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e-Pública: Revista Eletrónica de Direito Público

On-line version ISSN 2183-184X

e-Pública vol.8 no.1 Lisboa Mar. 2021  Epub Jan 22, 2022

https://doi.org/10.47345/v8n1art8 

Direito Constitucional

Da liberdade de expressão dos agentes desportivos, à falta dela

From the freedom of expression of sports agents, to the lack of it

Sofia Davidi 

i Tribunal Central Administrativo Sul, Lisboa, Portugal


Resumo:

No presente trabalho analisa-se a liberdade de expressão dos agentes desportivos por confronto com o direito ao bom nome e à reputação, à luz do ordenamento jurídico-constitucional português, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Analisam-se, também, os poderes regulamentares e disciplinares das Federações Desportivas. Mais se indicam, os critérios de decisão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem em matéria de liberdade de expressão.

Palavras-Chave:

Abstract:

This paper analyzes the freedom of expression of sports agents against the right to the good name and personal reputation, in the light of the Portuguese legal-constitutional order, the European Convention on Human Rights and the case law of the European Court of Human Rights. The regulatory and disciplinary powers of Sports Federations are also analyzed. The decision criteria of the European Court of Human Rights on freedom of expression are also indicated.

Key words:

Enquadramento

O tema da liberdade de expressão dos agentes desportivos tem sido alvo de diversos litígios jurisdicionais, que têm dividido a jurisprudência do Tribunal Arbitral do Desporto (doravante TAD) e do Tribunal Central Administrativo Sul (doravante TCAS) .

Já ao nível do Supremo Tribunal Administrativo (doravante STA) a questão parece pacificada, no sentido da liberdade de expressão não ser um valor preponderante face ao direito ao bom nome e à reputação.

Como iremos ver, ao adoptar tal perspectiva o STA afasta-se da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (doravante TEDH) sobre a liberdade de expressão. Por exemplo, num caso em que se discutiam as seguintes expressões, “«Golo limpo anulado ao B… que nem o vídeo árbitro viu. Esta é a jornada da vergonha»; «Não se via uma jornada com uma arbitragem assim desde o Apito Dourado: falta nítida de … antes do penalty a favor do C…, dois penalties limpos contra o D… não assinalados e golo limpo mal anulado à B… É um escândalo, esta é a jornada da vergonha»”, dirigidas a um árbitro, entendeu aquele STA, no Acórdão do STA de 26.02.2019, processo n.º 066/18.7BCLSB, pesquisável em http://www.dgsi.pt, que seria de manter uma punição disciplinar por difamação e injúrias. Considerou o STA que “tais imputações atingiam não só os árbitros envolvidos, como assumem potencialidade para gerar um crescente desrespeito pela arbitragem e, em geral, pela autoridade das instituições e entidades que regulamentam, dirigem e disciplinam o futebol em Portugal, sendo o sancionamento dos comportamentos injuriosos, difamatórios ou grosseiros necessário para a prevenção da violência no desporto, já que tais imputações potenciam comportamentos violentos, pondo em causa a ética desportiva que é o bem jurídico protegido pelas normas em causa” .

Por seu turno, nos tribunais comuns, após uma fase inicial em que a jurisprudência se mostrava mais dividida, parecem hoje interiorizados os critérios que foram sendo elaborados na matéria pelo TEDH e é agora dada clara prevalência à liberdade de expressão face ao direito ao bom nome e à reputação .

Nesse sentido, cite-se o Acórdão do STJ de 07.03.2007, processo n.º 07P440, pesquisável em http://www.dgsi.pt, quando aí se afirma que “no conflito entre o direito à honra e a liberdade de expressão, tem vindo a verificar-se um ponto de viragem, tendo por base e fundamento o relevo, a dignidade e a dimensão da liberdade de expressão constitucionalmente consagrada. Naquele concreto conflito vem sendo a liberdade de expressão considerada numa dupla dimensão, concretamente, como direito fundamental individual e como princípio conformador e essencial à manutenção e aprofundamento do Estado de Direito democrático, reconhecendo-se que o exercício do direito de expressão, designadamente enquanto direito de informar, de opinião e de crítica, constitui o próprio fundamento do sistema democrático”.

Identicamente, no Acórdão do STJ de 13.07.2017, processo n.º 3017/11.6TBSTR.E1.S1, pesquisável em http://www.dgsi.pt, refere-se o seguinte: “Pode, deste modo, considerar-se que a jurisprudência recente deste Supremo vem realizando uma reponderação relativamente à tradicional visão acerca do critério de resolução dos conflitos entre direitos fundamentais individuais e liberdade de imprensa, que conferia aprioristicamente precedência ao direito individual à honra e bom nome - procurando valorar adequadamente as circunstâncias do caso e ponderar a interpretação feita, de modo qualificado, pelo TEDH - órgão que, nos termos da CEDH, está especificamente vocacionado para uma interpretação qualificada e controlo da aplicação dos preceitos de Direito Internacional convencional que a integram e que vinculam o Estado Português…”.

Ou seja, a discussão que ora se verifica no âmbito do TAD e dos Tribunais Administrativos relativamente à ponderação que deve ser dada à liberdade de expressão no confronto com o direito ao bom nome e à reputação, é um assunto que já foi arrumado pelo STJ. Na verdade, na sequência das múltiplas condenações do Estado Português pelo TEDH, o STJ desapegou-se da posição mais conservadora que anteriormente assumira e passou a seguir, invariavelmente, os critérios erigidos pelo TEDH (1) (2) (3) (4) (5).

Como última nota, refira-se, que também o Tribunal Constitucional (doravante TC) na apreciação das questões atinentes à liberdade de expressão vem convocando as normas da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (doravante CEDH) e a jurisprudência que delas retira o TEDH .

Mais se indique, que o tema é discutido nos Tribunais Administrativos sobretudo ao nível do desporto profissional (não amador) e em sede de efectivação do poder disciplinar pelas federações desportivas.

Estas federações, sendo pessoas colectivas de direito privado, concorrem com o Estado na realização dos fins públicos relativos à promoção, organização, regulação e supervisão do desporto, tendo-lhes sido delegadas pelo Estado as competências para emitirem regulamentos em matéria disciplinar - a incidirem sob as pessoas ou entidades que estão abrangidas pelo seu objecto estatutário - assim como, para exercerem a acção disciplinar e para aplicarem as correspondentes sanções - cf. o n.º 2 do artigo 79.º da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP), os artigos 5.º a 7.º, 14.º, 15.º da Lei de Bases da Actividade Física e do Desporto (doravante LBAFD), aprovada pela Lei n.º 5/2007, de 16.01, 2.º, 3.º, 10.º a 13.º e 52.º do Regime Jurídico das Federações Desportivas (doravante RJFD), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 248-B/2008, de 31.12 e 1.º da Lei n.º 112/99, de 03.08, que aprovou o Regime Disciplinar das Federações Desportivas (doravante “RDFD”) (6).

Às federações desportivas é conferido o estatuto de pessoa colectiva de utilidade pública e “o exercício, em exclusivo, por modalidade ou conjunto de modalidades, de poderes regulamentares, disciplinares e outros de natureza pública, bem como a titularidade dos direitos e deveres especialmente previstos na lei” - cf. artigo 10.º do RJFD; cf., ainda, os artigos 2.º, 4.º, 12.º, o n.º 1 do artigo 19.º, do RJFD, 14.º, 19.º da LBAFD, 1.º e 2.º RDFD.

Determina o n.º 1 do artigo 52.º do RJFD que “as federações desportivas devem dispor de regulamentos disciplinares com vista a sancionar a violação das regras de jogo ou da competição, bem como as demais regras desportivas, nomeadamente as relativas à ética desportiva”. Por seu turno, no n.º 2 do indicado artigo 52.º refere-se que “são consideradas normas de defesa da ética desportiva as que visam sancionar a violência, a dopagem, a corrupção, o racismo e a xenofobia, bem como quaisquer outras manifestações de perversão do fenómeno desportivo”. No artigo 53.º da RJFD determinam-se os princípios gerais que devem estar na base do regime disciplinar a regulamentar pelas federações - cf. também o artigo 11.º, a alínea b) do n.º 1 do artigo 27.º, o n.º 1 do artigo 43.º, o n.º 1 do artigo 44.º, os artigos 53.º e 54.º do RJFD; os artigos 3.º, 14.º, 15.º da LBAFD; os artigos 1.º, 2.º do RDFD, o n.º 1, a alínea a) do n.º 3 e o n.º 4 do artigo 5.º da Lei n.º 39/2019, de 30.07, que estabelece o Regime Jurídico da Segurança e Combate ao Racismo, à Xenofobia e à Intolerância nos Espectáculos Desportivos (doravante RJSCRXIED) (7) (8).(9) (10)

O poder disciplinar das federações é exercido sobre “os clubes, dirigentes, praticantes, treinadores, técnicos, árbitros, juízes e, em geral, sobre todos os agentes desportivos que desenvolvam a actividade desportiva compreendida no seu objeto estatutário, nos termos do respetivo regime disciplinar” - cf. o n.º 1 do artigo 54.º do RJFD; cf. também os artigos 3.º do RDFD e a alínea i) do n.º 1 do artigo 13.º do RJFD.

No que se refere ao conceito de “agente desportivo”, abrange os atletas, os treinadores e outros técnicos, os clubes desportivos, os dirigentes desportivos, os árbitros e juízes, os empresários desportivos, o pessoal de apoio e de segurança, os oficiais de ligação aos adeptos ou qualquer outro elemento que desempenhe funções durante um espectáculo desportivo em favor de um clube, associação ou sociedade desportiva - cf. artigos 14.º, 34.º a 37.º da LBAFD, 3.º do RDFD, 2.º da Lei n.º 20/2004, de 05.06, que aprovou o Estatuto do Dirigente Associativo Voluntário e alínea a) do artigo 3.º do RJSCRXIED.

Refira-se, por fim, que é hoje indubitável que o desporto, designadamente o desporto profissional, move poderes e influências a todos os níveis e que as federações desportivas detêm um real poder social decorrente do seu próprio desígnio, ao qual se contrapõe a posição bem mais fragilizadas dos agentes desportivos.

É, pois, neste enquadramento que há que apreciar o exercício da liberdade de expressão dos indicados agentes desportivos face aos poderes regulatórios e sancionatórios das federações desportivas.

De notar, no que concerne aos atletas ou desportistas e treinadores, que a sua situação jurídica está também adstrita aos termos do contrato que tenham celebrado, designadamente aos deveres de segredo, ou a outros deveres de conduta, gerais ou específicos, que tenham de guardar por essa via (11). Neste trabalho não consideraremos os deveres decorrentes das indicadas obrigações contratuais.

2. A liberdade de expressão dos agentes desportivos

2.1. Fundamentos e limites

A liberdade de expressão e de informação é um direito fundamental consagrado no artigo 37.º da CRP.

Enquanto direito, liberdade e garantia, a liberdade de expressão e de informação goza do regime do n.º 1 do artigo 18.º da CRP, designadamente, é um direito que tem aplicabilidade directa e vincula as entidades públicas e privadas.

Ao nível do direito internacional a liberdade de expressão vem consagrada em variados instrumentos, designadamente nos artigos 19.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos (doravante DUDH), 10.º da CEDH, ou 11.º da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia (doravante CDFUE).

A liberdade de expressão é, antes de mais, um direito negativo, que garante a expressão e divulgação de pensamentos, ideias, opiniões, juízos, factos, ou de criações artísticas, literárias, ou de qualquer outro tipo, por qualquer meio, sem impedimentos, limitações ou censuras.

Na sua dimensão positiva, a liberdade de expressão garante a possibilidade de acesso, nos termos da lei, aos diversos meios de expressão, incluindo à imprensa e aos meios de comunicação social (correspondendo nesta dimensão ao direito de resposta e de rectificação, previsto no n.º 4 do artigo 37.º da CRP e também à liberdade de imprensa, prevista no artigo 38.º da CRP, que se apresenta, sobretudo, como uma garantia institucional).

Reverso da liberdade de expressão, a liberdade de informação pressupõe o direito de informar, de se informar e de ser informado.

Gozam da liberdade de expressão e de informação quer as pessoas singulares, quer as pessoas colectivas, na medida em que tal seja compatível com a natureza destas últimas - cf. artigo 12.º da CRP.

A liberdade de expressão e de informação é um dos fundamentos básicos para a garantia de um Estado de direito democrático, assente no pluralismo de expressão e numa organização política, democrática e participativa - cf. artigo 2.º da CRP. Enquanto “garantia da validade e do cumprimento do contrato social” a liberdade de expressão e de informação exige um “debate aberto, informado e permanente em torno das questões de interesse público”, que abarque “alguma comunicação aparentemente privada, envolvendo entidades privadas, que possa ser relevante para a autodeterminação da comunidade, nomeadamente nos planos político, económico, financeiro, social, cultural e religioso” (12).

Assim, a garantia e o cumprimento de um Estado constitucional e de direito democrático exige que esteja assegurado o acesso ao debate livre e à informação sem censura prévia, acerca de todas as questões relevantes e de interesse público, o que abrange os assuntos relacionados com matérias desportivas de interesse da comunidade, ou do interesse de uma vasta camada de cidadãos e de instituições. As opiniões, as ideias, os factos, ou as diversas informações de cariz desportivo, ainda que sejam meras manifestações de uma paixão clubística, de um estado emocional, ou de uma apreciação subjectiva, devem poder ser exteriorizadas e veiculadas de forma livre e aberta, para que, depois, cada um, forme a sua própria opinião e faça as suas escolhas de forma informada.

Quanto ao âmbito normativo da liberdade de expressão e informação, “deve ser o mais extenso possível de modo a englobar opiniões, ideias, pontos de vista, convicções, críticas, tomadas de posição, juízos de valor sobre qualquer matéria ou assunto (questões políticas, económicas, gastronómicas, astrológicas), e quaisquer que sejam as finalidades (influência da opinião pública, fins comerciais) e os critérios de valoração (verdade, justiça, beleza, racionais, emocionais, cognitivos, etc.). A liberdade de expressão não pressupõe sequer um dever de verdade perante os factos embora isso possa vir a ser relevante nos juízos de valoração em caso de conflito com outros direitos ou fins constitucionalmente protegidos” (13).

“A liberdade de expressão não protege apenas a veiculação de factos verídicos e de opiniões sensatas. Os valores democráticos do pluralismo e da tolerância em relação à diversidade de personalidades dos cidadãos e, em alguns casos, à espontaneidade associada às suas ações, exigem que o Direito proteja tanto os estilos de comunicação mais racionais ou ponderados como os mais metafóricos e exacerbados. Ao Direito não compete moralizar ou educar os cidadãos que, ou por excesso de emotividade, ou por falta de elevação e respeito pelo próximo, profiram palavras desonrosas ou ofensivas, sem que com isso contendam com o núcleo juridicamente protegido da do bom nome e reputação de terceiros. A liberdade de expressão confere, portanto, uma ampla margem para ofender e chocar. Em certa medida, é uma verdadeira “liberdade de ofender” .

Atendendo ao tema deste trabalho, na nossa análise vamos centrar-nos, sobretudo, na liberdade de expressão e não tanto na liberdade de informação.

2.2. A colisão com o direito ao bom nome e à reputação

A liberdade de expressão e de informação não é um direito absoluto ou ilimitado. Tal liberdade convive com todos os outros direitos e designadamente com os direitos de personalidade, entre os quais se destaca o direito ao bom nome e à reputação.

O direito ao bom nome e à reputação vem consagrado no artigo 26.º da CRP.

Ao nível da legislação ordinária este direito tem protecção nos artigos 70.º e 484.º do Código Civil (doravante “CC”).

Entre os direitos de personalidade com tutela específica no direito civil encontramos, também, o direito à imagem e à intimidade da vida privada - cf. artigos 79.º e 80.º do CC.

No direito internacional os indicados direitos são previstos, entre outros, nos artigos 8.º e 12.º da DUDH.

O direito bom nome e à reputação constitui um corolário do direito à integridade pessoal e moral, que vem previsto no n.º 1 do artigo 25.º da CRP.

Com o direito ao bom nome e à reputação visa-se salvaguardar a dignidade moral da pessoa humana, ou um mínimo de condições, sobretudo de natureza moral, que são razoavelmente consideradas como essenciais para que um individuo possa, com legitimidade, ter estima por si, pelo que é e pelo que vale. Visa-se salvaguardar a imagem subjectiva, interior, que cada um guarda de si e a imagem exterior, dos outros, ou da sociedade, por aquele individuo. Estão aqui englobados os direitos à honra, ao crédito e à consideração, também entendidos como um sentimento próprio e subjectivo da honorabilidade, do valor e da respeitabilidade que cada um tem de si próprio e que é suposto ter, e do merecimento social ou do apreço que a sociedade tem ou atribuiu a cada individuo (14).

Tratam-se de direitos negativos, que exigem um dever geral de respeito pelas demais pessoas, a par da protecção pelo Estado - em termos de tutela civil e penal - que deve intervir quer para acautelar, quer para penalizar, ou para garantir o ressarcimento pela existência de eventuais ofensas a estes direitos. A vinculação das pessoas singulares e colectivas aos direitos fundamentais exige, ainda, a sua protecção por estas, assim ficando legitimada a punição disciplinar, mormente das federações desportivas, em caso de ofensa ao direito ao bom nome e à reputação.

Portanto, a emissão de juízos de valor e a imputação de factos a outras pessoas, ofensivos do seu bom nome, da reputação, da honra ou da consideração, ainda que sob a forma de suspeita, porque a envergonhem, perturbem ou humilhem, ou porque provoquem o desprezo e descrédito social, é considerada pelo ordenamento jurídico uma conduta reprovável, que poderá ter consequências civis, disciplinares ou penais.

No direito civil a protecção do direito ao bom nome e reputação faz-se por via preventiva, repressiva e ressarcitória - cf. artigos 70.º e 484.º do CC.

No direito penal, o bom nome e a reputação vêm protegidos nos artigos 180.º a 189.º do Código Penal (doravante CP), por via da criminalização dos crimes de difamação e injúrias.

O âmbito de protecção do direito ao bom nome e à reputação varia em função das circunstâncias de tempo e lugar. Assim, se num dado momento e contexto situacional um dado facto ou acto pode constituir a ofensa àquele direito, em contexto diferente pode já não implicar tal ofensa.

Por conseguinte, a protecção deste direito afere-se casuisticamente, pois depende das circunstâncias concretas, que envolvem o individuo lesado e as circunstâncias específicas em que ocorre ataque ao bom nome e à reputação.

No âmbito do desporto é usual os ânimos mostrarem-se mais arreigados e exaltados, por serem fruto de competições, com vencedores e perdedores. Tais ânimos são, também, muitas vezes, a expressão de paixões clubísticas ou de devoções e crenças nos atletas e respectivas equipas.

Em certas áreas do desporto, tal como ocorre no futebol, as paixões clubísticas e a exaltação dos adeptos ou de outros agentes desportivos são algo usualmente considerado razoável e normal e até querido pelas estruturas e organizações desportivas, que fomentam o apoio incondicional dos respectivos adeptos nas correspondentes equipas.

Tal envolvência tem necessariamente de ser atendida quando se aprecia a protecção do direito ao bom nome e à reputação.

No âmbito do desporto ou no mundo do desporto, os atletas, os árbitros, os dirigentes dos Clubes ou as figuras envolvidas nas competições adquirem uma notoriedade diferente dos cidadãos comuns.

Tal fenómeno não ocorre apenas no desporto. Assim, é usual distinguir relativamente ao âmbito de protecção do direito ao bom nome e à reputação a situação do cidadão comum, relativamente anónimo, das figuras públicas, ou das figuras que gozam de uma certa notoriedade social. Relativamente a estas, às chamadas figuras públicas, tem-se considerado que a esfera de protecção do direito ao bom nome e à reputação - ou à honra e à imagem - está reduzida, por via da notoriedade que gozam ou do interesse que suscitam as suas acções, que fica mais exposta ao escrutínio e à crítica.

Como a seguir indicaremos, o TEDH tem desenvolvido uma vasta jurisprudência acerca desta menor protecção das figuras públicas. Sem embargo, a questão é igualmente discutida e admitida nos nossos tribunais, que se socorrem para a delimitação do conceito da jurisprudência já erigida pelo TEDH .

Como se salienta no Acórdão do STJ de 31.01.2017, processo n.º 1454/09.5TVLSB.L1.S1, pesquisável em http://www.dgsi.pt, “a «figura pública» surge em oposição a «figura privada», sendo que esta é todo o cidadão anónimo, que vive no recato da sua existência.

(...) estamos perante figuras públicas relativas, na medida em que os recorrentes intervêm publicamente para influenciar um debate de interesse público, fazendo com que a dimensão da sua vida pública conexionada com esse debate, as sujeite a um interesse público de informação, que lhes garante a possibilidade de aceder aos meios de comunicação social.

E, ainda, que se trata de figuras públicas voluntárias, porquanto aceitaram ser lançados para a vulnerabilidade da praça pública, em consequência do papel que procuraram assumir no debate público em que decidiram intervir.

(…) É que, sendo o visado uma figura pública e não um simples particular, está mais exposto, inevitável e conscientemente, a um controlo apertado dos seus comportamentos e opiniões, tanto pelos jornalistas como pela generalidade dos cidadãos, devendo, por isso, demonstrar muito maior tolerância perante tal controlo.

(…) Claro que a figura pública tem direito à protecção da sua reputação, mesmo fora do âmbito da sua vida privada.

O que se quer significar é que os imperativos de tal protecção devem ser ponderados com os interesses da livre discussão das questões públicas.

Assim, em nome da polémica robusta não devem ser protegidos ataques pessoais injustificados, dirigidos à dignidade, integridade e probidade moral e profissional, considerados manifestamente desnecessários e desproporcionais.

Todavia, também aqui o intenso confronto de ideias pode facilmente conduzir a determinados exageros, os quais devem, numa medida considerada razoável, ser protegidos, particularmente nos casos em que se esteja perante um fórum público dotado de condições razoáveis de igualdade e reciprocidade.”

De salientar, que também as pessoas colectivas privadas devem ser equiparadas a figuras públicas para efeitos de imputações difamatórias ou injuriosas caso tenham “grande dimensão politica, social, cultural, económica, financeira ou desportiva, por desenvolverem actividades de inegável relevo social”. Ficam aqui abrangidas as “pessoas colectivas que por qualquer motivo, nomeadamente pela sua conduta comunicativa, se colocaram elas próprias no centro da esfera do discurso público, as pessoas colectivas privadas de alguma forma reguladas por poderes públicos, as pessoas colectivas privadas sobre as quais impenda a suspeita de promiscuidade com os poderes públicos, ou as pessoas colectivas privadas sobre as quais haja que dar notícias de relevante interesse público, nomeadamente por afectarem os particulares na sua qualidade de cidadãos, trabalhadores, clientes, investidores, consumidores ou contribuintes” .

Nessa conformidade, Jónatas Machado aponta como exemplos de pessoas colectivas privadas que devem ser equiparadas a figuras públicas os clubes de futebol ou as instituições financeiras .

Identicamente, no Acórdão do TC de 29.05.2008, proferido no processo n.º 459/07, pesquisável em http://www.dgsi.pt, em que se analisava a situação de um clube de futebol, defende-se que uma pessoa colectiva “também pode ser dotada de uma notoriedade que impõe a sua inclusão na categoria das "figuras públicas", para efeitos da tutela do seu bom nome e da sua reputação” e que para tais figuras “o juízo de censura haveria de balizar-se em malhas «mais apertadas», só devendo efectivar-se nos casos em que, na realidade, não o sendo, estivesse já, com um tal posicionamento, a afastar-se o conteúdo essencial do direito ao bom nome e reputação.”

3. A protecção do direito ao bom nome e à reputação por via do direito disciplinar do desporto

3.1. A previsão regulamentar e respectivos fundamentos

A protecção do direito ao bom nome e à reputação também se faz pela via disciplinar.

Tal como acima indicamos, às federações desportivas é conferido poder regulamentar, para exercerem a acção disciplinar e para aplicarem sanções .

Exercendo as suas competências, foram aprovados inúmeros regulamentos disciplinares pelas várias federações que penalizam a ofensa ao bom nome e à reputação dos agentes desportivos ou de terceiros, vg. espectadores.

Procedendo à punição disciplinar pela prática de injúrias, de lesões ao bom nome, à honra e de ofensas à reputação dos órgãos da liga, dos respectivos membros, das equipas de arbitragem, dos clubes, dos dirigentes, dos jogadores, dos demais agentes desportivos ou dos espectadores, vejam-se, por exemplo, o n.º 2 do artigo 19.º, os artigos 112.º, 136.º, 158.º, 192.º do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portugal (doravante “RDLP”) . Punindo aquelas mesmas práticas, entre muitos, remete-se para os artigos 40.º e 41.º do Regulamento Disciplinar da Federação de Andebol de Portugal , ou para a alínea a) do artigo 27.º, a alínea a) do artigo 28.º, a alínea b) do artigo 29.º, o artigo 35.º, a alínea b) do n.º 1 do artigo 38.º, do Regulamento Disciplinar da Federação Portuguesa de Automobilismo e Karting (doravante “RDFPAK”) , ou para o n.º 3 do artigo 13.º, a alínea a) do n.º 2 do artigo 16.º, o n.º 2 do artigo 38.º do Regulamento Disciplinar da Federação de Motociclismo de Portugal , ou o n.º 1 do artigo 18.º, e artigos 63.º, 65.º, 100.º, 101.º, 116.º e 117.º, do Regulamento de Justiça e Disciplina da Federação de Patinagem de Portugal (doravante “RJDFPPP”) , ou artigos 59.º, 71.º, o n.º 2, artigo 74.º, os artigos 92.º, 113.º, 137.º do Regulamento Disciplinar da Federação Portuguesa de Ténis de Mesa , ou alíneas c) e d) do n.º 2 do artigo 13.º, a alínea d) do artigo 15.º, do Regulamento de Disciplina da Federação Portuguesa de Desporto para Pessoas com Deficiência .

A tutela disciplinar do direito ao bom nome e à reputação que se faz por via dos regulamentos disciplinares emanados pelas federações desportivas é cumulativa com a tutela civil e penal e não se confunde com as mesmas - cf. artigo 4.º do RDFD, alíneas d) e i) do n.º 1 do artigo 39.º-A, alíneas i) e j) do n.º 1 do artigo 39.º-A, do RJSCRXIED. Protegem-se os mesmos bens jurídicos, mas com base em diversos fundamentos e visando-se diferentes fins.

Como já referimos, os poderes que são concedidos as federações, mormente em matéria disciplinar, têm como fins específicos os indicados no artigo 52.º do RJFD e n.ºs 1 e 2 do artigo 1.º do RDFD.

Ora, são esses mesmos fins que justificam a atribuição do poder disciplinar às federações desportivas e que legitimam a previsão das sanções disciplinares pela prática de factos ofensivos do bom nome e à reputação de terceiros. Ou seja, é a garantia da satisfação dos fins e atribuições das próprias federações que justifica a outorga do poder disciplinar sobre os correspondentes agentes desportivos e que serve de fundamento para a previsão das indicadas sanções pela via regulamentar. Consequentemente o correspondente poder disciplinar está também limitado por aqueles fins, que lhe servem de fundamento. Identicamente, as sanções disciplinares relativas à prática de factos ofensivos do bom nome e à reputação de terceiros só podem ter por campo de acção a salvaguarda dos indicados bens jurídicos quando os mesmos se relacionem ou possam pôr em causa a satisfação dos fins e atribuições das federações. Para além desse campo de acção, não cumprirá às federações desportivas regular e punir.

Assim, apreciados os fins e competências que vêm previstos no n.º 1 do artigo 3.º da LBAFD, no artigo 52.º, no n.º 1 do artigo 53.º, do RJFD e nos n.ºs 1 e 2 do artigo 1.º do RDFD, considerando que a punição disciplinar pela prática de factos ofensivos do bom nome e reputação de terceiros não visará a salvaguardada das regras de jogo ou da competição, resta-nos concluir que os fundamentos de tal punição se relacionam com as incumbências das federações desportivas relativas à promoção da ética desportiva, do espírito desportivo, da verdade desportiva e que visam o objectar de práticas que impliquem a “perversão do fenómeno desportivo”.

No âmbito do espectáculo desportivo, com tais punições visa-se, também, evitar e sancionar o incitamento e a prática de actos de violência, racismo, xenofobia e intolerância, tal como decorre das alíneas b), i), j) do n.º 1 do artigo 8.º, do n.º 1, da alínea a) do n.º 3, do n.º 4, do artigo 5.º e do artigo 46.º-A do RJSCRXIED.

Portanto, na punição pela prática de actos que configurem injúrias ou difamações poderemos distinguir as situações em que se penaliza a ofensa ao bom nome, à reputação, à honra e à consideração de terceiros, por se entender que tais comportamentos são apenas reprováveis em termos de ética, de espírito e de verdade desportiva e como tal não podem ser admitidos, daqueles outros em que a ofensa aos referidos bens jurídicos - ao bom nome, à reputação, à honra ou à consideração de terceiros - são comportamentos que também não podem ser admitidos porque redundam no incitamento e na prática de actos de violência, racismo, xenofobia e intolerância. Mais se refira, que estes últimos comportamentos encerram em si mesmo um desvalor ético-jurídico de tal forma grave que, de imediato, também atingem, fatalmente, os princípios da ética, de espírito e de verdade desportiva.

Em ambos os casos, devem ser penalizados os comportamentos relativamente aos quais as federações desportivas não podem ficar indiferentes, por tais comportamentos colidirem com as atribuições que lhes foram cometidas. Incluem-se nesta ideia todas as penalizações que se mostrem claramente essenciais para a garantia do respeito que é devido entre os agentes desportivos e entre estes e terceiros, ou que visem evitar e reprimir actos que ponham em causa os elementos essenciais e imprescindíveis para bom funcionamento das instituições desportivas.

Quanto aos restantes actos e comportamentos que não colidam com os fins e atribuições que estão cometidos às federações desportivas, devem ficar de fora do campo da sanção disciplinar.

Porém, apreciados alguns regulamentos disciplinares, verifica-se que, pontualmente, as correspondentes previsões poderão permitir punições que extravasam os indicados fins das federações desportivas, designadamente quando tais punições não visam a salvaguarda directa e imediata das regras de jogo ou da competição e apelam ou remetem para conceitos que não encerram em si mesmo um desvalor ético-jurídico suficientemente forte para que se possa concluir pela violação dos fins de preservação da ética, do espírito e da verdade desportiva e ficam aquém disso. Tal ocorre, vg., quando se remete e penaliza observações, protestos, comentários, juízos, discordâncias, ligeiras incorrecções, falta de cortesia, grosserias, ou outros comportamentos outros similares .

Nestes casos, consideramos, que a interpretação que haja de fazer-se de tais preceitos deve balizar-se pelas atribuições das federações desportivas e pelos fins para os quais lhes foi delegado o correspondente poder regulamentar e disciplinar. Consequentemente, os comportamentos que - fora do âmbito das regras do jogo e da competição - encerrem uma mera discordância, oposição, ou contrariedade com a posição assumida por terceiros, ainda que tal discordância seja veementemente expressa, ou relativamente aos comportamentos que redundem em simples incorrecções, faltas de cortesia, grosserias, boçalidade ou má-educação, a sua penalização pela via disciplinar só poderá considerar-se abrangida pelo âmbito objectivo da norma se efectivamente contender com a ética, o espírito e a verdade desportiva, ou se se concluir que visa objectar práticas que impliquem a “perversão do fenómeno desportivo”.

3.2. Uma restrição e deslegalização (in)admissível?

Como já se referiu, a previsão de sanções disciplinares pela prática de factos ofensivos do bom nome e à reputação de terceiros constitui uma forma de defesa dos indicados direitos fundamentais. As referidas normas sancionatórias concretizam no plano legal a protecção constitucional. Mas, em simultâneo, a previsão das ditas sanções disciplinares configura uma restrição ao direito fundamental à liberdade de expressão.

O n.º 3 do artigo 37.º da CRP prevê em termos expressos a possibilidade de restrições à liberdade de expressão. Conforme o citado preceito está autorizada a consagração de punições, nomeadamente disciplinares, relativamente a actos que se reputem de ilícitos por excederem os limites do correspondente exercício da liberdade de expressão e por ofendem outros direitos constitucionais, bens ou interesses constitucionalmente protegidos.

Para além daquela permissão expressa, estão também implicitamente autorizadas as restrições que decorram da necessidade de se salvaguardar outros direitos fundamentais, bens ou interesses constitucionalmente protegidos.

Mais determina o n.º 3 do artigo 37.º da CRP, que as infracções cometidas no exercício da liberdade de expressão fiquem “submetidas aos princípios gerais de direito criminal ou do ilícito de mera ordenação social, sendo a sua apreciação respectivamente da competência dos tribunais judiciais ou de entidade administrativa independente”.

Em sede de restrições constitucionalmente autorizadas a direitos fundamentais vigora o princípio da reserva de lei restritiva. Assim, tais restrições só podem ser efectivadas por lei (da Assembleia da República) ou por decreto-lei autorizado (do Governo) - cf. n.ºs. 2, 3 do artigo 18.º e alíneas b) e d) do n.º 1 do artigo 165.º, da CRP.

Exige-se, também, em caso de emissão de regulamentos administrativos autorizados ou delegados, que a lei autorizativa seja suficientemente determinada e densa na delimitação das restrições. Exige-se que a lei autorizativa apresente uma terminologia clara e suficientemente precisa por forma a constituir uma norma de actuação e, em simultâneo, a permitir a correspondente sindicabilidade (15) (16) (17) (18).

Ora, apreciado o RDFD, verifica-se, que em matéria de restrição da liberdade de expressão dos agentes desportivos, para além dos fins acima indicados, referidos os n.ºs 1 e 2 do artigo 1.º, dos princípios gerais que vêm consignados no artigo 2.º, da escala de penas indicada no artigo 10.º, ou da definição dos conceitos de reincidência e de acumulação de infracções do artigo 12.º, não se prevêem naquela lei outros critérios que permitam compreender o alcance da autorização que foi dada.

Quanto aos fins de defesa da ética, do espírito desportivo, da verdade desportiva, ou relativos ao combate de situações de “perversão do fenómeno desportivo”, remetem para conceitos totalmente vagos e indeterminados, não compatíveis com a determinação e densidade que a CRP exige à lei autorizativa em caso de restrição de direitos fundamentais.

Em suma, a falta de clareza, a vagueza e a indeterminação dos conceitos utilizados no RDFD que autorizam a regulamentação pelas federações desportivas dos ilícitos disciplinares relativos à violação da liberdade de expressão, suscitam-nos sérias dúvidas acerca da admissibilidade da correspondente regulamentação. Ou seja, antes da análise, da interpretação e da aplicação das normas disciplinares que estão previstas nos diversos regulamentos emanados pelas várias federações desportivas, relativas à salvaguarda do direito ao bom nome e à reputação, fica-nos uma dúvida séria se não estaremos aqui frente a uma restrição da liberdade de expressão e a uma deslegalização inadmissível.

Diferente é a situação que ocorre por via da autorização concedida pelo n.º 1 e pela alínea a) do n.º 3 do artigo 5.º e pelos artigos 4.º e 46.º-A, do RJSCRXIED, para que os promotores do espectáculo desportivo, os organizadores e proprietários regulamentem a matéria de prevenção e punição das manifestações de violência, de racismo, de xenofobia e de intolerância nos espectáculos desportivos, aqui se incluindo a matéria disciplinar relativa à punição por uso de linguagem incorrecta, imoderada e desrespeitosa com terceiros, que incite ou defenda a violência, o racismo, a xenofobia e a intolerância e, nessa mesma perspectiva, ofendam o direito ao bom nome e à reputação desses terceiros.

4. Critérios de interpretação das normas sancionatórias da ofensa ao bom nome e à reputação

4.1. Enquanto normas restritivas

As normas regulamentares aprovadas pelas federações desportivas que punem a ofensa ao bom nome e à reputação, enquanto normas restritivas de um direito fundamental, devem ser interpretadas restritivamente, como visando apenas a salvaguarda do referido direito ao bom nome e à reputação, no seu reduto essencial - cf. n.ºs 2 e 3 do artigo 18.º da CRP.

Na interpretação que se faça das normas punitivas exige-se, também, a observância do princípio da proporcionalidade na sua tripla dimensão, da necessidade, da adequação e da proibição do excesso. As restrições desnecessárias, inadequadas ou excessivas não cabem no âmbito de protecção das correspondentes normas punitivas.

Em cada caso, há que ponderar os valores e interesses em presença, há que verificar a conduta e as circunstâncias concretas que a envolvem, há que ponderar a situação à luz do indicado princípio da proporcionalidade.

Por conseguinte, as restrições à liberdade de expressão por via das normas regulamentares punitivas só serão permitidas na medida em que se afigurem como necessárias, porque indispensáveis ao fim visado pela própria norma punitiva. No confronto entre as várias formas de proteger aquele fim, a norma punitiva tem, também, de mostrar-se como sendo o meio mais adequado de protecção, porque o menos lesivo para os outros direitos e bens jurídicos em confronto, o que implica menos sacrifícios e que se afigura o mais vantajoso, considerando todas as alternativas que se possam convocar para atingir o mesmo fim. Por último, a norma punitiva não pode ser desproporcional para a satisfação do fim visado .

Como já referimos, as sanções disciplinares pela prática de factos ofensivos do bom nome e da reputação de terceiros, que vêm previstas nos vários regulamentos emanados pelas federações desportivas, tem por desiderato, em primeira linha, a protecção dos referidos bens, e como desiderato último, a defesa da ética, do espírito, da verdade desportiva e o combate a actos violentos, racistas, xenófobos e intolerantes. Portanto, só na medida em que tais sanções se mostrem como indispensáveis e as mais adequadas a tais fins, e não se apresentem excessivas face ao fim que se pretende atingir, é que deverão ser aplicadas.

Exige-se aqui uma ponderação, a fazer-se casuisticamente, que avalie a concreta situação e as suas especificidades, por forma a verificar-se o que cabe no âmbito de protecção das normas punitivas e o que deve ficar fora delas.

4.2. Enquanto normas colidentes

Igualmente, tal como já dissemos, o efectivar da punição disciplinar por ofensa ao direito ao bom nome e à reputação colide com o exercício da liberdade de expressão.

Nenhum dos direitos que aqui se discutem são direitos absolutos ou ilimitados.

Ambos os direitos gozam de protecção constitucional e do regime aplicável aos direitos, liberdades e garantias. Não existe uma hierarquia entre o direito ao bom nome, à reputação e a liberdade de expressão e, em abstracto, qualquer um destes direitos visa defender vectores fundamentais, inerentes ao princípio da dignidade da pessoa humana. Em abstracto, todos os direitos que aqui se discutem têm, pois, a mesma dignidade constitucional e visam salvaguardar bens jurídicos de idêntico valor ou similares.

Logo, estando-se frente a uma colisão entre direitos com igual dignidade ou idêntica carga axiológica, há que convocar o princípio da harmonização ou de concordância prática, que apela a uma ponderação por forma a garantir a máxima efectivação de ambos os valores jurídicos protegidos, sem sacrificar o núcleo essencial de nenhum dos direitos em confronto.

Há que ponderar, atendendo à concreta situação, a melhor forma de compatibilizar os valores em presença, procedendo às necessárias limitações de um ou outro direito, considerando quer os específicos bens jurídicos que se visam proteger, quer a própria integração da norma de direito na estrutura axiológica da CRP.

Em suma, “num conflito entre direitos, tem de atender-se fundamentalmente a três factores: ao âmbito e graduação do conteúdo dos preceitos constitucionais, ao tipo, conteúdo, forma e demais circunstâncias do facto conflitual e às condições e comportamento das pessoas envolvidas”(19).

Portanto, na interpretação e aplicação que se faça das sanções disciplinares relativas à prática de factos ofensivos do bom nome e reputação de terceiros, há que verificar o âmbito e o alcance da correspondente norma, face ao âmbito e alcance do artigo 37.º da CRP. Há, depois, que ponderar casuisticamente todas as circunstâncias que envolvem o caso concreto por forma a encontrar a melhor harmonização entre as normas colidentes. No raciocínio que se desenvolva, ter-se-á de cuidar que não se sacrifica o núcleo essencial de nenhum dos direitos colidentes. Igualmente, atendendo à concreta situação, há que interpretar os valores jurídicos em confronto tentando retirar a sua máxima efectivação, optimizando os comandos constitucionais relativos à liberdade de expressão e ao direito ao bom nome e à reputação - e que se protegem por via da sanção aplicada.

Mais se refira, que na ponderação dos valores jurídicos em confronto e que se querem proteger o intérprete deve considerar não só as normas constitucionais que prevêem e delimitam os respectivos direitos, como as normas de direito internacional que nos vinculam, designadamente as que decorrem da CEDH e da jurisprudência que delas retira o TEDH - cf. n.º 1 do artigo 16.º da CRP.

5. A jurisprudência do TEDH relativamente ao artigo 10.º da CEDH

5.1. A força vinculante da CEDH e da jurisprudência do TEDH

A CEDH é fonte de obrigações para Estado Português, vinculando-o desde 09.11.1978, a data em que foi ratificada e entrou em vigor no nosso país. Não sendo cumprida a CEDH, na jurisprudência que dela retire o TEDH, poderá ocorrer uma responsabilização internacional. Esta responsabilização é efectuada pelo TEDH, que intervém subsidiariamente, supervisionando a forma como os Estados contratantes instituíram e efectivaram na ordem jurídica interna a protecção dos direitos e liberdades consagrados na Convenção. Tal ocorreu nas dezenas de casos já referidos.

A CEDH tem também força supralegal, pelo que prevalece sobre as leis ordinárias (cf. n.º 2 do artigo 8.º da CRP).

Em suma, os tribunais nacionais estão obrigados a respeitar a CEDH e a interpretar as normas internas de harmonia com a CEDH e com a jurisprudência formada pelo TEDH .

Sem embargo, Portugal tem sido alvo de dezenas de condenações do TEDH por violação do artigo 10.º da CEDH (20).

Na verdade, tal como se referiu no início deste trabalho, a jurisprudência nacional, designadamente a dos tribunais comuns, começou por mostrar-se um tanto avessa a aceitar uma preponderância da liberdade de expressão sobre o direito ao bom nome e à reputação. A inflexão da jurisprudência dos tribunais comuns e a sua aproximação à jurisprudência do TEDH é, pois, algo relativamente recente.

Por seu turno, também como já indicamos, no âmbito da jurisdição administrativa, o STA, na ponderação que faz em cada caso concreto, parece optar por dar primazia ao direito ao bom nome e à reputação em detrimento da liberdade de expressão.

Da nossa parte, quer por via do valor reforçado que as normas da CEDH assumem no nosso ordenamento jurídico, quer por decorrência de uma internormatividade e diálogo que se impõe aos tribunais, consideramos que no domínio da liberdade de expressão cumpre atentar seriamente no conteúdo do artigo 10.º da CEDH e na jurisprudência que foi sendo desenvolvida a esse respeito pelo TEDH.

A este propósito, cite-se o Acórdão do STJ de 13.07.2017, processo n.º 3017/11.6TBSTR.E1.S1, pesquisável em http://www.dgsi.pt, quando aí se refere o seguinte: “Existem, por outro lado, prementes razões de ordem prática a impor esse diálogo entre os Supremos Tribunais e o TEDH a propósito da interpretação dos princípios da Convenção: desde logo, o dissídio entre tais órgãos jurisdicionais acabará por se traduzir em condenações do Estado Português pelo incumprimento das normas convencionais, implicando em última análise que sejam suportadas pelo erário público - afinal, pelo contribuinte - as indemnizações arbitradas aos lesados pelos abusos de liberdade de imprensa que não suportem o ulterior confronto com o entendimento jurisprudencial prevalecente no TEDH; depois, porque, a partir da reforma do processo civil de 2007, passou a constituir fundamento de revisão a incompatibilidade do acórdão proferido na jurisdição interna com decisão definitiva de uma instância jurisdicional internacional, vinculativa do Estado Português - implicando este regime processual que, a posteriori, tenha de se proceder a uma análise e eventual reponderação dos fundamentos da decisão do órgão nacional, transitada em julgado, à luz da jurisprudência afirmada, no caso, pelo TEDH: ora, em vez de se proceder a uma tentativa de articulação ou compatibilização das orientações jurisprudenciais, interna e internacional, realizada apenas ex post, envolvendo eventual preterição do caso julgado e do princípio da confiança que lhe subjaz, é claramente preferível tentar realizar essa operação de eventual compatibilização ou concordância prática ex ante, evitando assim, na medida do possível, a sedimentação de conflitos insanáveis acerca da interpretação dos princípios e normas da Convenção.

(…) Saliente-se que esta via metodológica que se propõe não implica que o Supremo Tribunal nacional tenha de seguir automaticamente a orientação que, naquele juízo de prognose, considere que provavelmente decorre da jurisprudência reiterada do TEDH, emitida anteriormente a propósito de situações materiais idênticas ou equiparáveis; na verdade, a prevalência das normas constitucionais sobre o próprio Direito Internacional convencional poderá levar a uma recusa de aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, da solução normativa que, resultando, naquele juízo de prognose, da jurisprudência reiterada do TEDH, se revele, no caso, conflituante com as normas e princípios da Constituição: ou seja, a verificar-se tal situação (por ex., num caso em que se considere que a compatibilização ou concordância prática dos direitos fundamentais em conflito, tal como emerge da jurisprudência corrente do TEDH, implicaria o desproporcional esmagamento ou esvaziamento de um direito fundamental de personalidade) enunciará o Tribunal esse preciso conteúdo normativo, recusando a respectiva aplicação por o considerar inconstitucional - e abrindo-se, assim, a possível via do recurso de fiscalização concreta, previsto na alínea a) do nº1 do art. 70º da Lei do TC”.

5.2. As directrizes interpretativas que decorrem da jurisprudência do TEDH

Em casos de colisão entre a liberdade de expressão e o direito ao bom nome e à reputação, o TEDH tende a dar prevalência à liberdade de expressão.

A indicada prevalência na jurisprudência do TEDH desaparece, contudo, quando estão em causa actos de incitamento e relativos à prática de actos de violência, de racismo, de xenofobia e de intolerância (ou que neguem o holocausto e a propaganda nazi).

A referida jurisprudência do TEDH ancora-se no artigo 10.º da CEDH, que consagra a liberdade de expressão de uma forma mais alargada que o artigo 37.º da CRP. Na CEDH as correspondentes limitações daquele direito vêm indicadas apenas enquanto “deveres e responsabilidades” e por via da possibilidade de tal liberdade ser “submetida a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas na lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a protecção da saúde ou da moral, a protecção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial”.

Mais se indique, que o direito ao bom nome e à reputação não goza de uma protecção autónoma na CEDH .

Sem embargo, este direito acaba por ser protegido pela CEDH enquanto integrante dos direitos de personalidade. Nessa mesma medida, o direito ao bom nome e à reputação pode constituir uma limitação à liberdade de expressão desde que tal se afigure efectivamente necessário para garantir a sua protecção.

O TEDH defende, pois, que a limitação da liberdade de expressão só é admissível se decorrer de uma necessidade efectiva e comprovada e pressupõe sempre o recurso a uma interpretação restritiva (relativamente à própria limitação) .

A liberdade de expressão é também uma matéria que obteve um largo desenvolvimento pelo TEDH .

Assim, o TEDH vem afirmando a liberdade de expressão como “um dos alicerces de uma sociedade democrática, uma das condições essenciais para o seu progresso e para o desenvolvimento de todos” .

Igualmente, o TEDH vem defendendo que a protecção que é conferida pelo artigo 10.º da CEDH opera relativamente às diversas formas de expressão e manifestações de comportamentos - sejam ideias, informações, gestos, imagens, musicas, cânticos, expressões artísticas, representativas, publicitárias, modos de vestir, etc. - consideradas inofensivas e indiferentes, como com relação às que ofendem, chocam ou inquietam. Segundo o TEDH, só este entendimento alargado - com espírito de abertura - garante a manutenção de uma sociedade democrática, pluralista e tolerante .

O TEDH entende que constitui uma ingerência na liberdade de expressão qualquer intervenção de uma autoridade, pública ou privada, que exerça poderes públicos de ordenação, intervenção ou decisão, sejam poderes legislativos, governativos, administrativos, regulamentares ou judiciais, qualquer que seja a modalidade que revista, de injunção civil, de sanção penal, contra-ordenacional, disciplinar, de providência administrativa, ou indemnizatória, por dano (21).

Entre as indicadas formas de ingerência, assinale-se, a aplicação de uma sanção disciplinar a um médico por violação das regras deontológicas, por aquele ter feito críticas relativamente a um tratamento médico administrado a um paciente .

Segundo o TEDH, a limitação à liberdade de expressão está igualmente sujeita à verificação da legalidade da medida e do respeito pelo princípio da proporcionalidade.

A medida restritiva deve ser legítima face aos fins que se querem preservar, deve mostrar-se necessária considerando o contexto de uma “sociedade democrática” e deve ser adequada, porque a menos gravosa atendendo ao leque das medidas que se poderiam adoptar para o caso. Para o TEDH, as formalidades, condições, restrições e sanções à liberdade de expressão devem ser interpretadas restritivamente e só devem ocorrer existindo uma “necessidade social imperiosa”, que assim justifique (22).

A este propósito, no Acórdão do TEDH de 23.01.2007, n.º 43924/02, Almeida Azevedo c. Portugal, pesquisável em https://www.echr.coe.int, refere-se o seguinte: “23. O Tribunal lembra que, de acordo com a sua jurisprudência constante, a liberdade de expressão constitui um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática e das condições primordiais do seu progresso e do desenvolvimento de cada um. Sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 10.º, é válida não só para as «informações» ou «ideias» acolhidas ou consideradas inofensivas ou indiferentes, mas também para aquelas que ferem, chocam ou ofendem. Assim o querem o pluralismo, a tolerância e o espírito de abertura sem os quais não há «sociedade democrática». Tal como estabelece o artigo 10.º da Convenção, o exercício desta liberdade está sujeito a excepções que devem interpretar-se estritamente, devendo a sua necessidade ser estabelecida de forma convincente. A condição do carácter «necessário numa sociedade democrática» impõe ao Tribunal averiguar se a ingerência litigiosa correspondia a uma «necessidade social imperiosa». Os Estados Contratantes gozam de uma certa margem de apreciação para determinar se existe uma tal necessidade, mas esta margem anda de par com um controlo europeu que incide tanto na lei como nas decisões que a aplicam, mesmo quando estas emanam de uma jurisdição independente (vide Lopes Gomes da Silva c. Portugal, n.º 37698/97, acima referido, § 30).

18. No exercício do seu poder de controlo, o Tribunal aprecia a ingerência litigiosa à luz do caso no seu conjunto, atendendo ao conteúdo das afirmações imputadas ao requerente e ao contexto em que foram proferidas. Incumbe-lhe, em particular, determinar se a restrição à liberdade de expressão dos requerentes era «proporcional ao fim legítimo prosseguido».

(…) 28. Ao examinar, come se deve, o contexto do caso, bem como o conjunto das circunstâncias em que as expressões ofensivas foram proferidas, o Tribunal observa antes de mais que o debate em questão relevava claramente do interesse geral.

(…) os limites da crítica admissível são mais amplos em relação a um homem político que actua na sua qualidade de figura pública do que de um simples particular. O primeiro expõe-se inevitável e conscientemente a um controlo atento dos seus actos e gestos, tanto pelos seus adversários políticos como pelos jornalistas e a massa dos cidadãos, e deve mostrar uma maior tolerância, sobretudo quando ele próprio faz declarações públicas que podem ser objecto de crítica (Jerusalem c. Autriche, no 26958/95, § 38, TEDH 2001-II)

(…) 30. Ao analisar as referidas expressões, o Tribunal admite que o requerente utilizou uma linguagem provocadora e, no mínimo, deselegante para com o seu adversário político. Todavia, tal como o Tribunal já teve ocasião de assinalar, neste domínio a invectiva política extravasa muitas vezes o plano pessoal: são estes os contratempos do jogo político e do livre debate de ideias, garantes de uma sociedade democrática (Lopes Gomes da Silva supra referenciado, § 34). Lidas globalmente, as expressões em causa dificilmente podem passar por excessivas…”.

O TEDH também já entendeu que a existência de uma legislação que reprima em termos muito gerais certas expressões de opinião, de tal forma que fomente uma autocensura, pode constituir uma interferência na liberdade de expressão .

O TEDH considera, igualmente, que a restrição à liberdade de expressão para a protecção dos direitos de personalidade, designadamente ao bom nome e reputação, ou à intimidade de vida privada, só deve ocorrer quando o ataque a estes direitos atinge um certo nível de gravidade, suficientemente forte para justificar a indicada limitação. A gravidade está associada ao facto do ataque provocar prejuízos na pessoa visada .

Nessa perspectiva, o TEDH tem entendido que cabem no âmbito da liberdade de expressão as críticas contundentes e agressivas a figuras públicas, que ainda assim não provocam um “prejuízo importante”, atendendo à proeminência social de tais figuras .

Nessa consonância, no Acórdão do TEDH de 04.10.2016, processo n.º 53139/11, Do Carmo de Portugal e Castro Câmara c. Portugal, pesquisável em https://www.echr.coe.int, o referido Tribunal condenou Portugal e no texto do acórdão “recorda que quem participa de um debate em que se discutem assuntos de interesse geral, é-lhe permitido recorrer a algum grau de exagero ou de provocação ou, noutras palavra, de fazer declarações um tanto imoderadas (veja-se Marian Maciejewski c. Poland, n.o. 34447/05, § 79, 13 Janeiro 2015, com demais referências). Inexistindo base factual, tais declarações podem, admite-se, apresenta-se como excessivas; mas à luz dos factos apurados, tal não ocorre no caso em apreço (ver, mutatis mutandis, Lopes Gomes da Silva, supracitado, § 34)” .

Igualmente, no Acórdão do TEDH de 03.04.2014, processo n.º 37840/10, Amorim Giestas e Jesus Costa Bordalo c. Portugal, pesquisável em https://www.echr.coe.int, em que se discutia uma publicação em que se afirmava que Misericórdia estava “sob o peso da suspeita” e a existência de “privilégios”, que lançava a suspeita de favoritismos ilegais do Estado a interesses particulares, o TEDH afirma: “6. Por último, o Tribunal recorda que a natureza e a gravidade das sanções impostas também são factores a ter em consideração quando se trata de medir a proporcionalidade da interferência (Cumpănă e Mazăre c. Roménia ([GC], no 33348/96, §§ 113-115, ECHR 2004-XI; Kubaszewski c. Polônia, no 571/04, § 46, 2 de fevereiro de 2010)” .

O TEDH tem também entendido que as figuras públicas gozam de um âmbito de protecção dos direitos de personalidade mais reduzido que os cidadãos anónimos. Para o TEDH, a notoriedade politica, social, económica, ou outra, é uma razão que justifica uma maior tolerância face à crítica movida por terceiros.

Segundo o TEDH, as figuras públicas expõem-se consciente e inevitavelmente ao permanente escrutínio público, dos jornalistas ou da massa de cidadãos .

Considerando a notoriedade decorrente do envolvimento em questões do desporto, o TEDH pronunciou-se nos Acórdãos de 22.02.2007, processo n.º 5266/03, Nikowitz and Verlagsgruppe News GmbH c. Áustria, ou de 26.04.2007, processos n.ºs 1182/03 e 11319/03, Colaço Mestre e SIC - Sociedade Independente de Comunicação, S.A. c. Portugal, todos pesquisáveis em https://www.echr.coe.int.

Para o TEDH, a indicada notoriedade pode também resultar do comportamento do visado pelas críticas. Assim, o TEDH, no Acórdão de 06.05.2010, processo n.º 17265/05, Brunet Lecomte e Lyon Mag c. França, pesquisável em https://www.echr.coe.int, defendeu que um professor que divulgou publicamente as suas ideias e convicções, para além do carácter público da sua profissão, passou a ter uma notoriedade que o sujeitou a um risco de criticas que também o obriga a ser mais tolerante na admissão das mesmas.

No mesmo sentido, o TEDH pronunciou-se no Acórdão de 18.09.2008, processo n.º 35916/04, Chalabi c. França, pesquisável em https://www.echr.coe.int, relativamente a director de uma mesquita, face à exposição das suas ideias e ao carácter institucional do cargo que desempenhava.

Também no mesmo sentido foi a pronúncia do TEDH no Acórdão de 14.12.2006, processo n.º 10520/02, Verlagsgruppe News GmbH c. Áustria, pesquisável em https://www.echr.coe.int, em que o visado pelas críticas era um empresário.

Para o TEDH os limites mais largos da crítica também se impõem frente a quem exerce funções públicas, em virtude das funções exercidas .

Segundo a jurisprudência do TEDH, para existir um acto de difamação ou injúria tem também de existir uma relação objectiva entre a declaração contestada e uma dada pessoa. Tem de retirar-se a partir das próprias declarações, ou das circunstâncias do caso, uma indicação suficientemente precisa, que permita a identificação do alegado visado pela difamação ou injúria. A mera conjectura ou a mera percepção subjectiva - não alcançável pelo destinatário comum - não é um elemento suficiente para se considerar ocorrer uma difamação ou injúria .

A discussão de temas com interesse geral e para o debate no âmbito de uma sociedade democrática é outro dos critérios usados pelo TEDH para justificar a primazia da liberdade de expressão sobre o direito ao bom nome, à reputação ou à intimidade da vida privada .

De notar, que a jurisprudência do TEDH admite de forma mais ampla as restrições à liberdade de expressão e informação relativamente ao discurso que alimenta ou justifica a violência, o ódio, ou a intolerância. Para o efeito, o TEDH invoca o artigo 17.º da CEDH. Sem embargo, ainda nestes casos o TEDH aponta a necessidade de se proceder a uma qualificação cuidada dos chamados discursos do ódio, alertando para a necessidade de ponderar-se adequadamente os termos utilizados, o contexto das declarações e o impacto que possam ter .

Nos respectivos julgamentos, o TEDH também indica como critério a considerar a distinção entre factos e juízos de valor. Enquanto os primeiros podem ser provados, os segundos não permitem uma demonstração de exactidão.

Assim, segundo a jurisprudência do TEDH, relativamente aos juízos de valor não se pode exigir uma prova da veracidade do indicado juízo ao seu emitente, sob pena de se violar a liberdade e expressão. Relativamente aos juízos de valor, o TEDH indica a aceitabilidade dos mesmos quando baseados numa base factual suficiente. A apreciação da suficiência de tal base factual variará consoante as circunstâncias do caso, distinguindo-se, vg, entre uma opinião escrita ou um debate oral .

Nesta consonância, no Acórdão do TEDH de 15.02.2005, processo n.º 68416/01, Steel and Morris c. Reino Unido, pesquisável em https://www.echr.coe.int, pronunciando-se sobre o crime de difamação, o TEDH defendeu que estando em causa juízos de opinião, a aferição da proporcionalidade da conduta terá de aferir-se com base na respectiva sustentação, atendendo aos factos existentes. Assim, para o TEDH, a conduta só será desproporcional quando não hajam factos que a sustentem. Ao invés, existindo tais factos, a opinião, enquanto manifestação da liberdade de expressão, tem de ser admitida.

Em sentido similar pronunciou-se o TEDH no Acórdão de 07.12.2010, processo n.º 39324/07, Público - Comunicação Social, SA. e outros c. Portugal, pesquisável em https://www.echr.coe.int, em que também se discutiu o crime de difamação relativamente a uma notícia de imprensa sobre dívidas de clubes de futebol. Aqui, decidiu o TEDH que tendo a notícia uma base factual, ainda que desmentida por um dos visados, a sua veiculação não constituía um crime de difamação.

O TEDH salienta, igualmente, a necessidade de distinguir-se um juízo de valor gratuito e ofensivo de um juízo de valor alicerçado em factos e proferido no âmbito de um debate de ideias .

A título de exemplo, entre as afirmações que foram consideradas pelo TEDH como ainda cabendo na liberdade de expressão salientam-se, vg. a declaração de que um determinado politico era “imbecil” (cf. Acórdão do TEDH de 01.07.1997, processo n.º 35839/97, Oberschlick c. Áustria, pesquisável em https://www.echr.coe.int), o apelidar de um titular de um cargo público de “mentiroso completo e sem complexos”, ou de “intolerante e perseguidor” (cf. Acórdão do TEDH de 23.01.2007, processo n.º 43924/02, Almeida Azevedo c. Portugal, pesquisável em https://www.echr.coe.int), o apelidar de um titular de um órgão de um clube futebolístico de “patrão dos árbitros” (cf. Acórdão do TEDH de 26.04.2007, processos n.ºs 11182/03 e 11319/03, Colaço Mestre e SIC - Sociedade Independente de Comunicação, SA c. Portugal, pesquisável em https://www.echr.coe.int), a afirmação de que os dirigentes de dois clubes de futebol cometeram um crime de abuso de confiança fiscal (cf. Acórdão do TEDH de 07.12.2010, processo n.º 39324/07, Público - Comunicação Social, SA. e outros c. Portugal, pesquisável em https://www.echr.coe.int), a afirmação de que o presidente de um clube de futebol era “o campeão nacional dos arguidos” e um “inimigo figadal” da selecção” (cf. Acórdão do TEDH de 23.10.2013, processo n.º 33287/10, Sampaio e Paiva de Melo c. Portugal, pesquisável em https://www.echr.coe.int), o apelidar, num artigo de opinião, de um presidente de um instituto público de “mentiroso reles” e “pobre diabo” (cf. Acórdão do TEDH de 04.10.2016, processo n.º 53139/11, Do Carmo de Portugal e Castro Câmara c. Portugal, pesquisável em https://www.echr.coe.int), ou o apelidar de um Secretário de Estado da Agricultura e Florestas como “o político mais idiota que conheço” e a referência a um partido político e seus dirigentes como um partido “onde parece que toda a gente competente saiu de férias e só sobraram as galinhas” (tradução nossa, a partir do texto em inglês, cf.. Acórdãos do TEDH de 24.09.2019, processos n.ºs 75637/13 e 8114/14, Antunes Emídio e Soares Gomes da Cruz c. Portugal, pesquisáveis em https://www.echr.coe.int) .

6. Em jeito de conclusão

A efectivação da liberdade de expressão dos agentes desportivos é uma imposição básica num Estado de direito democrático, assente no pluralismo de expressão e numa organização política, democrática e participativa.

Às federações desportivas foram delegados poderes regulamentares e disciplinares que visam a salvaguardada das regras de jogo ou da competição, a promoção da ética, do espírito, da verdade desportiva e o objectar de práticas que impliquem a “perversão do fenómeno desportivo”. Incumbe também às federações desportivas o objectar de actos que incitem ou consubstanciem actos de violência, racismo, xenofobia e intolerância.

As federações desportivas devem, pois, penalizar os comportamentos dos agentes desportivos que colidam com as atribuições que lhes foram cometidas, quando tal se mostre claramente essencial para a garantia do respeito que é devido entre os agentes desportivos ou para a repressão de actos ponham em causa os elementos essenciais e imprescindíveis para bom funcionamento das instituições desportivas.

Quanto aos actos e comportamentos que não colidam com os fins e atribuições que estão cometidos às federações desportivas, devem ficar fora do campo da sanção disciplinar.

A liberdade de expressão e de informação é um direito fundamental consagrado na CRP que tem de conviver com os direitos de personalidade, designadamente o direito ao bom nome e à reputação.

As normas regulamentares aprovadas pelas federações desportivas que punem a ofensa ao bom nome e à reputação são normas restritivas da liberdade de expressão e informação. Enquanto normas restritivas, impõe-se a sua interpretação restrita ao preciso fim que visam salvaguardar.

Na interpretação que se faça das normas punitivas exige-se, também, a observância do princípio da proporcionalidade na sua tripla dimensão, da necessidade, da adequação e da proibição do excesso.

Na protecção do direito ao bom nome e à reputação deve atender-se às circunstâncias concretas que envolvem o mundo desportivo e relativas à eventual notoriedade do individuo ou instituição lesada.

Neste sentido, a jurisprudência nacional, na esteira da jurisprudência do TEDH, tem recorrido ao conceito de figura pública, que pressupõe uma maior tolerância do visado às críticas e comentários que lhe são dirigidos.

Ocorrendo uma colisão entre a liberdade de expressão e o direito ao bom nome e à reputação, impõe-se ponderar casuisticamente todas as circunstâncias que envolvem o caso concreto por forma a encontrar a melhor harmonização entre as normas colidentes. No raciocínio que se desenvolva, ter-se-á de cuidar que não se sacrifica o núcleo essencial de nenhum dos direitos colidentes. Igualmente, atendendo à concreta situação, há que interpretar os valores jurídicos em confronto tentando retirar a sua máxima efectivação, optimizando os comandos constitucionais relativos à liberdade de expressão e ao direito ao bom nome e à reputação - e que se protegem por via da sanção aplicada.

Na ponderação dos valores jurídicos em confronto e que se querem proteger, o interprete deve considerar não só as normas constitucionais que prevêem e delimitam os respectivos direitos, como as normas de direito internacional que nos vinculam, designadamente as que decorrem da CEDH e da jurisprudência que delas retira o TEDH.

O TEDH elaborou uma vasta jurisprudência relativamente ao artigo 10.º da CEDH, que nos dá diversas directrizes interpretativas em matéria de liberdade de expressão e informação.

Assim, o TEDH exige que a medida limitativa da liberdade de expressão seja uma medida legal e respeite o princípio da proporcionalidade, na sua tripla dimensão. O TEDH exige, igualmente, a verificação da legitimidade da medida face aos fins que se querem preservar e impõe que a medida restritiva seja interpretada restritivamente. Para o TEDH, a limitação da liberdade de expressão só deve ocorrer existindo uma “necessidade social imperiosa”, que assim justifique.

Para o TEDH, só ocorre a violação do direito ao bom nome e à reputação quando o ataque a esses bens jurídicos atinge um certo nível de gravidade, que está associado à existência de prejuízos efectivos relativamente à pessoa visada. Críticas contundentes e agressivas relativamente a figuras públicas ou equiparadas, que não provocam um “prejuízo importante”, ficam fora da alçada de protecção do direito ao bom nome e à reputação.

O TEDH também apenas considera violado o direito ao bom nome e à reputação quando as expressões ou declarações, nas circunstâncias do caso, permitem objectivamente a identificação de um visado.

Relativamente aos juízos de valor, o TEDJH não exige uma demonstração de exactidão, bastando-se com uma base factual suficiente.

Estas linhas de jurisprudência do TEDH devem ser adoptadas pelo interprete aplicador quando aprecia uma questão que envolva a liberdade de expressão dos agentes desportivos.

A adopção de uma leitura das normas regulamentares aprovadas pelas federações desportivas que punem a ofensa ao bom nome e à reputação que dê preferência a este direito em detrimento da liberdade de expressão dos agentes desportivos, não se coaduna nem respeita a CRP. Trata-se, também, de uma leitura que não respeita a CEDH e que se afasta da jurisprudência do TEDH. Igualmente, é uma leitura que se afasta da jurisprudência já delineada na matéria pelo STJ e hoje adoptada pela maioria dos tribunais comuns.

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Recebido: 24 de Janeiro de 2021; Aceito: 24 de Fevereiro de 2021

Notas biográficas Sofia David Tribunal Central Administrativo Sul Av. 5 de Outubro, 202 1050-065 Lisboa sofiamesquitadavid@gmail.com

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