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e-Pública: Revista Eletrónica de Direito Público

versão On-line ISSN 2183-184X

e-Pública vol.7 no.3 Lisboa dez. 2020  Epub 22-Jan-2022

https://doi.org/10.47345/iegu4976 

Direito Administrativo

O regime dos actos consequentes de actos anulados. Defesa de um conceito restrito de acto consequente.

The regime of the consequent acts of annulled acts. Defense of a restricted concept of consequent act.

Ana Raquel Coxoi 

1Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra, Portugal


Resumo:

O presente artigo versa sobre o regime dos actos consequentes de actos administrativos anulados, o qual se encontra previsto, de forma paralela, no artigo 172.º do CPA e no artigo 173.º do CPTA. A aplicação do referido regime desperta múltiplas incertezas, nomeadamente quanto à abrangência do conceito de “actos consequentes”, ao prazo de intervenção sobre estes actos e ao âmbito da tutela dos “beneficiários de boa fé de actos consequentes” e dos “terceiros com interesse legítimo na manutenção de situações incompatíveis”. Através da defesa de um conceito restrito de acto consequente, pretende-se analisar, de forma crítica, o regime prescrito nas normas citadas, sem descurar a doutrina e a jurisprudência emitidas sobre esta matéria.

Palavras-chave: Anulação; acto consequente; beneficiário de acto consequente; beneficiário de boa fé; emprego público

Abstract:

This article deals with the regime of the consequent acts of annulled acts, which is provided, in parallel, in article 172 of the Administrative Procedure Code and in article 173 of the Administrative Court Procedure Code. The application of this regime raises multiple uncertainties, namely regarding the scope of the concept of “consequent acts”, the term of intervention on these acts and the scope of the protection of “bona fide beneficiaries of consequent acts" and “third parties with a legitimate interest in maintaining incompatible situations”. By defending a restricted concept of a consequent act, the intention is to critically analyze the regime of the consequent acts of annulled acts, without disregarding the doctrine and jurisprudence issued on this matter.

Keywords: Annulment; consequent act; consequent act beneficiary; bona fide beneficiary; public employment

1. Introdução

A anulação, administrativa ou judicial, de actos administrativos acarreta para o órgão administrativo que praticou o acto anulado um conjunto de “consequências”, cujo regime se encontra definido em termos coincidentes no artigo 172.º do Código do Procedimento Administrativo (doravante «CPA») e no artigo 173.º do Código do Processo nos Tribunais Administrativos (doravante «CPTA»). Ou seja, o conteúdo dos citados preceitos do CPA e do CPTA sobrepõe-se praticamente na íntegra, pelo que o regime das consequências da anulação dos actos administrativos é semelhante, independentemente de estar em causa uma anulação administrativa - de iniciativa oficiosa ou particular, ordenada pelo órgão que praticou o acto a anular ou por outra entidade com competência para o efeito -, ou uma anulação decretada por uma decisão judicial de um Tribunal Administrativo .

O presente artigo diz respeito, no entanto, somente às hipóteses em que os actos consequentes não foram objecto de impugnação contenciosa, considerando que não existe um ónus de impugnação destes actos (1). Com efeito, se o acto consequente não tiver sido objecto de impugnação, o regime que lhe será aplicável é o que decorre dos n.os 2 e 3 do artigo 172.º do CPA e dos n.os 2 e 3 do artigo 173.º do CPTA, onde se define em que medida as “consequências” da anulação do acto antecedente se irão repercutir no acto consequente. Como se verá, este poderá ser mantido ou, então, poderá ser anulado, reformado ou substituído. Por outro lado, o regime em causa incide também sobre a tutela da posição jurídica dos “beneficiários de boa fé de actos consequentes”, o qual tem gerado controvérsia na doutrina. No contexto desta hipótese, embora os actos consequentes não tenham sido impugnados (pelo interessado que promoveu a anulação do acto antecedente), as consequências que sobre os mesmos se irão abater assentam nos chamados efeitos “ultra-constitutivos do julgado anulatório”. Ou seja, a sentença não se limita a anular um acto administrativo (o acto antecedente) - “efeito constitutivo” -, pois dessa anulação decorrem outros efeitos, nomeadamente, o dever de reconstituição da situação hipotética actual - “efeito reconstitutivo” - que, muitas vezes, depende da intervenção da Administração sobre os actos consequentes (2). Em termos análogos, e no domínio da anulação administrativa, consideram-se os actos consequentes abrangidos pelos efeitos (ultra-constitutivos) do caso decidido inerente ao acto administrativo de anulação (do acto antecedente).

Paralelamente, há que considerar as situações em que o acto consequente é objecto de impugnação, o que poderá ocorrer através de uma cumulação inicial ou superveniente de pedidos impugnatórios, nos termos, respectivamente, dos artigos 4.º e 63.º do CPTA (3) (4). Nestes casos, ambos os actos, antecedente e consequente, vão ser sindicados pelo Tribunal que determinará a anulação de ambos, e daí que o destino do acto consequente já não ficará dependente da actuação posterior da Administração como consequência da (simples) anulação do acto antecedente (e, portanto, da aplicação do regime prescrito pelo artigo 173.º do CPTA) . Todavia, não iremos explorar de forma autónoma este grupo de situações.

Isto posto, inicia-se o presente artigo através da definição de um conceito preliminar de “actos consequentes”, considerando as posições doutrinais e jurisprudenciais sobre a matéria (cfr. ponto 2). Seguidamente, através da exegese dos n.os 1, 2 e 3, respectivamente, do artigo 172.º do CPA e do artigo 173.º do CPTA, explorar-se-á o regime jurídico dos actos consequentes de actos anulados (cfr. ponto 3), em concreto, a “sorte” dos actos consequentes, por um lado (cfr. ponto 3.1.), e a tutela dos “beneficiários de boa fé de actos consequentes”, por outro (cfr. ponto 3.2.). Contraposto a estes tópicos, surge, a nosso ver, a problemática das consequências da anulação de actos administrativos relacionada com a tutela dos trabalhadores ilegalmente demitidos/despedidos ou ilegalmente impedidos de progredir na carreira, a qual se encontra regulada no n.º 4 do artigo 172.º do CPA e no n.º 4 do artigo 173.º do CPTA (cfr. ponto 4). A partir do cotejo entre estas duas hipóteses (versadas, respectivamente, nos pontos 3 e 4), conclui-se este estudo com a defesa de um conceito restrito de acto consequente (cfr. ponto 5).

2. Os “actos consequentes”: conceito preliminar

A expressão “actos consequentes” consta em três preceitos do CPA (nos n.os 2 e 3 do artigo 172.º e no n.º 2 do artigo 173.º) e em dois preceitos do CPTA (nos n.os 2 e 3 do artigo 173.º), mas nenhum dos preceitos citados fornece um conceito legal de acto consequente .

A partir dos contributos da doutrina (5) (6) (7) (8) e da jurisprudência , e a título preliminar, define-se acto consequente como acto administrativo praticado na sequência de outro acto administrativo (acto antecedente ou pressuposto), o qual, para o que aqui releva, foi objecto de anulação. Destarte, a nomeação é um acto consequente do acto (antecedente) de homologação da lista de ordenação final, no âmbito de um procedimento concursal de recrutamento ; a nomeação de sub-directores é um acto consequente do acto (antecedente) de homologação do resultado eleitoral que elegeu o director de uma escola ; a emissão do alvará e a autorização para a instalação de uma farmácia configuram actos consequentes da deliberação homologatória da lista de classificação final dos candidatos a um concurso público para a instalação de uma farmácia ; a desafectação de uma parcela do domínio público para o domínio privado e a autorização de permuta são actos consequentes do acto (antecedente) de aprovação de um loteamento .

Com efeito, o acto consequente está numa relação de dependência ou de “conexão jurídica” com o acto antedecente , no sentido de que a prática do acto consequente integra a mesma cadeia de actos em que se insere o acto antecedente e o seu conteúdo assenta ou tem por base o conteúdo do acto antecedente. Retomando os exemplos citados, a nomeação de um funcionário é praticada no âmbito de um determinado procedimento concursal de recrutamento e o seu conteúdo (v.g., nomeação do funcionário A) assenta no conteúdo do acto de homologação da lista ordenada dos candidatos (do qual resulta como primeiro classificado o funcionário A); a nomeação de sub-directores está contemplada no mesmo procedimento eleitoral que conduziu à eleição do director, sendo que a escolha dos sub-directores (C e D) tem na sua base a prévia eleição do director (B); e assim sucessivamente.

Devido à conexão jurídica que se estabelece entre o acto consequente e o acto antecedente, as invalidades que incindem sobre este hão de repercutir-se naquele. Ora, aqui reside o problema das consequências da anulação sobre a “sorte” dos actos consequentes, o qual será abordado nos tópicos que se seguem.

Antes, porém, de se iniciar a análise do regime dos actos consequentes de actos anulados, importa destrinçar os actos consequentes de outras realidades. Com efeito, nem sempre é fácil distinguir os actos consequentes daquelas situações em que há um novo procedimento administrativo e, por conseguinte, se inicia uma nova relação jurídica que sucede, cronologicamente, a uma relação jurídica anterior, no seio da qual houve lugar à anulação de um acto. A doutrina adianta como exemplo as hipóteses de demissão ou despedimento disciplinar de um trabalhador (E) seguida do recrutamento de um novo trabalhador (F) para o lugar deixado vago . Uma vez anulado o despedimento ou a demissão, o trabalhador ilegalmente demitido ou despedido (E) deve ser reintegrado no posto de trabalho, o qual, entretanto, já se encontra preenchido por outro trabalhador (F). Como se deve proceder nestas circunstâncias? A nomeação do trabalhador F deve considerar-se um acto consequente do despedimento ou demissão do trabalhador E? Julga-se que não, porquanto a nomeação do trabalhador F ocorreu no âmbito de um procedimento autónomo face ao procedimento disciplinar que culminou no despedimento ou demissão do trabalhador E. Trata-se, na verdade, de dois procedimentos administrativos e de duas relações jurídicas que se sucederam no tempo, mas entre as quais não existe uma relação de dependência ou conexão jurídica, uma vez que a nomeação do trabalhador F (isto é, a escolha daquele trabalhador para aquele posto de trabalho) não assenta ou não se baseia no acto de despedimento ou demissão do trabalhador E. Não se pode deixar de reconhecer que, no plano dos factos, o recrutamento do trabalhador F foi impulsionado pela demissão do trabalhador E . Todavia, a incompatibilidade gerada entre a posição jurídica do Trabalhador E - que, por força da anulação, deve ser reintegrado no posto de trabalho do qual foi ilegalmente demitido ou despedido - e a posição jurídica do Trabalhador F - que foi nomeado para o exercício daquele posto de trabalho e cuja nomeação se encontra legitimada por um procedimento concursal autónomo, no qual o aludido trabalhador, enquanto candidato, foi ordenado em primeiro lugar na lista de ordenação final - deve merecer um tratamento jurídico diferente do confiado aos actos consequentes. Mais à frente, procurar-se-á estabelecer a diferenciação entre o regime de tutela dos “beneficiários de actos consequentes” e o regime de tutela de “terceiros com interesse legítimo na manutenção de situações incompatíveis”.

Finalmente, alerta-se para o facto de que os actos consequentes, para efeitos da aplicação do regime que se abordará de seguida, são necessariamente actos praticados antes da anulação, administrativa ou judicial, do acto antecedente. Ou seja, o regime dos actos consequentes de actos anulados versa sobre os actos praticados após ou na sequência do acto antecedente, mas antes do momento em que este venha a ser anulado . Relativamente aos actos praticados após a anulação do acto antecedente, no caso da anulação judicial, se os mesmos desrespeitarem os termos do caso julgado, são sancionados com o desvalor da nulidade, devendo o interessado, em sede de execução de sentença, peticionar a declaração de nulidade dos actos desconformes com a sentença ou a anulação dos actos que mantenham, sem fundamento válido, a situação ilegal - . No caso da anulação administrativa, os actos praticados após a anulação estão sujeitos ao regime-regra da invalidade dos actos e da sua impugnação, por via administrativa ou contenciosa.

3. O regime dos actos consequentes de actos anulados: os n.os 1, 2 e 3 do artigo 172.º do CPA e os n.os 1, 2 e 3 do artigo 173.º do CPTA

3.1. As consequências da anulação dos actos administrativos e a “sorte” dos actos consequentes (n.os 1 e 2)

As consequências da anulação dos actos administrativos (9) assentam no pressuposto da destruição retroactiva dos efeitos do acto anulado e, por conseguinte, na necessidade de reformular os termos da pronúncia administrativa objecto de anulação. Com efeito, a reformulação da pronúncia administrativa, expurgada dos vícios que determinaram a anulação, pode dar origem à prática de um novo acto, cujo conteúdo decisório seja igual ao do acto anulado, ou pode dar origem à prática de um novo acto com um conteúdo decisório diferente. Assim, dependendo do vício que enferma o acto anulado, as “consequências” a retirar da anulação podem variar.

Com efeito, nos termos do n.º 1 do artigo 172.º do CPA e do n.º 1 do artigo 173.º do CPTA, a Administração pode “praticar novo acto administrativo” (dotado do mesmo conteúdo decisório do acto anulado, desde que não reincida nas invalidades que determinaram a anulação daquele) ou pode ficar constituída nos deveres de “reconstituir a situação que existiria se o acto anulado não tivesse sido praticado” ou tivesse sido praticado sem invalidades e de “dar cumprimento aos deveres que não tenha cumprido com fundamento naquele acto, por referência à situação jurídica e de facto existente no momento em que deveria ter actuado”. Para tanto, o n.º 2 do artigo 172.º do CPA e o n.º 2 do artigo 173.º do CPTA, investem-na dos poderes-deveres “de praticar actos dotados de eficácia retroativa, desde que não envolvam a imposição de deveres, encargos, ónus ou sujeições, a aplicação de sanções ou a restrição de direitos ou interesses legalmente protegidos” e de “anular, reformar ou substituir os actos consequentes, sem dependência de prazo, e alterar as situações de facto entretanto constituídas, cuja manutenção seja incompatível” com a necessidade de reconstituir a situação que existiria se o acto anulado não tivesse sido praticado (ou tivesse sido praticado sem invalidades) ou com a execução da sentença de anulação, respectivamente.

Considerando o regime prescrito, aborda-se a problemática das consequências da anulação dos actos administrativos a partir da distinção entre (i) as situações em que a reformulação da pronúncia administrativa não tem impacto no conteúdo decisório do caso concreto (que é mantido com a prática do novo acto) e (ii) aquelas em que das consequências da anulação se retira uma decisão administrativa que não coincide com a do acto anulado.

No primeiro grupo de situações, se o reexercício do poder administrativo conduzir à prática de um novo acto com o mesmo conteúdo decisório do acto anulado, mas expurgado das ilegalidades que inquinavam este último, a reintegração da legalidade violada ocorre pela atribuição de efeitos retroactivos ao novo acto , que vem colmatar o vazio regulatório decorrente da anulação. Ao serem ambos dotados de eficácia retroactiva - quer o acto de anulação, quer o novo acto administrativo que mantém o sentido decisório do acto anulado, mas que não reincide nas ilegalidades que conduziram à sua anulação - tudo se passa como se o caso concreto tivesse sido objecto de uma regulação administrativa válida ab initio. Nesta senda, os actos consequentes entretanto praticados permanecem intactos, uma vez que a invalidade (derivada) que os atingia - decorrente da invalidade do acto anulado - desapareceu com a anulação e com o restabelecimento da legalidade e da regulação do caso concreto através da prática do novo acto. Ora, tendo em conta que este mantém o conteúdo do acto anulado, não há por que atingir os actos consequentes, uma vez que a sua manutenção não é incompatível com a situação que existiria se o acto anulado tivesse sido praticado sem invalidades - . Assim, por exemplo, se tiver sido anulado o acto que homologou o resultado eleitoral que permitiu a escolha do director de uma escola pública com fundamento no facto de terem participado na votação membros do órgão eleitor que se encontravam impedidos, a anulação importa a repetição da votação sem a participação dos aludidos membros. Se nesta sequência - isto é, uma vez repetida a votação sem a intervenção dos referidos membros impedidos -, for eleita a mesma pessoa, cuja eleição tinha resultado do acto anulado, então, a nova eleição, dotada de eficácia retroactiva, reintegra, por si só, a legalidade violada, pois tudo se passará como se o director da escola tivesse sido legalmente eleito na data da realização da primeira votação (a anulada). Acresce que os actos (consequentes) praticados pelo director da escola, no período que decorreu entre a primeira eleição e a sua repetição (como, por exemplo, a nomeação dos sub-directores), também se encontram salvaguardados pela eficácia ex tunc desta última . Isto porque a manutenção de tais actos consequentes não é incompatível com o status quo que resulta da nova eleição e cujo resultado (decorrente de um procedimento eleitoral que não reincidiu nas invalidades que inquinaram o anterior) é igual ao da eleição anulada.

Todavia, dentro deste grupo de situações, há que considerar uma hipótese particular. Quando a anulação incida sobre actos desfavoráveis (actos que “envolvam a imposição de deveres, encargos, ónus ou sujeições, a aplicação de sanções ou a restrição de direitos ou interesses legalmente protegidos”), embora o novo acto mantenha o conteúdo decisório do acto anulado, às consequências extraídas da anulação somente pode ser atribuída eficácia para o futuro, por força do disposto na primeira parte do n.º 2 do artigo 172.º do CPA e na primeira parte do n.º 2 do artigo 173.º do CPTA , acima citados. Vejamos o seguinte exemplo: imagine-se que foi anulada a deliberação que determinou o despedimento disciplinar de um trabalhador com fundamento no facto de a mesma ter sido realizada por votação nominal, quando a lei aplicável exigia o escrutínio secreto; a votação foi repetida com observância da formalidade preterida, a qual conduziu à tomada da mesma decisão no sentido do despedimento do trabalhador. No caso vertente, por estar em causa um acto de cariz sancionatório (a aplicação de uma sanção disciplinar ), o novo acto administrativo, embora mantenha o conteúdo decisório do acto anulado, não poderá ser dotado de eficácia retroactiva. Consequentemente, a entidade pública empregadora ficará constituída no dever de reconstituir a situação que existiria se o acto anulado não tivesse sido praticado, considerando-se o trabalhador despedido a partir da data da prática do novo acto administrativo, pelo que deverá a Administração proceder ao pagamento das quantias remuneratórias que o trabalhador teria auferido entre a prática do acto anulado e a prática do novo acto . Pois, caso se admitisse a atribuição de eficácia retroactiva a actos desta natureza, seriam colocados em causa os direitos e interesses dos particulares visados, cujas pretensões impugnatórias, embora fundadas, não teriam quaisquer consequências práticas .

A par das situações em que o novo acto administrativo mantém o conteúdo decisório do acto anulado, coloca-se o segundo grupo de situações em que a reformulação da pronúncia administrativa, por força da anulação de uma acto administrativo, dá lugar a uma decisão cujo conteúdo é diferente daquele que resultava do acto anulado. Nestes casos, as consequências da anulação podem ser muito abrangentes, dando lugar, por exemplo, à repetição de um procedimento administrativo (v.g., de recrutamento, de licenciamento, de autorização, eleitoral), à prática de actos administrativos dotados de eficácia retroactiva (v.g., de nomeação, de emissão de uma licença ou de uma autorização), ao cumprimento de deveres que não foram cumpridos (v.g., pagamento de remuneração) e à anulação, reforma ou substituição dos actos consequentes, sem dependência de prazo, cuja manutenção se revele incompatível com as consequências a extrair da anulação (v.g., anulação do acto de nomeação ou da licença ou da autorização atribuídas a um candidato que, após a repetição do procedimento concursal, deixou de figurar numa posição elegível para aceder a um emprego público ou à obtenção de uma licença ou de uma autorização) .

Sobre este ponto, mais concretamente sobre o sentido da expressão “sem dependência de prazo”, cumpre assinalar as dúvidas que se colocam sobre se a anulação dos actos consequentes está ou não sujeita aos condicionalismos temporais, previstos no artigo 168.º do CPA. Uma parte da doutrina perfilha o entendimento de que a sobredita anulação pode ocorrer, na sequência da anulação do acto antecedente, sem que a tal possa obstar a circunstância de já se encontrarem expirados os prazos dentro dos quais seria possível actuar sobre esses actos. Isto porque a possibilidade de intervir sobre os actos consequentes só se coloca após a anulação dos respectivos actos antecedentes, e daí que não sejam atendíveis os prazos gerais da impugnação contenciosa - à semelhança, aliás, de outras hipóteses previstas no artigo 168.º do CPA. Ou seja, a não impugnação dos actos consequentes não gera a consolidação dos mesmos, os quais podem vir a ser anulados na sequência da anulação dos correspondentes actos antecedentes (10). Outra parte da doutrina considera que, na economia do CPA, não é de admitir uma “anulação a qualquer momento”, pelo que devem ser tomados em linha de conta os prazos previstos no artigo 168.º do CPA para a anulação de actos consequentes na sequência da anulação administrativa do acto antecedente (11). Salvo o devido respeito por melhor opinião, entendemos que a intervenção sobre os actos consequentes pode ocorrer, de facto, “sem dependência de prazo”. Do ponto de vista da anulação administrativa, poderia fazer sentido uma leitura conjugada do n.º 2 do artigo 172.º com os prazos previstos no artigo 168.º, no sentido de submeter a anulação dos actos consequentes aos limites temporais previstos para a anulação administrativa, em geral. Todavia, tal interpretação afronta a literalidade do n.º 2 do artigo 172.º (“sem dependência de prazo”) que pretende instituir um regime específico para a anulação dos actos consequentes. Já do ponto de vista da anulação contenciosa, a experiência demonstra que a pendência dos processos se alonga, em regra, por períodos superiores a cinco anos (prazo máximo, contado da data da prática do acto, previsto no artigo 168.º do CPA, para a anulação administrativa de actos administrativos), o que impediria, por si só, a execução da sentença de anulação. Acresce que a tutela da posição dos beneficiários dos actos consequentes resulta do regime prescrito pelo n.º 3 (do artigo 172.º do CPA e do artigo 173.º do CPTA) e não, a nosso ver, da consolidação do acto pelo decurso do prazo de impugnação/anulação administrativa.

Em suma, quanto aos actos consequentes, as consequências da anulação do acto antecedente podem ditar a manutenção dos mesmos, caso tenha sido praticado um novo acto que, sem reincidir nas invalidades do acto antecedente, mantenha o conteúdo decisório deste último ou podem ditar a sua anulação, reforma ou substituição, sempre que a respectiva manutenção se revele incompatível com a reconstituição da situação hipotética actual, em caso de emissão de uma nova pronúncia administrativa cujo sentido regulador não coincida com o que resultava do acto antecedente. Todavia, o interesse na anulação dos actos consequentes - isto é, o interesse na reintegração da legalidade violada e o interesse da protecção dos direitos do impugnante que obteve a anulação -, pode contender com os direitos e interesses dos beneficiários desses actos.

3.2. A tutela dos “beneficiários de boa fé de actos consequentes” (n.º 3)

Os actos consequentes que, por força das consequências da anulação e pelo facto de serem incompatíveis com a reconstituição da situação que existiria se o acto anulado não tivesse sido praticado ou tivesse sido praticado sem invalidades, devam ser anulados podem ser actos constitutivos de direitos. Como tal, a respectiva anulação irá colocar em causa a posição jurídica dos seus beneficiários. Retomando os exemplos que se tem vindo a referir, a “nomeação”, a “licença” e a “autorização” são actos constitutivos de direitos para os respectivos destinatários. Se, na senda da anulação do acto antecedente (v.g., acto de homologação da lista ordenada dos candidatos), se impuser a anulação de tais actos consequentes, em que medida a posição jurídica dos beneficiários pode ser protegida?

A resposta a esta questão encontra-se no n.º 3 do artigo 172.º do CPA e no n.º 3 do artigo 173.º do CPTA, que dispõem o seguinte: “os beneficiários de boa-fé de actos consequentes praticados há mais de um ano têm direito a ser indemnizados pelos danos que sofram em consequência da anulação, mas a sua situação jurídica não pode ser posta em causa se esses danos forem de difícil ou impossível reparação e for manifesta a desproporção existente entre o seu interesse na manutenção da situação” e o “dos interessados na concretização dos efeitos da anulação” ou “o interesse na execução da sentença anulatória”, respectivamente. As normas evidenciam os interesse em conflito: por um lado, o interesse dos beneficiários dos actos consequentes, cujos direitos serão afectados pela anulação (v.g., despromoção ou cessação da relação jurídica de emprego, cessação da licença ou autorização) e que, portanto, milita no sentido da manutenção do status quo decorrente do acto antecedente (anulado); por outro lado, o interesse do impugnante, cuja pretensão anulatória foi procedente e que, em consequência, visa uma alteração do referido status quo, no sentido de ver reconhecido e concretizado um direito ou interesse que lhe foi ilegalmente negado. A par destes, há que tomar em linha de conta o interesse público na reposição da legalidade violada (que fortalece a posição do interessado na anulação), mas também a necessidade de ponderação dos diversos interesses em conflito, considerando, nomeadamente, os princípios da proporcionalidade, da boa fé e da protecção da confiança (que militam a favor da posição do beneficiário do acto consequente). Ora, de acordo com o disposto nas normas em estudo, prevêem-se, à partida, dois níveis de tutela dos beneficiários dos actos consequentes de actos anulados: o primeiro nível consagra uma tutela indemnizatória ao passo que o segundo nível consagra uma tutela conservatória. Ambos os níveis de tutela pressupõem a verificação de um conjunto de requisitos.

Assim, para que os beneficiários dos actos consequentes possam aceder ao primeiro nível de tutela é necessário que (i) se encontrem de boa-fé e que (ii) os actos consequentes tenham sido praticados há mais de um ano (12). Nesta hipótese, os beneficiários dos actos consequentes têm direito a ser indemnizados pelos danos que sofram em consequência da anulação. Com efeito, este primeiro nível de tutela privilegia o princípio da legalidade e a protecção dos interesses do impugnante, pois com a anulação do acto consequente eliminam-se os entraves à reconstituição da situação hipotética actual (o que lhe permitirá, v.g., ser nomeado, ser eleito, obter uma licença ou autorização, etc.).

O acesso ao segundo nível de tutela depende igualmente (i) da boa fé dos beneficiários dos actos consequentes e (ii) do facto de estes haverem sido praticados há mais de um ano, mas também (iii) do pressuposto de que os danos decorrentes da anulação sejam de difícil ou impossível reparação e seja manifesta a desproporção existente entre o seu interesse na manutenção da situação e o do interessado na concretização dos efeitos da anulação. Nesta hipótese, a anulação do acto antecedente não se irá projectar nos actos consequentes, pelo que os respectivos beneficiários conservam a situação jurídica decorrente dos mesmos. Desta forma, privilegia-se o interesse do beneficiário do acto consequente, em detrimento da reintegração da legalidade e dos interesses do impugnante. Por conseguinte, a manutenção da situação jurídica decorrente do acto consequente traduz-se numa causa legítima de inexecução da anulação administrativa ou da sentença de anulação do acto antecedente . Assim, não sendo possível reconstituir a situação hipotética actual que existiria se o acto anulado não fosse um acto inválido, o interessado nas consequências da anulação será ressarcido através do pagamento de uma indemnização. Se se tratar de uma anulação administrativa, e na falta de acordo com a entidade administrativa, o interessado terá que dar entrada de um acção de responsabilidade civil, com um duplo fundamento: por um lado, está em causa uma responsabilidade por factos lícitos, uma vez que a conduta da Administração se apoia na segunda parte do n.º 3 do artigo 172.º do CPA, em que o interessado poderá obter uma compensação pela perda de chance quanto à concretização dos efeitos da anulação do acto antecedente e, por outro lado, verifica-se também uma responsabilidade por factos ilícitos assente nas invalidades do referido acto e nos danos sofridos pelo interessado em virtude da ilegalidade da conduta administrativa. Se se tratar de uma anulação judicial, o interessado na execução obterá, na instância executiva, a compensação devida pela inexecução legítima da sentença e, quanto aos danos decorrentes da conduta ilegal da Administração, terá de promover uma acção autónoma de responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos .

Como se acaba de referir, o pressuposto temporal é comum a ambos os níveis de tutela, pelo que se o mesmo não se encontrar verificado, isto é, se o acto consequente a anular tiver sido praticado há menos de um ano, a situação jurídica do respectivo beneficiário não será acautelada? Este verá a sua situação jurídica alterada e extintos, sem mais, os direitos ilegalmente reconhecidos pelo acto consequente? Ora, parece-nos que os destinatários destes actos consequentes devem poder beneficiar da tutela indemnizatória dispensada pelo n.º 6 do artigo 168.º do CPA, tendo presente que se está perante um acto constitutivo de direitos (no caso, o acto consequente) que foi objecto de anulação administrativa - nos casos em estudo, a anulação do acto consequente é sempre administrativa, independentemente de se ter verificado uma anulação administrativa ou judicial do acto antecedente - dentro do prazo de um ano a contar da data da respectiva emissão (cfr. n.º 2 do artigo 168.º do CPA). Os requisitos são, contudo, bastante apertados, pois exige-se que (i) os beneficiários desconheçam sem culpa a existência da invalidade e (ii) tenham auferido, tirado partido ou feito uso da posição de vantagem em que o acto os colocava (investimento de confiança). Por outro lado, somente são indemnizáveis os “danos anormais” decorrentes da anulação. Admitindo esta possibilidade, perscruta-se um nível zero de tutela dos beneficiários dos actos consequentes de actos anulados. Em suma, do ponto de vista da tutela indemnizatória, os âmbitos de aplicação do n.º 6 do artigo 168.º e da primeira parte do n.º 3 do artigo 172.º do CPA são distintos: o primeiro abarca actos consequentes praticados há menos de um ano, ao passo que o segundo respeita a actos consequentes praticados há mais de um ano; o primeiro faz depender a pretensão indemnizatória do desconhecimento sem culpa da existência da invalidade ao passo que o segundo exige a boa fé do beneficiário (veremos, de seguida, a querela que se coloca a este propósito); o primeiro restringe os danos indemnizáveis aos danos anormais sofridos em consequência da anulação ao passo que o segundo não contém essa restrição.

Neste momento, impõe-se abordar a querela sobre o preenchimento do conceito de “boa fé” para efeitos de aplicação do disposto no n.º 3 do artigo 172.º do CPA e do n.º 3 do artigo 173.º do CPTA.

Antes de mais, nota-se que a redacção do n.º 3 do artigo 172.º do CPA corresponde à sua versão originária, o que já não sucede com a norma do CPTA. Com efeito, a redacção originária do n.º 3 do artigo 173.º do CPTA referia-se aos “beneficiários de actos consequentes (…) que desconheciam sem culpa a precariedade da sua situação”, a qual veio a ser alterada - e alinhada com a redacção do n.º 3 do artigo 172.º do CPA - no sentido de passar a fazer referência aos “beneficiários de boa-fé de actos consequentes”. Por outro lado, este ponto não pode deixar de ser também contextualizado com uma breve referência ao quadro normativo anterior ao actualmente vigente e que decorria do Código do Procedimento Administrativo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442/91, de 15 de Novembro (doravante designado por «CPA/91»). Neste diploma, constavam do elenco dos actos nulos “os actos consequentes de actos administrativos anteriormente anulados ou revogados, desde que não haja contra-interessados com interesse legítimo na manutenção do acto consequente” (cfr. alínea i) do n.º 2 do artigo 133.º do CPA/91). Por conseguinte, a protecção dos beneficiários de actos consequentes de actos anulados correspondia a uma tutela conservatória, que dependia da invocação de um interesse legítimo na manutenção do acto consequente.

Com efeito, no âmbito da vigência da alínea i) do n.º 2 do artigo 133.º do CPA/91, conjugada com a redacção originária do n.º 3 do artigo 173.º do CPTA, a jurisprudência , apoiada na doutrina maioritária , firmou o entendimento de que os contra-interessados na acção administrativa de impugnação do acto (antecedente) não podiam beneficiar da tutela prevista naquelas normas, considerando que não eram alheios à disputa que versou sobre o acto antecedente e que tiveram oportunidade de se defender no contexto desse processo, ficando, assim, abrangidos pelo caso julgado anulatório. Por estes motivos, considerava-se que “não desconheciam sem culpa a precariedade da sua situação” e, como tal, não podiam invocar um “interesse legítimo na manutenção do acto consequente” de que eram beneficiários. Consequentemente, só podiam ser titulares de tal interesse legítimo, beneficiando da manutenção do acto consequente, os “terceiros” cuja situação jurídica não se encontrasse numa “relação directa” com a questão controvertida subjacente ao acto antecedente. Uma voz, no entanto, se levantava contra este entendimento, pugnando no sentido de que também os contra-interessados no processo de impugnação podiam ser “portadores de interesses legítimos na manutenção do acto consequente” nas situações em que se encontrassem de boa-fé. A boa-fé seria aferida não pelo desconhecimento da precariedade da situação, mas pelo facto de estar em causa uma invalidade não evidente ou de o beneficiário em nada ter contribuído para a mesma (13).

A revogação do CPA/91 e a consequente entrada em vigor do actual CPA, em particular do n.º 3 do seu artigo 172.º, a par da nova redacção do n.º 3 do artigo 173.º do CPTA não abalaram o quadro de entendimentos doutrinais exposto . Com efeito, Mário Aroso de Almeida entende que os preceitos fazem apelo a um conceito de boa-fé objectiva, tal como definido no n.º 6 do artigo 167.º do CPA (desconhecimento sem culpa da invalidade do acto). Para o Autor, os contra-interessados no processo de impugnação, beneficiários de actos consequentes, não são merecedores de tutela, porque podem “razoavelmente” contar que a situação jurídica, constituída pelo acto consequente do acto anulado, venha a ser posta em causa. Assim, o âmbito de aplicação do n.º 3 do artigo 173.º do CPTA confina-se aos “terceiros em relação ao caso julgado” anulatório . Por sua vez, José Carlos Vieira de Andrade mantém a sua posição no sentido de que “não deverão ser protegidos apenas os interesses de terceiros, estranhos à relação jurídica tocada pelo acto anulado, mas também os interesses dos beneficiários directos do acto consequente, que podem estar de boa fé, apesar de não desconhecerem a precariedade da sua situação” .

No cotejo entre estas posições, aventam-se alguns argumentos para contrapor à doutrina segundo a qual o n.º 3 do artigo 173.º do CPTA se destina a acautelar a posição jurídica de terceiros face ao caso julgado anulatório e, portanto, de beneficiários de actos consequentes estranhos ao litígio subjacente ao acto antecedente. De acordo com a mesma doutrina, os contra-interessados na acção de impugnação do acto antecedente não serão protegidos, na medida em que não desconheciam sem culpa a precariedade da sua situação. Em primeiro lugar, refira-se que este entendimento não tem apoio no texto da norma, que em momento algum se refere a contra-interessados ou a terceiros face ao caso julgado de anulação do acto consequente: a norma menciona simplesmente os “beneficiários de actos consequentes”. Por conseguinte, a condição de contra-interessado na acção impugnatória não deverá ser tomada como um pressuposto (automático) de exclusão do âmbito de aplicação do regime de tutela dos beneficiários de boa fé de actos consequentes, aqui em estudo. Na realidade, sendo os contra-interessados obrigatoriamente citados na acção de impugnação, sob pena de ilegitimidade passiva , o campo de aplicação da norma seria extremamente reduzido, o que, somado à exigência dos seus requisitos, eliminaria, na prática, as possibilidades da sua aplicação. Aliás, a jurisprudência acima referida, baseando-se no “critério do contra-interessado”, recusou, em todos os casos analisados, a aplicação da norma e, por conseguinte, bloqueou a tutela da posição dos beneficiários dos actos consequentes. Em segundo lugar, não se pode olvidar que se está perante um problema de anulação administrativa de actos constitutivos de direitos. Como já se fez referência, o CPA prevê um regime de protecção dos beneficiários de actos constitutivos de direitos, que sejam objecto de anulação dentro do prazo de um ano a contar da data da respectiva emissão , pelo que, independentemente de serem prescritos requisitos diferentes, não faria sentido deixar a descoberto de qualquer protecção os beneficiários de actos constitutivos de direitos cuja anulação ocorre num momento em que já foi ultrapassado o período de um ano sobre a data da sua prática. Até porque a consolidação das situações jurídicas e a consequente causação de danos em função da sua reversão é tanto maior quanto mais for o tempo decorrido. Em terceiro lugar, enfatiza-se a alteração da redacção do n.º 3 do artigo 173.º do CPTA, na sequência da reforma do contencioso administrativo de 2015, que deixou de fazer referência ao “desconhecimento sem culpa da precariedade da situação” para passar a contemplar o requisito da “boa-fé” do beneficiário do acto consequente. A interpretação que se faz da vontade do legislador é a de que houve uma intenção de alterar o critério da protecção, alargando-se a outros factores para além do desconhecimento da precariedade da situação - que, de alguma forma, está associado à condição de contra-interessado na acção de impugnação - como o tipo de invalidade em causa e, portanto, a contribuição ou não do beneficiário para a invalidade do acto (se apresentou documentos ou forneceu informações falsas, incompletas ou erradas no procedimento, se não podia ignorar que interveio numa determinada deliberação um membro impedido com o qual mantém uma relação de parentesco, não poderá ser considerado de boa fé; mas se a invalidade resultar exclusivamente da conduta da entidade administrativa ou se se tratar de uma invalidade não evidente, tal deverá ser atendido em benefício da posição do particular beneficiário do acto consequente). O factor do tempo decorrido - necessariamente superior a um ano sobre a data da prática do acto a anular - constitui um elemento determinante para aferir a dimensão dos danos, quer na tutela indemnizatória, quer na tutela conservatória e, bem assim, para aferir sobre a desproporção entre os interesses em conflito (reintegração da legalidade/interesse do impugnante que obteve a anulação do acto antecedente e interesse do beneficiário de boa fé do acto consequente).

À luz destas premissas, sustenta-se que, em abono da tutela da posição do beneficiário de boa fé de actos consequentes, e considerando os princípios da protecção da confiança e da proporcionalidade, devem considerar-se abrangidos pelo âmbito de aplicação do n.º 3 do artigo 173.º do CPTA os beneficiários de actos consequentes do acto (antecedente) anulado, praticados no contexto do mesmo procedimento administrativo e, por conseguinte, respeitantes à mesma relação material controvertida. Assim, a qualidade de contra-interessado na acção de impugnação do acto antecedente não deve, por si só, impedir o acesso à tutela do n.º 3 do artigo 173.º do CPTA. Considerar-se (ou não) o beneficiário do acto consequente como um “beneficiário de boa fé” deve depender de uma avaliação caso a caso, de acordo com vários factores, nomeadamente o tipo de invalidade e a contribuição do particular para a mesma.

No contexto do CPA, e da anulação administrativa, o âmbito de aplicação do n.º 3 do artigo 172.º do CPA não pode senão entender-se desta forma. Em caso de anulação administrativa do acto antecedente, os beneficiários dos actos consequentes deverão ser notificados na qualidade de “interessados” e terão oportunidade de se pronunciar em sede de audiência prévia . Tal facto não deverá, sem mais, excluí-los da protecção prevista naquela norma.

No fim de contas, é a Administração Pública que deve arcar com as consequências da prática de actos administrativos inválidos, quando lhe forem inteiramente imputáveis as ilegalidades que determinaram a anulação, o que, por vezes, pode implicar a não reintegração da legalidade violada. Não obstante, em todas as hipóteses, a responsabilidade da Administração traduzir-se-á no pagamento de indemnizações, seja ao beneficiário de boa fé do acto consequente sacrificado, seja ao particular interessado na concretização das consequências da anulação (do acto antecedente) sempre que se conclua pela impossibilidade de satisfazer a sua pretensão.

4. As consequências da anulação dos actos administrativos e a tutela do trabalhador ilegalmente demitido/despedido ou ilegalmente impedido de progredir na carreira: o n.º 4 do artigo 172.º do CPA e o n.º 4 do artigo 173.º do CPTA

O domínio do emprego público merece, por parte do legislador, um tratamento especial no que respeita às consequências da anulação dos actos administrativos. No âmbito das relações de emprego público, e antecipando a resolução de problemas práticos conhecidos, o n.º 4 do artigo 172.º do CPA e o n.º 4 do artigo 173.º do CPTA regulam os termos da tutela da posição jurídica do trabalhador ilegalmente demitido/despedido ou ilegalmente impedido de progredir na carreira da seguinte forma: “quando à reintegração ou recolocação de um trabalhador que tenha obtido a anulação de um acto administrativo se oponha a existência de terceiros com interesse legítimo na manutenção de situações incompatíveis, constituídas em seu favor por acto administrativo praticado há mais de um ano, o trabalhador que obteve a anulação tem direito a ser provido em lugar ou posto de trabalho vago e na categoria igual ou equivalente àquele em que deveria ter sido colocado, ou, não sendo isso imediatamente possível, em lugar ou posto de trabalho a criar no quadro ou mapa de pessoal da entidade onde vier a exercer funções”. Do ponto de vista prático, no momento em que o trabalhador (A) tem que ser reintegrado ou recolocado - por força das consequências a extrair da anulação do acto de demissão/despedimento ou do acto final do concurso de progressão na carreira ou, outro exemplo, do acto final do procedimento de avaliação de desempenho -, o posto de trabalho (X) que lhe corresponderia já se encontra preenchido por outro trabalhador (B) que, entretanto, o assumiu. E assumiu-o (o trabalhador B) na sequência da realização, pela entidade empregadora, de um novo e autónomo procedimento de recrutamento ou de progressão na carreira, no qual o aludido trabalhador acedeu legitima e legalmente ao posto de trabalho (X) vago. Nestes casos, os trabalhadores A e B não foram opositores no mesmo concurso; o trabalhador B nada tem que ver com o procedimento disciplinar que fora movido ao trabalhador A; o trabalhador A, apesar de ilegalmente demitido, não tem como impedir a entidade empregadora de promover um concurso para preenchimento do posto de trabalho (X) vago: não há, portanto, uma conexão jurídica entre a demissão ilegal/reintegração do trabalhador A e o recrutamento do trabalhador B. No entanto, as posições jurídicas dos trabalhadores A e B correspondem a “situações incompatíveis”, visto que, na prática, o mapa de pessoal da entidade empregadora só prevê um posto de trabalho X, relativamente ao qual há dois trabalhadores legitimados a ocupá-lo: o trabalhador A, porque obteve a anulação da demissão e deve ser reintegrado, e o trabalhador B, que, sendo opositor num concurso, foi posicionado em lugar elegível para o preenchimento daquele posto de trabalho. Ou seja, no contexto do n.º 4 dos preceitos em estudo, o trabalhador A é o trabalhador que, na sequência da anulação de um acto administrativo, tem direito a ser reintegrado ou recolocado (“quando à reintegração ou recolocação de um trabalhador que tenha obtido a anulação de um acto administrativo”) e o trabalhador B é o “terceiro com interesse legítimo na manutenção de situação incompatível”.

Com efeito, o âmbito de aplicação do n.º 4 do artigo 172.º do CPA e do n.º 4 do artigo 173.º do CPTA, cinge-se, em primeiro lugar, às relações de emprego público. Em segundo lugar, estão apenas abrangidas as hipóteses em que as consequências da anulação de um acto administrativo determinam a reintegração ou a recolocação de um trabalhador. Ora, a reintegração pressupõe a quebra ilegal do vínculo de emprego público, por força de um acto de demissão ou de despedimento, entretanto anulados, e a recolocação pressupõe uma mudança do posto de trabalho ou uma variação funcional (sem cessação do vínculo) (14). Por conseguinte, as situações que envolvem a anulação de um acto que, se não fosse ilegal, permitiria ao interessado aceder ao emprego público parecem não estar compreendidas no âmbito de aplicação do n.º 4, pelo que as consequências da anulação do acto que impediu ilegalmente esse acesso são as que resultam dos n.os 1, 2 e 3. Assim, a ponderação dos interesses conflituantes entre a posição jurídica do interessado ilegalmente preterido no concurso de acesso ao emprego público e que, na sequência da anulação, vê reconhecido o direito ao ingresso, e a posição daquele que acedeu ilegalmente àquele emprego (e que, portanto, é beneficiário do acto consequente do acto anulado) é resolvida nos termos do n.º 3, à luz do qual somente um deles poderá aceder à vaga para a qual foi aberto o recrutamento. Em contraponto, o âmbito de aplicação do n.º 4 é diferente. Assim, e em terceiro lugar, e no nosso entendimento, o n.º 4 visa situações em que estão em causa duas relações jurídicas entre as quais não existe uma relação de supra-infra-ordenação em termos de os actos praticados numa delas poderem influenciar a validade dos actos praticados na outra. Ou seja, nos exemplos citados, a invalidade do acto de despedimento não pode, a nosso ver, influenciar o acto de nomeação praticado no âmbito de um procedimento de recrutamento novo, cujo candidato habilitado satisfez todas as condições necessárias para o acesso ao posto de trabalho, porque este acto de nomeação não configura, a nosso ver, um acto consequente do acto de demissão anulado. Na nossa perspectiva, este entendimento tem apoio na letra da lei: o n.º 3 refere-se a “beneficiários de actos consequentes” ao passo que o n.º 4 se refere a “terceiros”. Veja-se que os beneficiários de actos consequentes não são, na nossa perspectiva, terceiros face à relação jurídica no âmbito da qual se encadeiam e conectam o acto anulado e o acto consequente: o beneficiário do acto consequente e o interessado que obteve a anulação do acto antecedente participam e relacionam-se no seio da mesma relação jurídica (do mesmo recrutamento, do mesmo procedimento concursal, da mesma eleição). Diferentemente, nos casos subjacentes ao n.º 4, não há uma relação directa ou até conflito entre os titulares de duas posições jurídicas incompatíveis. Na realidade, a incompatibilidade é uma realidade que se impõe exclusivamente à entidade pública, e à qual são alheios quer o trabalhador ilegalmente demitido/despedido ou ilegalmente impedido de progredir na carreira relativamente a um concreto posto de trabalho, quer o trabalhador que, sendo opositor num concurso e tendo ficado posicionado em lugar elegível, acede legitimamente àquele posto de trabalho. Neste contexto, a solução legal só poderá ir no sentido de serem acauteladas ambas as posições. O impacto da ilegalidade tem que ser absorvido inteiramente pela entidade empregadora e daí que, tal como resulta das normas n.º 4, o trabalhador ilegalmente demitido/despedido ou ilegalmente impedido de progredir na carreira tem direito a “ser provido em lugar ou posto de trabalho vago e na categoria igual ou equivalente àquele em que deveria ter sido colocado, ou, não sendo isso imediatamente possível, em lugar ou posto de trabalho a criar no quadro ou mapa de pessoal da entidade onde vier a exercer funções” e o trabalhador que, entretanto, acedeu legitimamente ao posto de trabalho vago mantem intacta a sua posição jurídica. Em suma, a ilegalidade da conduta administrativa redunda, nestes casos, na duplicação de um posto de trabalho.

Neste quadro de entendimento, não se compreende o requisito temporal exigido pelo n.º 4 dos preceitos em análise que faz depender a tutela da posição jurídica do “terceiro com interesse legítimo na manutenção de situações incompatíveis” do decurso de um ano sobre a data da prática do acto favorável a este último. Salvo melhor opinião, não existe fundamento jurídico para sacrificar a posição deste terceiro, pois não se vislumbram causas de invalidade que permitam uma anulação administrativa do acto, nos termos do artigo 168.º do CPA, e também não nos parece que estejam reunidas as condições exigidas para a revogação dos actos constitutivos de direitos, nos termos do artigo 167.º do CPA .

Por outro lado, as situações versadas pelo n.º 4 não absorvem a querela suscitada no âmbito do n.º 3 sobre a “boa-fé do beneficiário do acto consequente” e a “qualidade de contra-interessado”. Por estarem em causa duas relações jurídicas autónomas, o terceiro nem sequer deveria poder ser citado como contra-interessado no âmbito do litígio que versa sobre a invalidade do acto de demissão/despedimento ou relativo à progressão na carreira (15). No entanto, o CPTA reconhece-lhes o estatuto processual de contra-interessados - considerando o critério do legítimo interesse na manutenção do acto impugnado -, sem cuidar da circunstância de que este terceiro dificilmente poderá oferecer defesa quanto à legalidade de um acto de demissão praticado no âmbito de um procedimento disciplinar no qual não teve qualquer intervenção e do qual nada conhece.

Com efeito, o n.º 4 do artigo 172.º do CPA e o n.º 4 do artigo 173.º do CPTA ao desprotegerem a posição jurídica do terceiro trabalhador com interesse legítimo na manutenção de situação incompatível com a do trabalhador que tem direito a ser reintegrado ou recolocado no mesmo posto de trabalho, nas hipóteses em que o direito do primeiro foi constituído por acto administrativo praticado há menos de um ano revela-se, no limite, inconstitucional por acarretar a violação do princípio do respeito pelos direitos dos cidadãos . No nosso entendimento, o terceiro não é titular de um mero “interesse legítimo” quanto à manutenção da sua situação, mas sim de um direito, constituído por acto administrativo praticado no seio de um procedimento que obedeceu a todas as exigências legais. Como se fez referência, o terceiro (trabalhador) é alheio à controvérsia que deu lugar à reintegração ou recolocação de outro trabalhador, pelo que não pode sofrer quaisquer consequências a esse respeito. Tais consequências só podem ser arcadas pela entidade responsável pela conduta ilegal: a entidade empregadora. A entidade empregadora tem de manter no seu mapa de pessoal o trabalhador recrutado na sequência de um procedimento autónomo, por si levado a cabo, e o trabalhador que, por força da anulação do acto de demissão/despedimento, tem direito a ser reintegrado. Na perspectiva da recolocação, a entidade empregadora tem de manter na mesma categoria ou posto de trabalho o trabalhador que progrediu para a mesma em virtude de um concurso aberto para o efeito e o trabalhador que, por força da anulação ocorrida num procedimento que ilegalmente obstou à sua progressão, tem, agora, direito a progredir para essa mesma categoria ou posto. Isto, independentemente do tempo decorrido sobre o momento da constituição do direito do “terceiro” (trabalhador) ao posto de trabalho, uma vez que a sua posição jurídica não é objecto de litígio. Note-se que esta situação é sobejamente diferente das situações reguladas pelo n.º 3 dos artigos em estudo, onde a posição do “beneficiário do acto consequente” é uma posição objecto de litígio.

5. A defesa de um conceito restrito de acto consequente

A nossa posição, espelhada nos pontos anteriores, resulta da preferência por um entendimento restrito de acto consequente enquanto acto praticado na sequência de outro acto, estando ambos inseridos no mesmo procedimento administrativo. Entre o acto antecedente e o acto consequente tem de existir uma relação de dependência jurídica, a ponto de a invalidade do primeiro se repercutir na invalidade do segundo.

Assim, quando existam duas relações jurídicas, perfeitamente autónomas, as invalidades ocorridas nos actos praticados numa delas dificilmente se projectarão nos actos praticados na outra . Recalcando os mesmos exemplos, não se compreende de que forma as invalidades de um acto de despedimento se possam repercutir na (in)validade do acto de nomeação do trabalhador entretanto recrutado para o exercício do posto de trabalho que vagou. A nosso ver, este acto de nomeação não é um acto consequente do acto de despedimento e o beneficiário daquele acto não é um beneficiário de um acto consequente. A sua posição é a de terceiro, alheio à relação jurídica e ao eventual litígio subjacentes ao acto de despedimento.

Por conseguinte, e à luz da nossa perspectiva, o n.º 4 do artigo 172.º do CPA e o n.º 4 do artigo 173.º do CPTA não visam a tutela dos terceiros com interesse legítimo na (rectius, “direito à”) manutenção de situações incompatíveis, cuja posição não pode ser sacrificada, sob pena de violação do princípio constitucional do respeito pelos direitos dos cidadãos. As citadas normas visam, na realidade, a tutela do trabalhador ilegalmente demitido/despedido ou ilegalmente impedido de progredir na carreira, que obteve a anulação de um acto administrativo, a cujas consequências não poderá o empregador público opor, como causa de inexecução, o preenchimento do posto de trabalho, no qual aquele deve ser reintegrado ou recolocado, por outro trabalhador que, legal e legitimamente, o assumiu. Por conseguinte, o conflito de interesses, resultante da incompatibilidade das situações, é resolvido em favor de ambos: do trabalhador que obteve a anulação e do trabalhador que, entretanto, assumiu legalmente o mesmo posto de trabalho. Diferentemente, o n.º 3 do artigo 172.º do CPA e o n.º 3 do artigo 173.º do CPTA visam a tutela dos beneficiários de boa-fé de actos consequentes, a qual poderá corresponder a uma forma de tutela indemnizatória ou a uma forma de tutela conservatória. Nestes casos, o conflito de interesses entre o trabalhador que obteve a anulação e o trabalhador que, entretanto, assumiu o posto de trabalho na sequência da prática do acto administrativo objecto de litígio é resolvido somente a favor de um deles, reconhecendo-se ao outro o direito a ser indemnizado, nos termos acima explicitados.

6. Conclusões

A) As consequências da anulação de actos administrativos sobre os actos consequentes redundam dos efeitos ultra-constitutivos do caso decidido da anulação (anulação administrativa) ou do julgado anulatório (anulação contenciosa).

B) A título preliminar, o acto consequente pode definir-se como acto administrativo praticado na sequência de outro acto administrativo (acto antecedente ou pressuposto), existindo entre ambos uma relação de “conexão jurídica” em função da qual as invalidades do acto antecedente se repercutem no acto consequente.

C) Em consequência da anulação, administrativa ou judicial, de um acto administrativo, a Administração Pública pode praticar um acto renovatório - cujo conteúdo é igual ao do acto objecto de anulação, expurgado das invalidades que o inquinavam - ou pode praticar um novo acto cujo conteúdo difere do do acto anulado: no primeiro caso, a invalidade dos actos consequentes considera-se sanada pela eficácia retroactiva do acto renovatório, com excepção dos actos que envolvam a imposição de deveres, encargos, ónus ou sujeições, a aplicação de sanções ou a restrição de direitos ou interesses legalmente protegidos; no segundo caso, os actos consequentes têm de ser anulados, reformados ou substituídos, sem dependência de prazo, desde que a manutenção se revele incompatível com as consequências a extrair da anulação.

D) O interesse na anulação dos actos consequentes - isto é, o interesse na reintegração da legalidade violada e o interesse da protecção dos direitos do impugnante que obteve a anulação -, pode contender com os direitos e interesses dos beneficiários desses actos.

E) O ordenamento jurídico dispensa três níveis de tutela aos beneficiários de boa fé de actos consequentes: o nível zero (indemnização dos danos anormais), se o acto consequente tiver sido praticado há menos de um ano e o beneficiário tenha auferido, tirado partido ou feito uso da posição de vantagem em que o acto o colocava; o nível da tutela indemnizatória (indemnização dos danos), se o acto consequente tiver sido praticado há mais de um ano; e o nível da tutela conservatória, se o acto consequente tiver sido praticado há mais de um ano e se o dano for de difícil ou impossível reparação e for manifesta a desproporção existente entre o interesse na manutenção da situação e o interesse na execução da decisão anulatória.

F) Não é consensual na doutrina o que se deva entender por “boa fé” do beneficiário de acto consequente: a nosso ver, a “boa fé” do beneficiário deve ser aferida a partir do tipo de invalidade em causa e, portanto, se houve contribuição ou não do beneficiário para a invalidade do acto (pelo que a qualidade de contra-interessado na acção de impugnação do acto antecedente não deve, por si só, impedir o acesso à tutela do n.º 3 do artigo 173.º do CPTA).

G) No âmbito do emprego público, e sempre que esteja em causa a reintegração ou recolocação de um trabalhador em virtude da anulação de um acto administrativo que ilegalmente o despediu ou demitiu ou o impediu de progredir na carreira, o terceiro, que entretanto assumiu aquele posto de trabalho em virtude de um procedimento autónomo e legalmente concluído, deverá manter intacta a sua situação jurídica.

H) O n.º 4 do artigo 172.º do CPA e o n.º 4 do artigo 173.º do CPTA ao desprotegerem a posição jurídica do terceiro trabalhador com interesse legítimo na manutenção de situação incompatível com a do trabalhador que tem direito a ser reintegrado ou recolocado no mesmo posto de trabalho, nas hipóteses em que o direito do primeiro foi constituído por acto administrativo praticado há menos de um ano, revela-se inconstitucional por acarretar a violação do princípio do respeito pelos direitos dos cidadãos.

I) Neste contexto, perfilha-se um conceito restrito de acto consequente enquanto acto praticado na sequência de outro acto, estando ambos inseridos no mesmo procedimento administrativo e existindo entre eles uma relação de dependência jurídica, a ponto de a invalidade do primeiro se repercutir na invalidade do segundo, o que não sucederá quando existam duas relações jurídicas autónomas, em que as invalidades ocorridas nos actos praticados numa delas dificilmente se projectarão nos actos praticados na outra.

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Recebido: 24 de Outubro de 2020; Aceito: 20 de Novembro de 2020

Notas biográficas Ana Raquel Coxo Doutoranda em Direito Público | Bolseira da FCT (à data do envio para publicação) Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra Pátio da Universidade, 3004-528 Coimbra raquelcoxo@gmail.com

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