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e-Pública: Revista Eletrónica de Direito Público

versão On-line ISSN 2183-184X

e-Pública vol.7 no.3 Lisboa dez. 2020  Epub 22-Jan-2022

https://doi.org/10.47345/nbpx3171 

Direito Administrativo

Reflexões em torno da impossibilidade definitiva na execução dos contratos administrativos

Reflections on the definitive impossibility of performance in the execution of administrative contracts

Mafalda Carmonai 

1Faculdade de Direito, Universidade de Lisboa, Portugal


Resumo:

Por entre as perturbações da execução trazidas pela pandemia, contam-se as perturbações do fim visado pelo contraente público - não é o cocontratante que vê prejudicada a sua capacidade de prestar, mas o credor público que deixa de ver utilidade na prestação (por exemplo, o fornecimento de refeições escolares, perante a suspensão das aulas presenciais). No presente estudo aborda-se a questão de saber quando uma perturbação do fim (lato sensu) constitui impossibilidade (usualmente tratada como “força maior” no Direito Administrativo) (3.). Discute-se ainda qual o critério de imputação da impossibilidade ao credor e, não lhe sendo imputável, quando pode haver lugar a uma repartição de riscos (4.). Por último, tecem-se algumas considerações sobre a relação entre impossibilidade e alteração das circunstâncias, admitindo que esta possa excecionalmente ser invocada pelo contraente público na posição de credor (5.).

Palavras-chave: pandemia; contratos administrativos; perturbação do resultado; impossibilidade; alteração das circunstâncias

Abstract:

Among the cases of disruption of contract execution driven by the pandemic, it is possible to identify the disruptions to the purpose intended by the public contracting party - it is not the private party whose ability to provide is impaired, but the public creditor to whom the obligation ceases to be useful (for example, the provision of school meals due to the suspension of face-to-face classes). The present study addresses the question of knowing when does a disturbance of the intended purpose (lato sensu) constitute an impossibility of performance (usually treated as “force majeure” in the Administrative Law) (3.). It also discusses the criteria for allocating the impossibility to the creditor and, not being attributable to him, of when there may be a risk sharing (4.). Lastly, some reflections are laid out on the connection between impossibility of performance and change of circumstances, acknowledging that the latter can exceptionally be summoned by the public contractor in the position of creditor (5.).

Keywords: pandemic; administrative contracts; disruption of the intended purpose; impossibility of performance; change of circumstances

1. Enquadramento

1.1. A situação pandémica tem suscitado uma maior reflexão sobre as “perturbações da execução” (1) nos contratos administrativos (2) (3) (4) (5) (6). Em cima da mesa ficam figuras como a da impossibilidade - tradicionalmente tratada sob as vestes da força maior nos contratos administrativos - ou a da alteração das circunstâncias(7) (8) (9) (10) (11) (12). Aspeto relevante, na perspetiva dos contratos administrativos, é o de, em muitos casos, a perturbação não decorrer imediatamente da pandemia mas de medidas adotadas por entidades públicas, que podem ser parte em contratos perturbados por tais medidas. Importa ainda relevar que muitas das perturbações vivenciadas se caracterizam por comportarem uma perturbação no fim, no resultado visado pelo credor público com a execução da prestação principal. Pense-se, por exemplo, nos contratos de fornecimento de refeições em refeitórios escolares e na suspensão das aulas presenciais de março a junho de 2020. Será sobre estas situações - de perturbação do fim do credor público - que incidirá o presente escrito.

1.2. Perante a mudança, intensa e abrupta, que a pandemia introduziu nas nossas vidas, pode ver-se esta - abstratamente - como um evento externo, imprevisível e inevitável, marcas que se associam aos eventos de força maior(13). Atenta a mudança estrutural e abrupta que introduziu nas bases da coexistência social (14) (15), admite-se igualmente que a pandemia seja qualificada como “grande alteração das circunstâncias” (17), apelando-se a uma distribuição do risco pela generalidade dos intervenientes económicos, pois generalizada é também a perturbação .

Em todo o caso, haverá sempre que verificar qual a perturbação que é experienciada na prestação principal de cada contrato: o genérico “evento pandémico” pode implicar uma impossibilidade de execução da prestação principal daquele contrato ou, não contendendo com a sua possibilidade, traduzir-se na inexigibilidade da obrigação por alteração anormal das circunstâncias; mas pode, também, não convocar a aplicação destes regimes, nada mais havendo a assinalar do que, por exemplo, um aumento dos dispêndios projetados pelo devedor, cujo risco corre por este, ou uma diminuição da vantagem projetada pelo credor com o emprego da prestação, risco que lhe pertence - dito de outra forma, os contratos devem continuar a ser pontualmente cumpridos, apesar de a pandemia comportar desvios aos projetos de custos ou de proveitos das partes (18). Num tempo em que já se disse que o princípio pacta sunt servanta parece ser a exceção , importa não perder este ponto de vista.

2. A impossibilidade - coordenadas básicas

2.1. Feitas estas considerações introdutórias, importa começar pela impossibilidade, não necessariamente por ser a perturbação mais frequente mas pela sua importância sistemática - só se a prestação continuar a ser possível é que se pode equacionar o recurso à alteração anormal das circunstâncias (ou pode haver mora do devedor/incumprimento definitivo stricto sensu ou mora do credor (19) (20)).

A perspetiva tradicional do Direito Administrativo é a de tratar a impossibilidade sob as vestes do caso de força maior, a par do tratamento da alteração anormal de circunstâncias sob as vestes do caso imprevisto. Caracterizando-se ambos os casos por consubstanciarem “alterações independentes da vontade dos contraentes”, provenientes de “factos alheios à vontade dos contraentes, para os quais estes de nenhum modo hajam contribuído”, o caso de força maior corresponde ao “facto imprevisível e estranho à vontade dos contraentes que impossibilita absolutamente de cumprir as obrigações contratuais” (21).

Sendo claro o elemento da impossibilidade - como exemplos, os cataclismos que destruam obras ou coisas, as greves que forcem à paralisação, os atos de guerra ou rebelião que impeçam a atividade - a perspetiva do caso de força maior, no que era e é a tradição do direito francês (22) (23) (24) (25) ( e a que correspondia a opção vertida no Código de Seabra (26) (27)), é a das causas de exoneração do devedor, aglutinando impossibilidade e inimputabilidade: o devedor não é responsável pelo incumprimento se o mesmo se dever a facto irresistível, sendo este o facto que, impossibilitando a execução, não podia ter sido evitado . Se era evitável, o devedor é responsável, não assumindo relevância central saber (resolvida que fica a questão da imputabilidade e da não exoneração do devedor) se a prestação se tornou ou não impossível, em coerência com o não reconhecimento de um princípio de prioridade do cumprimento natural (28).

É outra a perspetiva do Direito Civil e, também agora, a do Direito Administrativo, em que o Código dos Contratos Públicos, pese embora conter ainda uma referência pontual à força maior, remete, em sede de “causas de extinção do contrato”, para a impossibilidade e demais causas “reconhecidas pelo direito civil” . Há, assim, uma receção do regime da impossibilidade pelo CCP (29) (que, como tal, não se pode dizer que seja lacunar), receção essa que implica a mudança de perspetiva da força maior (impossibilidade não imputável) para a da impossibilidade (imputável ou não) (30) (31) (32).

2.2. A impossibilidade com eficácia extintiva, a que se refere o artigo 330.º CCP e que se encontra subjacente ao artigo 790.º CC, é a impossibilidade superveniente, absoluta, objetiva e definitiva (33) (34). Refira-se que, pese embora o carácter (tendencialmente) temporário das medidas de combate à pandemia, nem por isso fica excluído que se possa estar perante impossibilidades definitivas. Assim sucederá quando estejam em causa prestações “temporalizadas” ou de “prazo absolutamente fixo”, em que o credor só tem interesse no cumprimento da prestação em dia determinado ou até esse dia (35). Pode também suceder (aliás, em regra, assim é) que a “prestação de duração” seja “temporalmente modalizada”, pelo que se não feita no momento devido, torna-se definitivamente impossível, “pelo menos parcialmente, na parte correspondente ao período de tempo em que a prestação não foi aproveitada” .

Acresce que a impossibilidade tanto pode ser física, quando resulta da natureza das coisas, quanto jurídica, quando resulta da lei - mas englobando-se aqui não só atos legislativos como medidas administrativas, normativas ou não / (36).

2.3. No que respeita aos efeitos da impossibilidade, e pese embora o CC se referir à extinção da obrigação e o CCP à extinção do contrato, reconhece-se hoje que, nos quadros da relação obrigacional complexa (37), a impossibilidade extingue apenas o dever primário de prestar ou dever de prestar principal / . Por força da boa fé, e para lá de deveres secundários, subsistem, ou intensificam-se mesmo, os deveres acessórios - de segurança, de custódia, de lealdade, de informação -, entre os quais se conta o de o devedor informar o credor do evento . Mas sendo a prestação impossível, o não-cumprimento da prestação não constitui incumprimento, não incorrendo o devedor, salvo se a impossibilidade lhe for imputável, em responsabilidade .

2.4. Extinguindo-se o dever principal de prestar, nos termos do artigo 790.º/1, trata o artigo 795.º do problema do destino da contraprestação nos contratos sinalagmáticos. Neste ponto, afigura-se útil atender, como ponto de partida, às regras comuns de distribuição do risco nos contratos, i.e., do “perigo de um prejuízo que alguém suporta como titular de uma posição jurídica” . Retomando a regra básica res domino suo perit, quem tem o direito corre o risco da sua supressão: o credor, tendo direito à prestação, corre o risco da prestação (do incumprimento do devedor ou da sua impossibilidade superveniente) ; o devedor, tendo direito à contraprestação, corre o risco da contraprestação (designadamente, de não a receber quando a prestação se tornou impossível). Noutra perspetiva, pode dizer-se que “o devedor corre o «risco de prestação» e o credor corre o «risco de utilização»” . O risco da prestação abrange “o do agravamento do custo ou das dificuldades da prestação, enquanto esta se mantém possível in natura, o da perda do direito à contraprestação e o da perda dos dispêndios e esforços feitos com vista à prestação, quando esta se torne impossível” ; aqui o devedor tem, se assim se quiser dizer, o chamado “risco de investimento(38). Já do credor pode dizer-se que corre “o risco de utilização da prestação”, que se traduz “em a prestação não servir para o fim a que este se destinava, ou em não poder ele utilizá-la para esse ou outro fim, por se ter malogrado o seu plano de aplicação da mesma” e, ainda, o “risco de cooperação”, sempre que a execução do plano negocial dependa da colaboração a prestar pelo credor .

2.5. Tomando esta distribuição do risco como ponto de partida - se se quiser, como aquilo que está em jogo e sem prejuízo de uma posterior (re)distribuição de danos (39) -, e não deixando de ter presente que pode ser outra a distribuição em face do tipo contratual ou da vontade das partes vertida no contrato, importa agora olhar para o disposto no artigo 795.º do Código Civil.

Tornando-se a prestação impossível, e não tendo o devedor que prestar - porque, antes de mais, não pode prestar -, também não irá receber a contraprestação (n.º 1). Já não assim se o devedor só não pode prestar por “causa imputável ao credor”; nessa situação, o credor “não fica desobrigado da contraprestação” (embora se desconte o benefício que o devedor tenha tido com a exoneração).

Não sendo tema fácil o de saber quando é a impossibilidade imputável ao credor, retira-se do n.º 1 do artigo 795.º que, não sendo a impossibilidade imputável ao credor nem ao devedor, corre por este o risco de caso fortuito que atinja a prestação . O credor, que tinha direito à prestação, não a recebe (e não obtém as vantagens projetadas para a prestação) mas o devedor - que, recorde-se, não deu causa à impossibilidade -, e que contava receber a contraprestação, não a obtém, ficando consigo o “risco do investimento”, aí se incluindo as eventuais despesas em que tenha incorrido para prestar (e a eventual perda de proveitos que teria obtido se tivesse destinado a sua capacidade de prestar a outro negócio). Ou seja, e simplificando, a impossibilidade não imputável a nenhuma das partes deixa os prejuízos com a atividade de prestar na esfera do devedor.

Em face destas regras, a impossibilidade apresenta-se como uma solução de “tudo ou nada”, em que o risco é integralmente suportado por uma das partes - ou bem que o devedor recebe ainda a contraprestação (com dedução dos benefícios por não ter prestado), ou bem que não a recebe . Conhecem-se, porém, regimes especiais. Assim, por exemplo, o artigo 1040.º CC (locação) admite uma redução da contraprestação, ao passo que o artigo 1227.º (empreitada) manda o dono da obra indemnizar o empreiteiro “do trabalho executado e das despesas realizadas” - ou seja, sobrevindo uma impossibilidade não imputável a qualquer das partes, o empreiteiro não executa a obra, nem o dono da obra paga o seu preço, mas nem por isso fica o empreiteiro com os danos emergentes, tendo o dono da obra que o indemnizar pelo interesse contratual negativo (ou parte dele) (40). Estes regimes - em especial, o do artigo 1227.º -, adianta-se, conhecem depois aplicação analógica a outras situações de impossibilidade (41).

Sendo este o regime legal, podem as partes regular a impossibilidade nos contratos, o que se usa fazer (diretamente) através de cláusulas de força maior(42).

2.6. Estas são, se se quiser, as coordenadas básicas da impossibilidade definitiva: o devedor não tem que prestar (porque não pode prestar) mas, não sendo a impossibilidade imputável ao credor, também não recebe a contraprestação, suportando, salvo imputação ao credor ou regra especial, o risco de investimento.

Suscitam-se, porém, dificuldades logo ao nível da identificação de situações de impossibilidade, designadamente quando se traga a perturbação do fim do credor para a equação e o devedor se veja impossibilitado de prestar, não por um problema na sua capacidade de prestar, mas porque a prestação “perde sentido” para o credor - e isto, importando ter presente que o alargamento da impossibilidade (e, antes, do conceito de prestação) é suscetível de alargar as situações em que o devedor, vendo-se impossibilitado de prestar, também não recebe a contraprestação . Pense-se no fornecimento de refeições escolares e na suspensão de aulas presenciais: é este um caso de impossibilidade, sendo certo que a perturbação não se situa na esfera do devedor - que, por si, pode continuar a fornecer - mas na esfera do credor? Se se tratar de uma impossibilidade, e se não for imputável a nenhuma das partes, deve ficar o devedor com o risco do investimento, como quando a causa da impossibilidade se situa na sua esfera, ou deverá ainda o credor suportar o interesse contratual negativo (ou parte dele) e, se sim, a que título? Ou será que, mesmo sendo impossibilidade, é ainda imputável ao credor (que pode ter sido até quem decretou a suspensão das aulas), continuando este (afinal) obrigado à contraprestação? E se não houver impossibilidade, quid iuris?

3. Perturbações do fim do credor e impossibilidade

3.1. Se situações existem de impossibilidade que não suscitam dúvidas - a própria atividade do devedor, em si considerada, deixa de ser possível de acordo com as leis da natureza ou por determinação legal -, outras há que não oferecem uma solução tão fácil. Assim sucede quando a perturbação se situa no resultado pretendido pelo credor, sucedendo que “o resultado da prestação perde sentido” .

Numa sistematização corrente, são três as categorias de casos identificadas pela doutrina: i) a de “realização do fim por outra via” ou “consecução do fim por via diversa do cumprimento” (Zweckerreichung); ii) a de “desaparecimento do fim” (Zweckverfehlung, Zweckfortfall); e ainda iii) a de “frustração do fim” ou de “perturbação do fim” (Zweckvereitelung, Zweckstörung) . Na situação i) de realização do fim por via diversa do cumprimento, a atividade contratada deixa de ser necessária porque o credor obtém o mesmo resultado por outra via - recorrendo aos casos geralmente trabalhados pela doutrina e que constituem ponto de referência para o diálogo, temos o caso clássico do barco encalhado que, entretanto, se libertou por ação da maré , ou o do doente que ia ser operado mas que, entretanto, se curou , ou o do carro que ia ser rebocado por estar avariado mas que volta a trabalhar ou que estava mal estacionado e é retirado antes de chegar o reboque . Na situação de ii) desaparecimento do fim, ocorre (em regra) a perda do “substrato da prestação”, isto é, das “condições [objetivas ou subjetivas] cuja existência é necessária ao cumprimento da prestação debitória” - assim, quando o barco que ia ser rebocado afunda, ou quando morre o paciente que ia ser operado . Em iii), nas situações de frustração do fim, “a prestação é possível mas já não tem sentido para os credores” , deixando de fazer sentido para estes porque deixa de satisfazer o seu interesse, tornando-se inútil ; em causa estará o “fim secundário” ou “fim de emprego”, i.e., “a finalidade que o credor visa alcançar com a satisfação do fim primário” - assim, desde o arrendamento da janela para ver a coroação que é cancelada (43) à hipótese do transporte para um jogo que é cancelado devido ao nevoeiro . Em todas estes casos denota-se a presença de uma causa externa que impede a utilidade da prestação, não estando em causa uma mera mudança da vontade do credor mas uma situação que o ultrapassa - i.e., que produz inexoravelmente a “perda de sentido do resultado” da prestação - ainda que a sua causa não seja necessariamente inevitável (v.g., na casa que arde, pode até o credor ter ateado o fogo). Em muitas situações, denota-se também um elemento de imprevisibilidade (a maré inusitada que liberta o barco), embora porventura não nos mesmos termos exigentes da alteração das circunstâncias ; noutras situações, não há razão para subentender a imprevisibilidade (o doente que ia ser operado morre) ou ela não é de todo concebível (o carro indevidamente estacionado que é retirado pelo proprietário).

3.2. Considerando que, nas situações descritas, a atividade do devedor - a “acção abstracta de prestar” , a atividade de prestar “em si mesma considerada” ou a “capacidade de prestar” do devedor , - não é perturbada (não provém da esfera do devedor), antes se situando o problema no resultado - simplificando, na esfera do credor - emergiu a discussão sobre qual o sentido de “prestação” : se é esta apenas atividade do devedor, ou se é também a obtenção do resultado pretendido pelo credor. Inclina-se a doutrina para considerar que a prestação não compreende apenas a atividade do devedor, em abstrato considerada, mas antes a obtenção do resultado através da atividade do devedor (44) (45).(46)

Assumido um conceito de prestação enquanto resultado, daí resulta que as situações ii) de desaparecimento do fim (de desaparecimento do substrato da prestação: o barco encalhado afunda-se) são entendidas como situações de impossibilidade de prestação - entendida a “prestação enquanto resultado (ou, se se preferir, a acção de prestar em concreto)”, i.e., a atividade a que o devedor se obrigou nos quadros de um concreto plano negocial, fica (inclusivamente) prejudicada a sua “possibilidade física” . Também as situações de i) de realização do fim por outra via (o barco encalhado que se solta por ação da maré) parecem ser tidas como situações de impossibilidade, embora se detete maior controvérsia quanto ao seu âmbito - se bem vemos a coisa, tanto pode estar ainda em causa a perda do substrato como a situação deslizar já para a mera “frustração do fim” (47).

Dúvidas suscitam, seguramente, os casos iii) de frustração do fim . Estando em causa o “fim de emprego” da prestação, entende-se que, por regra, esse risco pertence ao credor - a sua frustração “é mero assunto do credor” . Admite-se, contudo, que a frustração do fim implique impossibilidade quando estejam em causa “prestações finalizadas”, i.e., prestações de “fim único ou infungível” , (ou) de fim vinculado e não neutro , em que (ou desde que) “o resultado seja um elemento, estrutural e/ou funcional da prestação debitória” . Recusando-se a impossibilidade, abre-se outra frente problemática: ou o risco do emprego é sempre, e em qualquer circunstância, do credor (i.e., assim não será se houver “finalização”) , ou admite-se que, em determinadas situações, possa ser o credor a invocar uma alteração anormal das circunstâncias .

3.3. A operar a finalização da prestação através de um critério como o que distingue entre contratos de “fim neutro” e de “fim vinculado”, dir-se-ia, numa primeira leitura, que os contratos administrativos de colaboração, atenta a “lógica da função” , seriam sempre “finalizados” - dada a ineludível presença do fim de interesse público, os contratos administrativos de colaboração dificilmente serão, neste sentido, contratos de “fim neutro”. Porém, impõe-se alguma cautela.

Antes de mais, importa ter presente o que significa “finalizar” a prestação em termos de consequências do regime da impossibilidade. Não havendo impossibilidade, o risco de frustração do fim é, à partida, um problema do credor, que continua vinculado à contraprestação; admitir-se-á que “desista” (48) - como se permite em alguns contratos no CC (v.g. artigo 1229.º), e de forma geral no CCP sob a designação de “resolução por motivo de interesse público” (artigo 334.º) - mas, como se sabe, desde que indemnize pelo interesse contratual positivo.

Ora, a “finalização” da prestação intromete-se neste esquema: a frustração do fim de emprego deixa de ser um risco do credor para ser também um risco do devedor; por outras palavras, o devedor partilha com o credor o risco de se ver frustrado o fim de emprego que este destinava à prestação. Sendo uma impossibilidade, e não sendo imputável ao credor (e nunca o será pelo risco, ainda que previsível, visto o risco já não ser apenas do credor), o credor fica desobrigado da contraprestação (artigo 795.º, n.º 1, CC). Porém, apesar da recondução à impossibilidade - um regime de “tudo ou nada”, recorde-se -, entende-se, ainda assim, que deve haver lugar a uma solução de repartição de riscos, convocando-se a aplicação (analógica) do artigo 1227.º: o credor deve indemnizar o credor pelas despesas e pelos trabalhos já executados (mas não mais do que isso) .

Assim, a recondução da frustração do fim à impossibilidade traduz-se (acaba por traduzir-se) numa repartição de riscos, afastando o risco exclusivo do credor. Repartição esta que - pese embora se denotar uma tendência para apenas libertar o credor da totalidade do risco quando haja finalização, excluindo que possa invocar uma alteração anormal das circunstâncias em caso de “frustração do fim” - pode acabar por impor uma repartição de riscos para lá do que seria (ou do que for) admitido em alteração das circunstâncias - v.g., cobrindo riscos previsíveis, ainda que inevitáveis .

3.4. Sendo esta a implicação de finalizar a prestação, compreende-se que a descoberta de uma prestação finalizada, por entre várias propostas , seja colocada na dependência da interpretação de cada contrato, não decorrendo a finalização do tipo contratual (ainda que sem prejuízo de haver tipos contratuais que mais facilmente se prestam a uma finalização da prestação) ; que a finalização fique mesmo dependente de ter sido contratualmente assumida uma relação especial de risco ou de garantia em relação ao fim de emprego ; que, de todo o modo, não basta ter sido o fim revelado nas negociações e até ter o devedor conhecimento da sua essencialidade, exigindo-se que o fim tenha sido objeto de acordo, i.e. que faça parte do conteúdo do contrato, e porventura apenas quando assim sucedeu de forma expressa ou limitando-se a interpretação pela ideia da excecional oneração do devedor .

Não subestimando a dificuldade do tema, julgamos que a umbilical ligação dos contratos administrativos de colaboração à prossecução do interesse público não é suficiente, por si só, para incluir o fim de emprego no conceito de prestação . Da celebração de um contrato administrativo apenas se retira que o cocontratante aceita a preponderância do fim de interesse público e as respetivas implicações (legalmente previstas) no pacta sunt servanta, maxime a de resolução por “razões de interesse público” - e bem se sabendo que a variação do interesse público não é algo de anormal na vida do contrato, podendo tais razões ser decorrentes de necessidades novas ou apenas de uma nova ponderação das circunstâncias existentes ; mas tudo isto sem ser a expensas do cocontratante, garantindo-se-lhe a indemnização pelo interesse contratual positivo. Assim não será se tiver sido outra a vontade das partes, podendo dizer-se, quando muito, que os contratos administrativos se prestam com mais facilidade a essa finalização; as partes, aliás, podem assumir uma partilha de riscos para lá do fim de emprego (partilhando, por exemplo, o risco de perda do substrato) , e inclusivamente compor as respetivas consequências para lá do que resultaria da aplicação (analógica) do artigo 1227.º - mas sem um acordo (e acordo válido) nesse sentido, o risco de emprego da prestação é apenas do credor público . Em poucas palavras, a “lógica da função” não autoriza, na falta de disciplina especial legal ou contratual, a concluir pela associação do cocontratante ao risco de realização do fim de emprego projetado pelo contraente público, em termos de o colocar, perante a frustração do fim de emprego do credor público, numa situação de partilha do risco dessa frustração com o credor.

3.5. Resumindo: ainda que o devedor mantenha a sua capacidade de prestar em abstrato, pode verificar-se uma impossibilidade da prestação principal pois a prestação não se reduz à atividade, em abstrato, do devedor, antes se reportando ao que, em concreto, nos quadros do programa negocial acordado entre as partes, o devedor se obrigou a fazer. A perda do substrato da prestação e a realização do fim por outra via, quando contenda ainda com aquele, constituem situações de impossibilidade. Fora destas situações, quando a atividade de prestar, em concreto, ainda se apresenta como possível, a frustração do fim apenas consubstancia uma impossibilidade se o fim tiver integrado o conteúdo do contrato - o devedor não se obrigou a uma atividade em abstrato, obrigou-se a uma atividade em concreto, e ainda a que a finalidade do credor fosse atingida, partilhando assim com ele o risco de frustração do fim. Se assim tiver sido, vale o que as partes regularam e os termos em que o fizeram.

Isto dito, a interpretação do contrato joga (como sempre) um papel essencial na determinação daquilo a que, em concreto, o devedor se obrigou . Voltemos ao fornecimento de refeições escolares. Seguramente, a suspensão das aulas presenciais torna o contrato “sem sentido” para o credor. Se o devedor se obrigou não só a entregar x refeições mas também a todo o serviço de “gestão” do refeitório, servindo refeições a alunos, admitimos que a ausência destes constitua um caso de impossibilidade da prestação. Já se a prestação for apenas a de entrega de x refeições, temos dificuldade em detetar uma impossibilidade - aquilo a que o devedor se obrigou continua a ser possível, deixou foi de ter utilidade para o credor. E se é certo que o devedor bem sabe para que finalidade servem as refeições, daí não se retira que partilhe com o credor o risco desse fim. Tentando que o texto não fique “contaminado” pela situação pandémica que vivemos, imagine-se que os alunos são transferidos a meio do ano letivo por um motivo de interesse público (seja por se entender que a escola tem alunos em número insuficiente, ou porque a escola deixa de apresentar condições adequadas) - sem mais do que conhecer o devedor a finalidade que serve a sua prestação, não se lhe pode atribuir o risco dessa frustração, que pertence ao credor; frustrando-se o fim, tem sempre a porta aberta para a resolução por motivo de interesse público, indemnizando pelo interesse contratual positivo. Poder-se-á questionar - e agora, voltando a pensar na situação pandémica - se terá que ser sempre essa a solução; já não é, porém, um problema de impossibilidade .

Voltando à impossibilidade: se não é por se manter imperturbada a atividade em abstrato do devedor que se deixa de verificar uma impossibilidade da prestação - ou dito de outra forma, a perturbação que provém da esfera do credor não deixa de implicar uma impossibilidade da prestação a cargo do devedor -, não se pode perder de vista a esfera de onde resulta a impossibilidade. Sem prejuízo de haver impossibilidade da prestação principal, se esta resulta da esfera do credor e não da do devedor, terá ainda o devedor direito à contraprestação ou, ao menos, à cobertura das despesas? Ou fica consigo o risco do investimento?

4. O problema da imputação da impossibilidade ao credor

4.1. Se saber quando há impossibilidade não é incontroverso, também não o é saber o que sucede à contraprestação no caso de impossibilidade que decorre da esfera do credor, colocando-se o problema (mais geral) de saber quando lhe é esta imputável . Pode suceder, assim, que a “porta aberta” pela recondução de uma perturbação no resultado à impossibilidade - a “porta” de o credor recusar a prestação sem entrar em mora e ficar desonerado da contraprestação - se venha a revelar infrutífera, continuando o credor obrigado à contraprestação (ou, por outro fundamento que seja, obrigado a determinada indemnização) .

No que respeita aos critérios de imputação ao credor, as posições doutrinárias podem ser sistematizadas, em grau crescente de amplitude, da seguinte forma: i) a impossibilidade apenas é imputável ao credor perante um ato seu que mereça “alguma espécie de reprovação ético-jurídica”; ii) a imputação basta-se com um ato livre do credor, ainda que justificado; iii) a imputação opera sempre que a causa da perturbação se situe na esfera do credor .

Que a imputação ao credor deva operar quando a impossibilidade resulta de um ato seu merecedor de censura , é questão que não se oferece problemática. A dificuldade reside em saber como se compreende essa censura , considerando que ao devedor não assiste um direito ao cumprimento e, como tal, ao credor não assiste um correspondente dever . Mas, não existindo este dever, pode ainda assim conceber-se que o credor, nos quadros da relação obrigacional complexa, tenha sempre um dever acessório de colaboração, fundado na boa fé . A falta de colaboração do credor (que se pode traduzir na simples recusa da prestação) constitui, assim, ato ilícito, presumindo-se a culpa (artigo 799.º/1 CC) . Indo mais longe, admite-se que a imputação ao credor ocorra desde que haja uma ação ou “omissão livre do credor”, aí se incluindo, designadamente, ações ou omissões lícitas, desde que se verifique “algo de pelo menos semelhante ou análogo a uma causa imputável ao devedor” (excluindo, portanto, apenas situações em que o devedor é impedido de prestar a colaboração por causa que não lhe seja imputável) . E levando a imputação ao credor ao seu máximo âmbito, admite-se que esta se verifique sempre que a impossibilidade se situe na esfera de risco do credor: “o credor há-de suportar as consequências (desvantajosas) de um não cumprimento relacionado com a sua pessoa, com as suas coisas ou com a sua empresa(49). Registe-se, contudo, que, em outras construções da imputação pelo risco (ou objetiva), procura-se ainda assim estabelecer limitações, restringindo a imputação ao credor, por exemplo, aos riscos inerentes à sua atividade e/ou aos riscos evitáveis .

Cruzando-se esta problemática com a das impossibilidades que provêm da esfera do credor, verifica-se que a imputação pela esfera de risco se traduz sempre (ou, ao menos, no âmbito dos riscos compreendidos) no resultado de manter o credor obrigado à contraprestação: a perturbação do fim (lato sensu) do credor pode ditar a impossibilidade da prestação mas, ainda assim, verificando-se na sua esfera, é-lhe imputável . Porém, mesmo adotando uma ou outra das conceções mais restritas da imputação ao credor, pode ainda concluir-se que o credor continua obrigado à contraprestação - é seu o risco da frustração do escopo / . Não se exclui, por outro lado, que estas soluções sejam repensadas em face de situações como a que vivemos (16) (50).

4.2. Entre a sujeição à boa fé e o interesse na continuidade do serviço público, o reconhecimento de que o credor, contraente público, se encontra sujeito a deveres de colaboração não conhece especiais entraves nos contratos administrativos de colaboração . Mas, descobertos os deveres e, como tal, sendo concebível a atuação do contraente público que não colabora como uma atuação ilícita, outra questão é saber se a imputação ao credor exige ainda, para além da ilicitude, a culpa. Pensamos que, no domínio do Direito Administrativo, a imputação à Administração deve fazer-se, regra geral, por via do ilícito, não havendo lugar para a culpa num Direito que disciplina a atuação de pessoas coletivas sujeitas ao princípio da legalidade: a ausência de capacidade de escolha entre certo e errado obstaculiza o juízo de culpa (51) (52) . Ainda que assim não se entenda, em geral, sempre a imputação objetiva pelo ilícito estaria facilitada por se tratar de pessoas coletivas, agindo no âmbito de relações contratuais, e sujeitas à regra de imputação vertida no artigo 800.º CC, entendida esta como um “mecanismo de imputação única por incumprimento do plano negocial” (seja do dever primário de prestar, seja de deveres acessórios do credor) que dispensa a culpa (53). A imputação ao credor - que será, desta forma, uma imputação objetiva, pois dispensa a culpa, mas uma imputação pelo ilícito e não pelo risco - conhece, assim, um âmbito alargado no Direito Administrativo, possibilitando a inclusão de causas de impossibilidade que podiam e deviam ter sido evitadas pelo contraente público.

4.3. Pensamos haver ainda razões para que, no domínio dos contratos administrativos, a imputação ao credor compreenda a impossibilidade causada por atos lícitos (ou em que o ilícito encontra uma justificação). Não sendo essa a posição maioritária no Direito Civil, importa ter presente que, no Direito Administrativo, a intervenção perturbadora da execução do contrato, mas justificada, não constitui um “corpo estranho”; pelo contrário, ao contraente público é reservado o direito de resolução por motivo de interesse público, desde que indemnize pelo interesse contratual positivo. Considerando, designadamente, as situações que o contraente público pode resolver o contrato por motivo de interesse público - ou seja, em que o concreto fim pretendido pelo credor com a prestação já não lhe interessa -, conquanto proceda à indemnização do interesse contratual positivo, solução idêntica (em rigor, obrigar ao pagamento da contraprestação, com dedução dos benefícios ) deve ser adotada quando o contraente público, ao invés de resolver, cause, ainda que licitamente, a impossibilidade da prestação / (54) (55) (56) (62). Pense-se, por exemplo, na decisão de encerramento de um serviço que implica a impossibilidade do contrato de concessão de uma atividade complementar (60) (63).

4.4. Admitindo que a impossibilidade causada, licitamente, pelo credor seja ainda uma impossibilidade imputável ao credor, em paralelismo com a resolução por motivo de interesse público, impõem-se duas notas.

A primeira, a de que esta imputação deve funcionar, por coerência sistemática, nos limites legalmente estabelecidos para o chamado fait du prince: se, quanto a medidas do contraente público que perturbam o equilíbrio do contrato, opera uma quebra de imputação quando tais medidas sejam genéricas, contando que não tenham (apesar disso) repercussão específica no contrato, o mesmo deve suceder quanto se trate de medidas que impossibilitam a execução da prestação (57) (58) (59) (61) (64) .

A segunda nota prende-se com outra possível causa de quebra de imputação. Pode suceder que a causa da (medida que dita a) impossibilidade se situe num juízo sobre o que é melhor para o interesse público; esse juízo pode, no limite, colocar até a medida que causa a impossibilidade (ou a resolução) numa zona de redução a zero da discricionariedade . Ainda que aqui não se veja um “ato livre”, nem por isso se deve deixar - à semelhança da resolução por motivo de interesse público - de obrigar a Administração a indemnizar pelo interesse contratual positivo, na medida em que estamos ainda na normal variação do interesse público; se se quiser, o risco de perturbações da finalidade é maior no credor público, que está sempre obrigado a prosseguir o melhor para o interesse público, que se sabe ser de natureza mutável. Porém, em situações extremas, como as que podemos encontrar na pandemia - por ex., se em vez de uma decisão, como a antes referida, de extinção de um hospital por uma questão de melhor reorganização, ocorrer a afetação de um edifício, onde iria decorrer uma obra, a um hospital de campanha - admitimos que seja invocável uma “força maior” pelo credor público, obrigando-o, ainda assim, a indemnizar, por se tratar da sua esfera, mas apenas pelo interesse contratual negativo, numa lógica de repartição de riscos anormais (65) (66) (67).

4.5. Tendo admitido a imputação ao credor por ato ilícito (não culposo) e por ato lícito justificado, já mais dúvidas nos suscita que a imputação possa operar com base numa genérica imputação à esfera de risco do credor. Semelhante imputação - nestes quadros, abrangendo todos os eventos inevitáveis, desde que manifestados na pessoa, nas coisas ou na “empresa” do credor - não quadraria bem com as demais coordenadas do sistema, onde não vigora um princípio geral de imputação pelo risco . Isto, porém, sem prejuízo de poder ocorrer uma imputação (especial) pelo risco, decorrente de riscos que as partes tenham assumido no contrato (até inevitáveis, desde que previsíveis) (68).

Porém, recusando-se a imputação ao credor (ou que este de outro modo fique obrigado à contraprestação), deteta-se a injustiça da situação do devedor, que fica com o “risco de investimento” numa situação em que, recorde-se, a sua “capacidade de prestar” permaneceu intocada, tendo o problema surgido na esfera do credor - “não seria justo que o devedor houvesse de suportar, sem nenhuma compensação, as despesas que tenha feito ou o prejuízo que haja sofrido, sabendo-se que a causa da impossibilidade da prestação se registou numa zona de risco que é mais do credor do que do devedor” . Assim, procurando uma solução intermédia, entre o que resultaria da aplicação do artigo 795.º/1 ou do artigo 795.º/2, busca-se apoio noutras normas do ordenamento para fundar a imputação de determinados danos ao credor, seja aplicando por analogia o artigo 468.º/1 , seja convocando, diretamente ou por analogia, o artigo 1227.º / . Não sendo isento de controvérsia o fundamento de aplicação do artigo 1227.º e a forma como se articula com as demais regras sobre impossibilidade , pode ainda assim admitir-se que essa norma (ou outra) constitua expressão de um princípio geral, fundado na equidade, de repartição de riscos anormais (imprevisíveis e/ou inevitáveis) entre as partes envolvidas numa relação negocial . Este princípio terá aplicação sempre que a execução do contrato tenha implicado o investimento do devedor, desde que a impossibilidade, conquanto não imputável ao credor, provenha ainda assim da sua esfera e não da do devedor . E, fundando-se na equidade, pode inclusivamente suceder que a indemnização não se faça nos estritos termos do artigo 1227.º (69).

5. Impossibilidade e alteração das circunstâncias

5.1. Como vimos em 3., nem todas as situações de perturbação do escopo são reconduzidas à impossibilidade (embora o seja sempre em caso de perda de substrato). Para outras, como demos conta, abre-se a porta da alteração das circunstâncias (que, de qualquer forma, sempre conviria examinar, por forma a evitar assimetrias).

A alteração anormal das circunstâncias surgiu inicialmente no Direito Administrativo sob as vestes da teoria da imprevisão, tendo sido pensada - até pelo fundamento na continuidade do serviço público - para ser apenas de invocação pelo cocontratante da Administração . E, nos quadros da perturbação da base do negócio, como já demos conta, não é inequívoco que se compreenda as perturbações do fim do credor. O emprego da prestação constitui um risco do credor que, salvo “finalização”, não é partilhado pelo devedor - ou seja, não há impossibilidade, não se abrindo a hipótese de o credor ficar desobrigado da contraprestação (o credor já não vê utilidade na prestação mas tem que cumprir o acordado, realizando a contraprestação) . Dito de outro modo, salvo a dita “finalização”, o risco da frustração do fim pertence ao credor e, sendo este um risco próprio do contrato, fica arredada a invocação da alteração das circunstâncias, subsidiária em face das regras sobre distribuição do risco contratual .

Admitimos, porém, que, à margem da inclusão do fim no conteúdo contratual, possa este ainda assim relevar em sede de base do negócio(70). Não prejudicando que o ponto de partida continue a ser o de o risco pertencer ao credor, a invocação da alteração das circunstâncias será sempre a exceção, a admitir apenas em situações assimiláveis à força maior . O que, de qualquer forma, parece verificar-se na pandemia: esta não constitui, reconhece-se, uma perturbação “típica”, ultrapassando qualquer distribuição legal (ou contratual) do risco - por outras palavras, a pandemia afasta a subsidiariedade da alteração das circunstâncias .

5.2. Merecendo o tema mais aprofundamento do que este “parêntesis”, julgamos que, nestas situações extremas, não se deve negar ao credor público a possibilidade de resolver o contrato em sede de alteração das circunstâncias - um instituto que se funda na boa fé, em razões de justiça objetiva, e que dá uma resposta de repartição de danos adequada a uma situação de risco generalizado, afastando a colocação do risco em exclusivo numa das partes (como, de resto, sucede se for o devedor a invocá-la) / (71).

Contudo, esta abertura à alteração anormal das circunstâncias, que não deve deixar de ser entendida como um instituto de ultima ratio, deve obedecer a duas condições. Primeira, a de que deve ser reconhecido, à semelhança do que se tem defendido no Direito Privado, um dever de negociar, aí onde ainda seja possível modificar o contrato (72). Segunda, a de que a resolução deve ser acompanhada de uma indemnização, a qual, na lógica da repartição de riscos, deve - à semelhança da impossibilidade não imputável ao credor - cobrir o interesse contratual negativo .

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Recebido: 24 de Outubro de 2020; Aceito: 20 de Novembro de 2020

Notas biográficas Mafalda Carmona Professora Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa; Investigadora Principal do Centro de Investigação de Direito Público; Advogada. Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Alameda da Universidade - Cidade Universitária 1649-014 Lisboa - Portugal mcarmona@fd.ulisboa.pt

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