordenamento são normas de direitos fundamentais19. Com efeito, há duas classes de normas fundamentais: as normas de direito fundamental estabelecidas diretamente pelo texto constitucional e as normas de direito fundamental atribuídas20. Com base nisso, normas de direitos fundamentais podem ser encaradas a partir de dois aspectos: pelo aspecto formal e pelo aspecto material. Para que um direito assuma a roupagem de um direito fundamental, haverá quem defenda apenas o preenchimento do aspecto formal da norma, outros, apenas do aspecto material21, e outros ainda de as normas de direitos fundamentais devam preencher ambos22.

Grosso modo, para o preenchimento do critério material, importa o conteúdo. Caso o conteúdo se enquadre dentro daquilo que se considera matéria constitucional fundamental, a norma que trate desse conteúdo será constitucional e fundamentais. Em outros termos, a fundamentalidade material dos direitos “decorre da circunstância de serem os direitos fundamentais elemento constitutivo da Constituição material, contendo decisões fundamentais sobre a estrutura básica do Estado e da sociedade”23, vinculando-se ao já mencionado ideal de dignidade humana adotado pelo Estado através da Constituição24. Englobando o cenário de direito constitucional positivo25, o critério material da fundamentalidade dos direitos se situa “nas estruturas básicas do Estado e da Sociedade”26.

Por outro lado, para o preenchimento do critério formal, valoriza-se a topografia da norma, id est onde ela se encontra. Caso a norma esteja no texto escrito promulgado pelo órgão dotado de poder constituinte, não importando o conteúdo, a norma terá valor constitucional. Logo, os direitos formalmente fundamentais são “aquelas posições jurídicas da pessoa – na sua dimensão individual, coletiva ou social – que, por decisão expressa do Legislador-Constituinte foram consagradas no catálogo dos direitos fundamentais”27. Leonardo Martins e Dimitri Dimoulis, nessa linha, apontam que “um direito é fundamental se e somente (condição necessária) for garantido mediante normas que tenham a força jurídica própria da supremacia constitucional”28. Consideramos aqui não apenas o título II, mas o texto constitucional por completo, como o conceito mínimo dos direitos fundamentais. Isto é, parte-se desse conceito mínimo podendo estendê-lo a direitos fundamentais não previstos expressamente no texto constitucional29, v.g. aos direitos implícitos.

 

2 Do direito de acesso à internet na perspectiva dos direitos fundamentais

Nesse segundo bloco da apreciação, debruça-se de modo especial ao problema proposto: de que modo poder-se-ia incluir na teoria dos direitos fundamentais o direito de acesso à internet? Em vista disso, em um primeiro momento, empregar-se-á o inferido acerca do reconhecimento de direitos fundamentais no ordenamento jurídico brasileiro ao então direito sob análise, para que, em seguida, seja possível a proposta de uma nova ótica de extensão da fundamentalidade desses direitos ao direito de acesso à internet.

 

2.1. Direito de acesso à internet: noções abrangentes

O direito de acesso à internet, no cenário brasileiro, não se encontra no texto constitucional, mas, sim, no Marco Civil da Internet (Lei n. 12.965/2014). No artigo 4.º, inciso I, do referido diploma legal, consta o “direito de acesso à internet a todos” como objetivo da disciplina do uso da internet no Brasil. Para além disso, nos incisos IV, V e XII do artigo 7.º, é garantido que “o acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania, e ao usuário são assegurados os seguintes direitos: não suspensão da conexão à internet, salvo por débito diretamente decorrente de sua utilização (IV); manutenção da qualidade contratada da conexão à internet (V); e acessibilidade, consideradas as características físico-motoras, perceptivas, sensoriais, intelectuais e mentais do usuário, nos termos da lei (XII)”. O direito de acesso à internet, portanto, situa-se no panorama legislativo e infraconstitucional, do ponto de vista formal, dos direitos, caracterizado de uma roupagem legal.

Ainda que se esteja no panorama estatal de reconhecimento de direitos fundamentais, é importante ressaltar a problemática do direito de acesso à internet na seara internacional, a partir da edição de ao menos quatro documentos no âmbito do Sistema ONU. O primeiro, editado em 2011, consiste no Relatório do Relator Especial sobre a Promoção e Proteção do Direito à Liberdade de Opinião e Expressão, Frank La Rue, no âmbito da Assembleia Geral da ONU (Resolução A/HRC/17/27)30. Em seguida, nos anos de 2012 e de 2016, foram aprovadas pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU, respectivamente, duas resoluções – Resolução A/HRC/20/L.1331 e Resolução A/HRC/32/L.20 – 32, as quais abordam a promoção, proteção e gozo dos direitos humanos na internet. Nesse interregno, em 2013, a Assembleia Geral das Nações Unidas, por meio da Resolução A/RES/68/167, a qual abordou o direito ao livre desenvolvimento da personalidade na era digital33, “reconhece a natureza global e aberta da internet e o rápido avanço das tecnologias da informação e comunicação como força motriz para acelerar o progresso rumo ao desenvolvimento nas suas diversas formas”34. Também, em 2015, a UNESCO, através da General Conference 38 C/53, August 10th, 2015, “apoia o conceito de universalização da internet, com uma internet baseada nos direitos humanos, e os princípios da abertura, da acessibilidade e da participação multisetorial”35. Além disso, em 2013, a Organização dos Estados Americanos – agora no âmbito do sistema americano de proteção de direitos humanos – também emitiu um Relatório sobre a Liberdade de Expressão e Internet, no qual “fomenta-se o livre fluxo de informações, de ideias e expressões, evitando o surgimento de barreiras tecnológicas territoriais ou de qualquer outra natureza que possam fragmentar a internet em nível nacional ou regional, e a consequente restrição à liberdade de expressão e ao acesso à informação”36. Logo, na seara internacional, com base na leitura minuciosa dos referidos documentos, não houve efetivamente o reconhecimento de um novo direito – o de acesso à internet –, mas, sim, um reconhecimento da importância do acesso à internet para a promoção de direitos já reconhecidos, como o direito de acesso à informação e à liberdade de expressão.

Tal panorama internacional é importante ressaltar-se, uma vez que este pressionou a edição, no Brasil, de duas Propostas de Emenda à Constituição (PECs), as quais visam à inserção no texto constitucional do direito de acesso à internet como fundamental. A PEC n. 6/2011, já arquivada, detinha o escopo de inserir o direito de acesso à internet entre os direitos sociais previstos no artigo 6º, CRFB37. Ainda em tramitação, e recentemente desarquivada, a PEC n. 185/2015, a seu turno, tem o condão de “acrescentar o inciso LXXIX ao artigo 5.º da Constituição Federal, para assegurar a todos o acesso universal a Internet entre os direitos fundamentais do cidadão”38.

Antes de aplicarmos propriamente o analisado no primeiro bloco, cabe tecerem-se comentários sobre os termos que compõem o então direito: de (i) acesso à (ii) internet. Com efeito, este não seria um direito subjetivo à internet de per se mas um direito de acessá-la. Ainda assim, na medida em que se fala em acesso, este deve dar-se de forma livre e sem limitações. O mesmo ocorre com o direito subjetivo e fundamental de acesso à informação (artigo 5.º, inciso XXXIII, CRFB), cuja prerrogativa é quanto ao acesso e não à informação em si mesma. No entanto, o ponto nodal na análise da nomenclatura do direito toca na identificação do que essencialmente se está acessando: a internet, a qual caracteriza-se por “cria[r] uma relativa paridade entre emissores e receptores, funcionando como um verdadeiro nivelador (leveller) da interacção comunicativa”39. Portanto, a internet se trata de um meio e não de um fim e, em função de o direito identificar um instrumento, infere-se que a escolha terminológica não tenha sido a mais consentânea.

A identificação de meios – in casu, a internet – 40 na seleção de direitos subjetivos é contraproducente. Vale ressaltar que ao selecionar um único meio, restringe-se em apenas uma forma – somente através da internet – de estar-se conectado em rede. Não se reconhece, a partir dessa escolha de termos, apenas o carácter permanentemente evolutivo das tecnologias e de formas de criação de redes de contato e comunicação de informações. Não apenas já existem as redes de conexão específicas (e.g. ethernet, intranet etc.), como também o termo “internet” pode vir a tornar-se obsoleto. Por exemplo, uma expressão até então sinônima de “internet” seria “rede mundial de computadores”, mas a evolução tecnológica para o avanço e criação de novos dispositivos digitais colocou em xeque a continuidade de empregar essa expressão como sinônima.

 

2.2. Análise das perspectivas formal e material do direito de acesso à internet

Conforme pontuado nas linhas acima, percebe-se que o então direito de acesso à internet não consta no texto constitucional fornecido pelo constituinte, pela perspectiva formal. Não conta em título algum do texto constitucional de modo expresso, como também não consta reconhecido em tratados internacionais como direito humano. Ainda assim, cabe analisar se os princípios e regime adotados pela Constituição brasileira podem englobar o direito de acesso à internet como direito materialmente material, incluído no catálogo a partir da cláusula guarda-chuva prevista no artigo 5.º, § 2.º, CRFB, tendo em vista o seu reconhecimento no panorama legislativo e de políticas públicas, evidenciando o acesso à internet como pertencente dentre a estrutura básica e fundamental do Estado brasileiro.

De uma perspectiva formal, não há o que falar, por óbvio, em direito fundamental de acesso à internet. De um ponto de vista material, por outro lado, pode-se afirmar que há a possibilidade de o direito de acesso à internet ser revestido de fundamentalidade jurídica. Analisa-se, desse ponto em diante, a então materialidade, por meio de políticas públicas adotadas pelo Governo Federal nos últimos anos, além de dados estatísticos do alcance do uso da internet no Brasil, não apenas para verificação da correta aplicação das políticas públicas, como também para acompanhar o alcance do acesso por entre as diferentes camadas sociais.

 

2.2.1. Da abrangência do uso da internet: exame de políticas públicas em nível federal e dados estatísticos quanto ao uso da internet no brasil

Como política pública41, para a democratização do acesso à internet, traz-se o exemplo do Programa Nacional de Banda Larga (doravante apenas PNBL) (Decreto n. 7.175/2010). Implementado em 2011, o PNBL foi encerrado em dezembro de 2018, a partir do Decreto n. 9.612/2018, mas já se encontrava em declínio desde o ano de 2016, em que ocorreu o fim da vigência dos termos de compromissos assinados com as operadoras de comunicação42. O Decreto n. 9.612/2018 também revogou o Decreto n. 8.776/2016, o qual havia estabelecido o Programa Brasil Inteligente (doravante apenas PBI), elaborado para substituir o PNBL, o qual não chegou ao menos a ser posto em prática. No panorama atual, e a nível federal de edição e aplicação de políticas públicas, há o programa Governo Eletrônico: Serviço de Atendimento ao Cidadão (doravante apenas GESAC), com foco em locais socialmente vulneráveis, regulamentado pela Portaria n. 7.154/2017, do Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (doravante apenas MCTIC)43. Ainda assim, além desse, dentre um dos substitutivos para os extintos programas, há a proposta do MCTIC para o então denominado Plano Nacional de Conectividade (PNC). No entanto, não há previsão de implementação dessa nova proposta e, até o presente momento, também não se editou decreto, nem portaria, para a criação da referida política pública.

No que tange ao PNBL, o objetivo do programa consistia na massificação do uso da internet, não na sua universalização. A partir do acesso massificado, há apenas o ingresso no dia-a-dia da população, alcançando uma quantidade expressiva de pessoas, mas não há o que se falar inclusão digital de todo e qualquer cidadão44. De outra perspectiva, a universalização implica na disponibilização da internet à baixo custo, sem discriminação de classe social, condições financeiras, ou local de moradia45. Tendo em vista o módico objetivo estipulado pelo programa, não é de se espantar a permanência de um hiato digital. Pela escolha terminológica, critica-se, por fim, que não é finalidade do programa a inclusão dos indivíduos considerados como excluídos digitais, e.g. seja por questões econômicas, de idade, de conhecimento tecnológico46.

Para que efetivamente ocorra a universalização do acesso à internet, há três premissas basilares: (i) a disponibilidade; (ii) a acessibilidade; e (iii) a tangibilidade47. A disponibilidade está relacionada à cobertura do serviço e a um acesso público, para além de conexões emergenciais gratuitas. A acessibilidade, por sua vez, está vinculada a uma prestação de serviço adequada, a fim de incluir pessoas com deficiência, como também a um serviço de suporte em caso de falhas, como também na continuidade na prestação do serviço de internet, sem limitação de espaço ou tempo. A tangibilidade, por fim, tem relação com o custo para o acesso, que deve incluir a maior gama de meios de pagamento possíveis e por um preço acessível (dinheiro em espécie, cartões de crédito e débito, etc.)48. A universalização, ao fim e ao cabo, precisa ocorrer tanto de maneira quantitativa como qualitativa. A primeira, ao atingir o maior número de pessoas; a segunda, na medida em que todas essas pessoas possam não apenas utilizar a internet, mas também que possam acessar uma internet de qualidade.

O PNBL foi severamente criticado à época. Ao estipular a oferta de uma velocidade de internet baixíssima (de 512 a 784 Kbps)49, colocou-se em xeque a real efetividade do programa. Para além disso, tendo em vista que os termos de compromissos foram firmados pelo então Ministério das Comunicações com as principais concessionárias de telefonia, em regime privado, com a gestão da Telebrás, “impossibilit[ou-se] o Estado de impor preços ou metas de ampliação do serviço”50. Posteriormente, aumentou-se a velocidade de internet para 1Mbps. Todavia, o ínfimo acréscimo não foi suficiente para que fosse possível fornecer uma internet de qualidade à população, uma vez que 1Mbps “equivale a duas horas e quarenta minutos de espera para baixar um arquivo de 1,2 Gb”51. Em que pese o PNBL não tenha cumprido a meta de estabelecida de levar o acesso à internet à 40 milhões de lares, tal política pública – sem ignorar suas limitações – conseguiu conectar 32,3 milhões52 de domicílios brasileiros.

Para fins de completude, em que pese o PBI não tenha sido posto em prática, refere-se que o seu objetivo seria a universalização do acesso à internet (artigo 1.º, do Decreto n.º 8.776/2016), a partir da ampliação das redes de internet fibra ótica, como também da banda larga móvel, cujo enfoque se daria em vilas e aglomerados rurais, sob a coordenação do à época Ministério das Comunicações (atualmente Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações). De outro lado, o hipotético – e ainda em estágio embrionário – PNC é uma possibilidade, nesse cenário de desafios e reveses tecnológicos. O MCTIC, inclusive, abriu consulta pública para o referido projeto do PNC em outubro de 2018, com o término do recebimento de sugestões e propostas em novembro do mesmo ano. No entanto, desde que ocorreu a mudança de governo federal em janeiro de 2019, não foram encontrados indícios de movimentação e evolução do projeto.

De modo especial, o GESAC, único programa a nível federal atualmente cujo escopo permeia a democratização do acesso à internet, além de fornecer serviço de internet gratuitamente, possui parceria com o Ministério da Educação e o Ministério da Saúde. Nessas parcerias, não há apenas a possibilidade de médicos prestarem atendimento a pacientes em áreas isoladas através da telemedicina53, como também vale ressaltar que foram instalados ao menos três mil e seiscentos pontos de acesso à internet, dos quais três mil vinculam escolas pertencentes ao Programa Escola Conectada, possibilitando, de acordo com informações prestadas pelo MCTIC, que mais de um milhão de alunos possam acessar a rede54. Em que pese o GESAC esteja regulamentado de modo infralegal, está situado num complexo de políticas públicas das telecomunicações (Decreto n. 4.733/2003), tendo como objetivo a inclusão digital e social da população brasileira, apoiando localidades em estado de vulnerabilidade social, em periferias, em áreas rurais, ampliando o acesso à internet.

Dentre os mais variados aspectos os quais podem ser ressaltados quanto ao GESAC, além da gratuidade, dá-se ênfase ao tráfego médio diário55 estabelecido pelo artigo 5.º, V, do anexo único da Portaria, o qual deve ter a marca de 10 MB (dez megabytes) em cada local de instalação dos equipamentos necessários, considerando a média dos últimos 60 dias, excetuando-se os atendimentos aos habitantes das localidades indicadas por instituição proponente municipal (localidades beneficiárias). Em que pese seja estabelecida uma velocidade de conexão mínima a ser fornecida pelo provedor de internet para que o acesso à internet ocorra, abre-se aqui um espaço para crítica, tendo em vista que a Portaria não interpõe um mínimo de velocidade a ser viabilizado às entidades beneficiárias, deixando-as em um limbo uma vez que podem vir a receber uma velocidade de conexão com a internet demasiadamente inferior ao suficiente para que seja possível navegar na internet com qualidade. É imprescindível também mencionar, nessa baila, que a Portaria possui um viés ingênuo de relação entre o mero acesso às tecnologias informacionais e a inclusão digital, quando, na verdade, a inclusão digital faz parte de um complexo com uma variada gama de perspectivas56, não se limitando ao mero acesso.

Reconhece-se assim, os avanços já alcançados em matéria de democratização do acesso à internet. No entanto, tais avanços ainda não atingiram níveis de universalização do acesso, sendo, ainda, incipientes, conforme se verá nas próximas linhas a partir de dados estatísticos quanto ao uso da internet no Brasil. A relevância das políticas implementadas é demarcada pelo enfoque em contingentes sociais vulneráveis e afastados dos grandes centros urbanos, mas possui um desempenho abaixo das expectativas no que tange, exemplificativamente, aos idosos e às pessoas com deficiência.

Conforme já reconhecida em outros estudos57, tecem-se nesse ponto da apreciação comentários sobre a baixa efetividade das políticas públicas brasileiras para o acesso à internet, traz-se aqui uma evolução, ainda que desigual, dos dados estatísticos da abrangência do acesso. Em 2005, 17% dos domicílios urbanos possuíam computador, dos quais apenas 13% destes possuíam conexão à internet.58 O Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (doravante apenas Cetic.br) – vinculado às Nações Unidas e ao Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) – na apresentação dos dados em 2012 da pesquisa TIC Domicílios, pontuou o fato de que aquele ano foi o primeiro em que a proporção de usuários da internet foi maior do que a de não usuários59. Em 2015, há uma elevação considerada do consumo de mídia pela população brasileira, tendo em vista que 49% dos entrevistados pelo Cetic.br utilizavam, à época, a rede com frequência60. Já em 2016, com base em dados fornecidos pelo panorama setorial da internet do Cetic.br, 64,7% dos brasileiros com 10 anos de idade ou mais já haviam utilizado a internet, dos quais, desse contingente, 85% eram jovens entre 18 e 24 anos. A partir desse dado, é possível inferir um hiato digital em relação aos idosos, tendo em vista que, com base no censo realizado no mesmo ano de 2016, apenas 25% das pessoas com mais de 60 anos fizeram uso da rede mundial de computadores61.

Com base na última pesquisa publicada em março de 201962, referente ao ano de 2018, há aspectos a serem observados. Quanto a amostragem total de domicílios com acesso à internet, por classe social, 99% da classe “A” conta com tal acesso, ao passo que as classes “B” e “C” possuem 84% e 76% dos domicílios com acesso a internet, respectivamente. No entanto, as classes “D” e “E” ainda contam com apenas 40% dos domicílios com acesso à internet. O hiato digital, vale dizer, ainda persiste na zona rural, a qual conta com 44% dos domicílios que possuem acesso, comparado ao também não tão alto índice urbano de acesso – de 70%. Ainda assim, ao realizar uma análise evolutiva do índice de domicílios com acesso à internet, em dez anos, houve um salto de 18% (em 2008) para 67% (em 2018), atingindo a marca de 46,5 milhões de domicílios com acesso à internet, em que pese 30% dos domicílios não dispunham atualmente nem de computador, nem de internet.

Vale ressaltar, com base ainda na pesquisa de 2018, que 70% da população brasileira – 126, 9 milhões de usuários da internet a utilizaram nos últimos três meses – é usuária ativa dos recursos digitais em rede, sendo o telefone celular o dispositivo mais utilizado para acesso individual com base no total de usuários de internet – 97%. Apesar dos números serem continuadamente exponenciais, as áreas rurais ainda encontram limitação, uma vez que apenas 49% da população rural dispõe conexão com a internet63 e apenas 48% das classes “D” e “E”.

Em 2018, além disso, no momento em que questionados sobre as habilidades para uso do computador – copiar ou mover arquivos ou pastas, copiar e colar informações em um documento, anexar arquivos em e-mails, usar uma planilha de cálculo, instalar novos equipamentos (e.g. modem, impressora, câmera, microfone), instalar programas de computador ou aplicativo, criar apresentações de slides, transferir arquivos entre computador e outros equipamentos ou dispositivos, criar programa de computador usando linguagem de programação – 76% dos analfabetos ou em nível de educação infantil afirmaram não ter realizado quaisquer uma dessas atividades, assim como 56% dos idosos (com 60 anos ou mais)64.

Com base no total de usuários da internet em 2018, ressalta-se de modo especial, no que tange à atividades comunicativas online, que 92% realizaram envio de mensagens, 70% conversaram por chamada de voz ou vídeo, 75% usufruíram das redes sociais, 57% enviaram e receberam e-mails, enquanto que o uso de microblogs e de participação de listas de discussão ou fóruns limitou-se a um pequeno contingente (7% e 9%, respectivamente)65. Quanto à atividade de busca por informação, em 2018, 55% procuraram informações sobre produtos e serviços, enquanto que 45% buscaram informações relacionadas à saúde ou a serviços de saúde66. No que tange à atividades na internet relacionadas com educação e trabalho, em 2018, com base no total de usuários, 42% realizaram atividades ou pesquisas escolares, 10% fizeram cursos à distância, 24% buscaram informações sobre cursos de graduação, pós-graduação e de extensão, 38% estudaram na Internet por conta própria, 26% usaram serviço de armazenamento na internet e 33% realizaram atividades de trabalho67. Com base no total de pessoas que nunca utilizaram a internet, dos motivos declarados para a não utilização, 47% por falta de necessidade, 63% por falta de interesse, 73% por falta de habilidade com o computador, 35% por não ter onde usar, 47% por ser muito caro¸46% por preocupações com segurança ou privacidade, 47% para evitar o contato com conteúdo perigoso, e 2% por outros motivos68. A partir disso é importante destacar que 69% dos analfabetos/educação infantil, 78% do contingente com faixa de idade de 45 a 59 anos, 72% dos idosos com 60 anos ou mais, e 71% daqueles com renda familiar menor ou até um salário mínimo declararam nunca utilizaram a internet por falta de habilidade com o computador, além dos 60% daqueles com renda familiar menor ou até um salário mínimo que nunca utilizaram o dispositivo em razão do preço dos dispositivos digitais ser elevado69.

Para fins de completude, a nível mundial, por sua vez, com base nos dados divulgados pela ITU, na série Digital Development, 53,6% da população mundial (4,1 bilhões de pessoas, em média) está on-line70, dos quais 86,6% estão em países desenvolvidos, 47,0% nos países em desenvolvimento, e apenas 19,1% nos países menos desenvolvidos (Least Developed Countries – LDC)71. O crescimento é paulatinamente crescente, de modo que de 2005 a 2019, houve um salto de usuários de 16,8% para 53,6% a nível mundial, sendo o aumento do número de usuários de em média 10% a cada ano72.

 

2.3. Fundamentalidade subordinada do direito de acesso à internet

Percebe-se, portanto, a crescente utilização das tecnologias digitais por parte da população. No entanto, o avanço é desigual porquanto é perceptível o hiato digital que persiste principalmente àqueles menos favorecidos financeiramente e afastados dos centros urbanos, como também ao contingente populacional com maior faixa etária, em razão das limitadas habilidades computacionais. Conforme bem aponta Patrícia Peck Pinheiro, “ao mesmo tempo em que a era digital abre maiores possibilidades de inclusão, a exclusão se torna mais cruel”73. O ostracismo digital (e ao mesmo tempo também social) não se dá apenas na limitação financeira na compra de dispositivos e da própria conexão, mas também na limitação da expertise no uso desses aparelhos e do que realizar a partir do momento em que se está conectado. Além desses dois pontos de extrema importância, é imprescindível também incluírem-se – em que pese as pesquisas aqui trazidas não o tenham feito – aqueles que possuam deficiência física nesse processo de acompanhamento do impacto do uso da internet para que definitivamente haja um processo de universalização e democratização do acesso às redes.

Satisfeitas tais análises e pormenorizações, abre-se margem nesse ponto da apreciação para a tomada de posição no que tange à fundamentalidade do direito de acesso à internet. Com fulcro nos dados acima mencionados, para além das políticas públicas adotadas pelo Estado brasileiro na temática, demonstra-se a importância do acesso à internet a partir da universalização. O mundo conectado está cada vez mais presente na vida das pessoas, não apenas a nível nacional, mas global, no qual a internet se apresenta como fundamental para que se possa não apenas viver em sociedade, mas para que seja possível sentir-se incluído socialmente. Ainda assim, não se pode arrojar-se para conclusões precipitadas e automaticamente classificar o acesso à internet como juridicamente fundamental, de modo que se objetiva trazer uma proposta para melhor adequar-se a teoria dos direitos fundamentais ao desenvolvimento tecnológico.

O direito de acesso à internet, conforme reconhecido pelo Marco Civil da Internet (artigo 4.º, inciso I), trata-se de um direito legal autônomo, isto é, um direito reconhecido através da legislação infraconstitucional. Em que pese o Marco Civil da Internet o tenha reconhecido como tal, a legislação ordinária não possui o condão para elencar e estabelecer novos direitos fundamentais, de modo a vincular o constituinte, porquanto o legislador ordinário não possui legitimidade para realizar esse feito. No entanto, não se pode meramente conceder ao direito de acesso à internet o status de direito legal. É inegável que o referido direito concretize um ideal de dignidade humana proposto constitucionalmente, situando-se no cenário de decisões fundamentais tomadas no seio de determinado Estado, permeando a fundamentalidade desse contingente de direitos, o qual é possível inferir a partir da atenção concedida pelo Estado brasileiro através da criação de políticas públicas – ainda que enfrentando percalços orçamentários –, para além das pesquisas estatísticas que atestam o longo alcance da tecnologia no cotidiano dos brasileiros, evidenciando a necessidade de as pessoas estarem conectadas.

Em razão disso, propõe-se: o direito de acesso à internet tem sua fundamentalidade subordinada a direitos fundamentais já reconhecidos. A fundamentalidade conferida a determinado direito considera não apenas a relevância do bem jurídico per se, como também onde este situa-se na larga gama de opções do Constituinte74, a fim de que este possa esquematizar um spectrum racional que abarque os bens de maior relevância e seus derivados. Conforme já pontuado, para além de imbróglios terminológicos, o direito de acesso à internet não apenas identifica um instrumento como direito subjetivo, como também ignora o caráter evolutivo das tecnologias75. Dessa forma, não apenas – mas principalmente –, por haver a identificação de um meio, caso o referido direito fosse tratado automaticamente como fundamental, estar-se-ia estendendo a fundamentalidade dos direitos fundamentais de uma maneira tão agressiva que se atingiria, ao fim e ao cabo, a sua fragmentação.

Assim, uma vez reconhecido esse direito como fundamental, ele faria com que fosse passível de justificação o reconhecimento de outros, como o direito de leitura ao jornal, de acesso a softwares, de acesso a aplicativos. A Constituição não pode alargar-se de modo a ser um instrumento simbólico para concretização de ideais76, ainda que visto como necessários. A Constituição – jurídica em sua essência – deve sim seguir a pauta sociotecnologica (e é isso que faz que ela permaneça através dos tempos!), mas não se pode deixar de lado a racionalidade jurídica e se pautar unicamente por aspectos sociais e tecnológicos. Em outros termos, deve o jurista encaixar a pauta social e a evolução tecnológica77 dentre um spectrum racional estipulado constitucionalmente – in casu, um elenco de direitos fundamentais –, a fim de que não haja nem a banalização da fundamentalidade, nem a fragmentação da fundamentalidade.

Não se ignora o fato de que “o catálogo dos direitos fundamentais ve[nha se] avolumando, conforme as exigências específicas de cada momento histórico”78. No entanto, deve-se travar um freio para uma criação sem fim de direitos fundamentais79. O direito de acesso à internet trata-se, portanto, de um direito que efetiva direitos fundamentais, uma vez que a eles se subordina. O reconhecimento de direitos fundamentais deve dar-se com muita prudência, pois não é algo que resolve em si mesmo, mas traz um leque de consequências na medida em que cria-se um vínculo substancial com o Estado para a sua concretização80.

Partindo aqui para aspectos práticos da fundamentalidade subordinada81 do direito de acesso à internet, a sua fundamentalidade pode ser tanto material, como formal, ou ambas, a depender de qual direito fundamental o acesso à internet estará promovendo, rectius se subordinando. No caso do direito sob análise, o destaque é dado aos direitos comunicativos, os quais possibilitam o compartilhamento e o recebimento de informações, razão pela qual também são conhecidos sob a alcunha de direitos bifrontes, por apresentar duas maneiras de efetivar-se o direito, seja a partir do emissor, seja a partir do destinatário82, tendo em vista que “a internet constitui um meio de comunicação particularmente adequado à dinamização comunicativa dos vários subsistemas de acção social”83. A liberdade de expressão, por estar intimamente relacionada com a utilização das tecnologias e com a comunicação em sociedade84, é dotada de protagonismo no que toca aos direitos fundamentais promovidos pelo acesso à rede85, estando de acordo com a dimensão sua instrumental, segundo a qual, pela liberdade de expressão, há a prerrogativa de utilizar o meio que o interlocutor desejar para a comunicação de suas ideias86. Para além da liberdade de expressão, pontua-se exemplificativamente demais direitos comunicativos, como a cibercidadania87, os direitos da personalidade88, o direito de acesso à informação pública89, bem como o direito à educação, da liberdade de informação, de pesquisa, de criação artística90, de imprensa.

Em linhas derradeiras, demonstra-se mais correto, do ponto de vista constitucional dos direitos fundamentais, com todo o complexo dele advindo, tratar-se de inclusão digital91, do que propriamente a um direito ao acesso. Reforça-se a importância de valorizar a internet e necessidade de ampliá-la erga omnes. Em outros termos, a inclusão digital põe-se em evidência dentre o complexo de necessidades sociais92, requerendo, assim, em um conjunto de ações estatais a fim de incluir todo e qualquer indivíduo no mundo digital93, superando o hiato até então existente, mas que paulatinamente vem sendo desconstruído.

 

Conclusão

Traçou-se até aqui um panorama constitucional a fim de que seja possível albergar uma perspectiva de extensão da fundamentalidade dos direitos fundamentais ao direito de acesso à internet sem tornar improfícuo o paradigma de direitos fundamentais proposto constitucionalmente. Confirma-se, então, a hipótese lançada ao início: o direito de acesso à internet, com fulcro no ordenamento Jurídico-Constitucional brasileiro, não se constitui em direito fundamental autônomo. Dito de outro modo, a fundamentalidade do direito de acesso à internet não é independente, mas subordinada aos direitos fundamentais já reconhecidos.

Tendo-se proposto um didático esquema quadripartite a fim de elencarem-se os direitos fundamentais – (i) os expressos no título II da Constituição, (ii) os previstos em outros títulos, (iii) além daqueles previstos em tratados internacionais os quais a República Federativa do Brasil seja parte, bem como, no que precipuamente debruçou-se, (iv) aqueles decorrentes dos princípios e regime adotados pela Constituição –, situou-se o direito de acesso à internet no panorama dos direitos que foram recontextualizadados nos novos contornos que a vida em sociedade moldou através dos tempos – os então chamados novos direitos. Em vista disso, foi imprescindível perquirir os contextos formal e material dos direitos fundamentais, de modo que este último apresenta-se intimamente conectado ao quarto bloco de direitos da classificação ora proposta, isto é, aqueles direitos decorrentes dos princípios e do regime adotados pela Constituição brasileira, denominados de direitos implícitos ao texto constitucional. Nesse ritmo, vale ressaltar que nem todo direito implícito ao será automaticamente fundamental autônomo. Há direitos – como é o direito de acesso à internet – que, por características próprias, não podem ser classificados como fundamentais autônomos sem alargar em demasia o já proposto pelo constituinte.

Dessa sorte, o direito de acesso à internet – previsto infraconstitucionalmente no Marco Civil da Internet (Lei n.º 12.965/2014) – apresenta-se como direito legal autônomo. Em que pese não se possa limitar-se em rotular tal direito tão-somente dessa maneira, não se pode precipitar-se em categorizá-lo, de pronto, como fundamental autônomo. Isso ocorre em razão de não ser adequado que direitos subjetivos fundamentais sejam direcionados a meios, a instrumentos, sob pena de fragmentar-se a fundamentalidade dos direitos. O direito de acesso à internet, com efeito, não apenas identifica o instrumento, como também ignora toda a sorte de evolução tecnológica que a sociedade se defrontará em tempos nada longínquos. Reconhece-se a relevância de estar conectado. Todavia, não se pode ultrapassar limites jurídicos já impostos pela ordem Jurídico-Constitucional, sob pena de não apernas tornar-se inadequado, como também de incorrer-se na banalização do texto constitucional.

Ante o exposto, o direito de acesso à internet não se trata apenas de um direito legal, mas, sim, com sua fundamentalidade vinculada a direitos fundamentais já assentados, precipuamente os comunicativos, porquanto concretiza a dignidade humana – na sua acepção de espinha dorsal dos direitos fundamentais – e centra-se dentre às decisões fundamentais tomadas pelo Estado e sociedade. É íntima, portanto, sua interligação com o direito à liberdade de expressão, o direito à educação, o direito de acesso à informação pública, o direito à liberdade de pesquisa, o direito ao livre desenvolvimento da personalidade etc. Desse modo, tal fundamentalidade subordinada pode ser tanto material, como formal, ou mesmo ambas, a depender de qual direito fundamental o acesso à internet está amparando. Em que pese o rol de direitos fundamentais precise obedecer, portanto, uma diretriz racional, sendo estes selecionados na mais variada gama de opções do constituinte, não se poderia negligenciar os pulverizados direitos – como é o direito de acesso à internet – e deixar de situá-los, com a devida prudência, no arquétipo alvitrado constitucionalmente.

Reforça-se, enfim, que a pesquisa apresentada teve como pano de fundo a adaptação do constitucionalismo frente ao desenvolvimento tecnológico. Não se ambiciona, de modo algum, trazer uma solução como única via possível no tratamento da questão, principalmente frente ao cenário de desenvolvimento e evolução tecnológicos que se vivencia. Reforça-se a necessidade de revelarem-se e esmiuçarem-se novos problemas, não apenas sobre o reconhecimento de direitos fundamentais, mas principalmente no caso de uma aprovação de emenda à constituição, e consequente encaixe do direito no catálogo de direitos fundamentais, para além de aprofundamento em estudos específicos acerca da temática da inclusão digital.