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e-Pública: Revista Eletrónica de Direito Público

versão On-line ISSN 2183-184X

e-Pública vol.8 no.1 Lisboa mar. 2021  Epub 22-Jan-2022

https://doi.org/10.47345/v8n1art11 

Direito Administrativo

Tendências Recentes do Direito Administrativo da Energia: a Regulação das Comunidades de Energia (e do autoconsumo coletivo) e a Descarbonização do Setor do Gás Natural

Recent Trends in Energy Administrative Law: Regulating Energy Communities (including collective self-consumption) and the path towards the Decarbonisation of the Natural Gas Sector

Filipe Matias santosi 

iERSE - ENTIDADE REGULADORA DOS SERVIÇOS ENERGÉTICOS


Resumo:

O presente artigo propõe-se apresentar duas realidades que estão a despontar e que constituem manifestações das tendências mais recentes no seio do direito administrativo da energia: as comunidades da energia (incluindo o autoconsumo coletivo) e a descarbonização do setor do gás natural.

Palavras-Chave:

Abstract:

This article presents energy communities (including collective self-consumption) and the decarbonisation of the natural gas sector as two emerging realities, which constitutes manifestations of the recent trends in the energy administrative law.

Key words:

Direito Administrativo da Energia

Os domínios da energia são vastíssimos (Oil & Gas, Power, Renewables, energy efficiency) e geram múltiplas interseções setoriais (v.g. clima, transportes, infraestruturas, mercados financeiros), no quadro de mercados globais com uma complexidade proporcional à sua enorme relevância económica e ambiental.

Numa perspetiva holística e interdisciplinar, o direito da energia convoca normas tanto de direito público, como de direito privado e, dentro destes ramos, inúmeras disciplinas, tais como o direito internacional, o direito do ambiente, o direito fiscal ou o direito do consumo.

O sistema de normas jurídicas necessárias à consecução do interesse público que disciplinam as relações (os termos, os incentivos e os limites) da atividade privada no setor energético, incluindo o seu relacionamento com a rede elétrica pública, é fixado por lei e sua regulamentação.

Assim, na perspetiva regulatória, no âmbito da regulação da economia como resposta a persistentes falhas de mercado (market failures), a regulação setorial constitui essencialmente Direito Administrativo, suportado pelo direito europeu, que surge no contexto da transformação deste nas áreas da administração económica (1) (2) (3) (4) (16). É este que permite assegurar a proteção de posições jurídicas subjetivas e proporcionar os instrumentos necessários ao exercício de poderes públicos que garantam a regularidade do funcionamento dos mercados regulados no quadro do interesse geral.

Regulação do setor energético

A regulação energética tem tradicionalmente por objeto central as indústrias de redes, da eletricidade e do gás natural, que constituem serviços de interesse económico geral, no quadro do rompimento com o denominado Estado de Serviço Público -, concretizado através da liberalização do setor público económico, entretanto privatizado, que fez nascer a necessidade do Estado Regulador que cuide das tarefas necessárias à satisfação de necessidades coletivas que foram deslocadas do Estado para o mercado (5) (6) (7) (8) (9) (10).

A regulação dos setores em rede, seguindo a doutrina das essential facilities, assenta essencialmente na separação de atividades (unbundling), no direito de acesso regulado por terceiros (third-party access) e na definição regulatória de tarifas de acesso, que pressupõem e implicam a definição dos réditos das atividades monopolistas, a interoperabilidade das redes e exigências de qualidade do serviço.

Paralelamente, a regulação implica, de forma crescente, uma atividade não só de nivelação das condições de concorrência, mas também de supervisão das diferentes atividades liberalizadas (incluindo, como no caso português, outros vetores energéticos, como os combustíveis líquidos ou o gás de petróleo liquefeito), que pugne pela transparência, pela integridade dos mercados, pela adequada formação de preços e pelo cumprimento do quadro normativo comportamental.

No âmbito da regulação da energia (11), destacaremos duas realidades que estão a despontar e que convocam o direito administrativo da energia: as comunidades da energia (incluindo o autoconsumo coletivo) e a descarbonização do setor do gás natural.

Regulação das Comunidades de Energia (e do Autoconsumo coletivo)

O recém-aprovado Clean Energy Package (Pacote Energia Limpa), com centro de gravidade no setor elétrico, está orientado no sentido de permitir e de acelerar a transição energética(12), promove a eletrificação da economia, assente na produção renovável, na eficiência energética e na concretização do mercado interno.

O quadro político-legislativo europeu do setor elétrico, incluindo o enquadramento institucional, foi atualizado através de oito diferentes atos legislativos que vieram efetuar o aggiornamento das bases legais europeias da energia elétrica.

Tanto a nova Diretiva do Mercado Interno (artigo 16.º), como a nova Diretiva das Renováveis (artigo 22.º), ainda que em moldes não totalmente coincidentes, vêm impulsionar as denominadas comunidades de energia. A última, consagra ainda autoconsumidores (prosumers) de energia renovável em moldes próximos aos daquelas comunidades.

Ambos os diplomas preveem comunidades de energia: entidades com personalidade jurídica, de adesão aberta e voluntária, sob regras de governance específicas, cujo principal objetivo é proporcionar uma atuação coletiva no setor energético orientada para benefícios ambientais, económicos ou sociais (que não a geração de lucros financeiros). A comunicação referente ao European Green Deal, mais recentemente publicada, retoma a necessidade de as promover, numa lógica de atuação conjunta, numa base de proximidade regional e local, que reforce o poder efetivo dos cidadãos.

Na lógica do direito europeu, as comunidades da energia, equiparáveis a clientes ativos, às quais é garantida a colaboração dos operadores das redes de distribuição, têm a possibilidade de aceder a todos os mercados da eletricidade: produção, inclusive de energia de fontes renováveis, de distribuição (se o Estado-membro assim decidir ), de comercialização, de consumo, de agregação, de armazenamento de energia, de prestação de serviços de eficiência energética ou de serviços de carregamento para veículos elétricos, podendo ainda prestar outros serviços energéticos aos seus membros ou aos titulares de participações sociais, mas incorrendo, em qualquer caso, em responsabilidades por desvios. Sendo que, em todo o caso, tal não prejudica os direitos que o participante na comunidade tem enquanto consumidor.

As Comunidades de Cidadãos para a Energia, previstas na nova Diretiva do Mercado Interno, e as Comunidades de Energia Renováveis diferem, sobretudo, em aspetos de participação e governance, de proximidade geográfica exigida e dos recursos energéticos utilizados.

As Comunidades de Cidadãos para a Energia, orientadas para a eliminação de barreiras e o estabelecimento de um tratamento adequado a realidades emergentes, que respeite o level playing field, estão abertas à participação de todos, mas o seu controlo deve ser feito por não profissionais do setor. A participação nestas comunidades não é restringida com base em critérios de proximidade geográfica, nem em função das tecnologias, mas o seu objeto é apenas a eletricidade.

As Comunidades de Energia Renováveis, orientadas para o aumento da produção renovável, estão abertas apenas à participação de não profissionais do setor e o seu controlo deve ser feito por membros locais, permitindo-se-lhes o recurso a qualquer fonte energética, desde que exclusivamente de renovável, bem como regimes de apoio.

Por conseguinte, a limitação relativamente à natureza dos participantes no caso do autoconsumo renovável é circunscrita ao caso da impossibilidade dos autoconsumidores não domésticos poderem ter como principal atividade comercial ou profissional estas atividades. Os autoconsumidores renováveis que atuam coletivamente podem organizar entre si a partilha da energia renovável produzida, sem prejuízo das tarifas de acesso à rede e de outros encargos aplicáveis.

Portugal foi dos primeiros Estados-membro a transpor estas últimas realidades ao aprovar o regime jurídico aplicável ao autoconsumo de energia renovável e a operacionalizar regulamentarmente o regime , que inclui laconicamente o regime jurídico das comunidades de energia renovável, promovendo a democratização do acesso à energia e potenciando o consumo de energia renovável.

O Decreto-Lei n.º 162/2019, de 25 de outubro, introduziu alterações significativas no (anterior) regime de autoconsumo de energia elétrica (estabelecido no Decreto-Lei n.º 153/2014, de 20 de outubro), permitindo o autoconsumo coletivo (associando diversas instalações de produção e de consumo), inclusivamente através da utilização da rede pública, modificando os requisitos de contagem, criando a figura da comunidade de energia renovável, e admitindo a integração de infraestruturas de armazenamento de energia elétrica, num quadro que passa a privilegiar a venda em regime de mercado.

Este novo regime veio alargar a permissão existente de autoconsumo individual - produção de eletricidade renovável para consumo próprio, dentro das próprias instalações de utilização ou na sua proximidade - ao autoconsumo coletivo, que permite a atividade de produção para partilha e consumo entre várias instalações de utilização associadas. O que pode ser feito sem recurso a uma entidade jurídica (autoconsumo coletivo, com recurso a um representante) ou através de uma entidade jurídica criada que fique responsável pela implementação e gestão desse autoconsumo: uma comunidade de energia renovável (13).

A disciplina legal do autoconsumo e das comunidades de energia renovável foi desenvolvida regulamentarmente através do Regulamento de Autoconsumo de Energia Elétrica , que veio estabelecer um conjunto de regras relativo à atividade do autoconsumo, quanto ao relacionamento comercial , à aplicação de tarifas de acesso às redes , à medição à leitura e à disponibilização de dados . E, mais recentemente, tal regulamentação foi reformulada, como exigido por lei, por forma a passar a inter alia equiparar o armazenamento à produção, permitir a discriminação temporal dos coeficientes de partilha da energia de autoconsumo e consagrar regras especiais para projetos-piloto (que, desta forma, podem assumir-se como verdadeiras regulatory sandboxes).

Salientamos, neste âmbito, três aspetos: (i) a desintermediação, (ii) a imputação virtual da produção a cada instalação de utilização e seus respetivos termos (iii) e a utilização e forma de retribuição da rede pública.

Assim, primeiramente, faz-se notar que tradicionalmente os consumidores dependiam do fornecimento abastecido pelos comercializadores que, para tanto, utilizavam a rede pública na qual era injetada a energia pelos produtores. O autoconsumo é, desde há muito, uma notável exceção a essa realidade que permite ao consumidor produzir para seu consumo. Mas, até há pouco tempo, a sua expressão era limitada, tanto mais que tal era concebível apenas individualmente.

O fenómeno é imensamente potenciado e expandido por via da introdução destas novas realidades jurídicas: o autoconsumo coletivo e as comunidades de energia. O primeiro permite a produção de energia elétrica de origem renovável para partilha entre várias instalações de utilização associadas e localizadas na proximidade da unidade de produção. Sendo que, para tanto, pode ser utilizada a rede pública. No caso das comunidades, enquanto forma de organização de produtores, consumidores e outros agentes, com vista ao desenvolvimento de projetos de energia elétrica de origem renovável, além do desenvolvimento de projetos de autoconsumo coletivo, podem ser desempenhadas várias atividades, desde a produção de energia renovável, ao consumo, armazenamento, venda e partilha de energia renovável.

O modelo de autoconsumo coletivo e das comunidades, ao permitir a associação direta de consumidores e unidades de produção próximas para partilha de energia, vem permitir a desintermediação da atividade da compra e venda de energia elétrica, revelando que pode não existir estanquicidade absoluta entre a procura e a oferta.

A partilha de energia (da produção ao consumo) passa a ser possível, de forma coletiva, através de entidade gestora do autoconsumo (EGAC) - que pode ser o condomínio -, designada pelos respetivos membros, para representação perante terceiros, que operacionaliza a disponibilização dos dados de produção, do coeficiente de repartição e o pagamento do acesso às redes aos operadores das redes, nos termos que abaixo se expõe.

Este movimento, mais recente, de desintermediação e de descentralização com a valorização do papel das comunidades locais na produção e gestão da energia (numa lógica de atuação conjunta, baseada na proximidade local, que reforce o poder efetivo dos cidadãos), surge, paralelamente, no quadro do pleno desenvolvimento e do aprofundamento do movimento de integração europeia, no seio do mercado interno, que está assente na separação de atividades e na concorrência entre agentes à escala supranacional, gerando duas realidades multinível em coexistência.

Em segundo lugar, importa salientar que a produção gerada é imputada virtualmente a cada instalação de utilização, através do processamento dos dados da produção e do consumo, medidos pelo operador de rede segundo um coeficiente de repartição definido pelos autoprodutores ou pelos membros da comunidade.

Este método simula uma instalação de produção para autoconsumo em cada instalação de utilização, com a dimensão correspondente à fração prevista nas regras de partilha, evitando a necessidade de instalar cablagem elétrica que permita o abastecimento físico.

Paralelamente, a modulação do coeficiente de repartição constitui uma ferramenta que permite ajustar a imputação de consumos segundo as preferências dos autoconsumidores, permitindo a maximização do aproveitamento da produção para consumo próprio. O que pode ser feito em função de múltiplos critérios, inclusive da proporção do investimento na produção ou os níveis de utilização esperados num determinado horizonte temporal.

Adicionalmente, o tratamento dos dados de energia, para determinar o consumo e o excedente, é feito em períodos de 15 minutos para efeitos de consideração de saldos entre a receção e a injeção na rede. O que, tendo em conta a flutuação de consumos e seus picos ao longo do dia, face a consumos instantâneos gerados, assume uma expressão monetária em benefício do autoconsumidor que não é despicienda.

A energia excedente do autoconsumo pode, ainda, ser vendida através do mercado organizado ou de contrato bilateral. Admitindo que tal pode não ser propriamente acessível à generalidades dos produtores desta pequena dimensão, foi estabelecida transitoriamente a obrigação de compra, ao abrigo do regime de remuneração geral, ao Comercializador de Último Recurso, a SU Eletricidade , segundo modelo contratual regulatoriamente definido .

Por fim, verificamos que o paradigma setorial de utilização da rede pública é desafiado. Com efeito, o modelo regulatório tradicional era o de que a produção (historicamente grandes centrais hídricas ou térmicas) era injetada no transporte e era veiculada até ao consumo, pagando o acesso às redes por todas as infraestruturas que atravessava. O que não foi afastado quando a produção passou a ser descentralizada e, em muitos casos, passou a ser injetada na rede de distribuição (alta ou mesmo média tensão).

A regulação do autoconsumo coletivo e das comunidades da energia põe em causa aquele paradigma. A utilização da rede pública, nestes casos, para veicular energia elétrica entre a unidade de produção e instalação elétrica de utilização, fica geralmente sujeita apenas ao pagamento das tarifas de acesso às redes aplicáveis ao consumo no nível de tensão de ligação com a instalação de utilização, pela EGAC, dispensando-se o pagamento do uso das redes a montante. Além disso, cumulativamente, numa lógica de incentivação são ainda deduzidos, no todo ou em parte, os encargos correspondentes aos custos de interesse económico geral (CIEG) que integram as tarifas de acesso. O que, sobretudo nos níveis de tensão mais baixos, corresponde a uma parte significativa da fatura (14) (15).

Esta incentivação, na lógica da democratização do acesso à energia, é extremamente meritória, além de que tem apoio justificativo enquanto contrapartida de um investimento privado que contribuirá para o cumprimento dos objetivos e metas da descarbonização e de aproveitamento das fontes de energia endógenas a que o país está vinculado.

Sem prejuízo, além de desafiar o paradigma tradicional de remuneração das redes esta realidade cria um fenómeno de possível consumer divide quando tradicionalmente os consumidores eram tratados de forma uniforme. Do universo de consumidores, existem aqueles que têm formação, capacidade financeira e vocação para se tornarem autoconsumidores e outros que não. A perspetiva de existirem consumidores a ser fornecidos de eletricidade sem rede de energia elétrica (off-grid), através de equipamentos de geração próprios e apoiados em baterias, parece, cada vez menos distante. Situações em que custos não evitados pelos autoconsumidores não sejam por estes cobertos (early adopters), podem gerar efeitos redistributivos com os restantes utilizadores da rede pública. Sendo que a menor utilização das redes elétricas, em volume de energia, acarreta um aumento unitário progressivo pelos seus utilizadores. O que, no limite, poderia conduzir a um círculo vicioso (death spiral), que teria como principais prejudicados os consumidores com menor informação e/ou capacidade de investimento, por definição, mais totalmente dependentes da rede. Todavia, existem medidas que o poderão evitar tais como a incentivação dirigida a quem tem menos recursos ou aptidão para realizar tais investimentos, bem como outras abordagens com base em modelos de difusão.

O futuro das redes elétricas, no quadro da transição energética, passa também pela relevância das comunidades locais e do autoconsumo coletivo que, agora, começam a despontar.

Descarbonização do Setor do Gás Natural

O Clean Energy Package, correspondendo ao “quarto pacote” da eletricidade, permitiu a atualização do quadro político-legislativo europeu do setor elétrico, mas o mesmo não sucedeu no setor do gás natural. Ficou, efetivamente, por aprovar o denominado “quarto pacote” do gás natural que, historicamente, acompanhou os «pacotes» da eletricidade, apesar de inicialmente tal estar revisto na iniciativa União da Energia.

No setor do gás natural foram apenas aprovados dois diplomas para fazer face às preocupações mais imediatas, ligadas intrinsecamente à segurança do aprovisionamento (security of supply), designadamente através da solidariedade entre Estados-Membros em caso de crise energética de gás natural (solidarity clause), bem como da diversidade de fontes de aprovisionamento com reforço das regras do mercado interno, o Regulamento (UE) 2017/1938 e a Diretiva (UE) n.º 2019/692/UE. O que deixou o futuro do gás natural, assim, envolto nalguma indefinição na equação da policy europeia.

Mais recentemente, a Comissão Europeia lançou, ao décimo dia do novo mandato, o European Green Deal (Pacto Ecológico Europeu, na denominação portuguesa), enquanto iniciativa política que pretende promover o investimento climaticamente neutro e a economia circular. Ao fazê-lo, elege o setor energético como um dos principais domínios de atuação com vista a contrariar alterações climáticas e a degradação ambiental, promovendo uma transição ecológica sustentável.

Neste cenário, a atualização do “pacote do gás” pode apresentar-se como uma das prioridades A comunicação do European Green Deal inclui, no seu ponto 2.1.2 sobre energia limpa, referência à necessidade de em paralelo à eletrificação renovável ser promovido o desenvolvimento de “decarbonised gases”. Neste contexto, a Comissão Europeia lançou “A hydrogen strategy for a climate-neutral Europe” nas quais advoga uma agenda de investimentos, um aumento da procura combinado com o aumento de escala da produção, regimes de apoio, inovação tecnológica e internacionalização.

A quase totalidade do hidrogénio é produzido, atualmente, a partir de fontes fósseis (grey hydrogen), sendo o seu principal mercado a indústria pesada e estando em perspetiva o seu potencial crescimento nos transportes. Os avanços tecnológicos conhecidos e os baixos preços da produção elétrica renovável, uma vez apropriadamente enquadrados no plano legal, podem permitir avanços significativos no denominado power-to-gas, devido à conversão de eletrões em moléculas. Assim, o hidrogénio produzido com recurso a fontes elétricas renováveis (green hydrogen) apresenta-se como promessa (a testar) para a viabilização da transição energética.

A aposta na descarbonização do setor gasista permite, ainda, dar resposta à intermitência da produção renovável, dependente de fatores naturais não controláveis como a intensidade do vento ou do sol , criar um meio de armazenamento de energia, bem como aproveitar a capacidade instalada existente (e os inerentes custos afundados com gasodutos). O gás armazenado pode ainda ser, novamente, reconvertido em eletrões (gas-to-power).

Em Portugal deram-se passos importantes na direção da descarbonização do setor do gás natural. No mês de agosto de 2020 foi, primeiro, aprovado o Plano Nacional do Hidrogénio e, logo a seguir, reformulado o quadro legal de base do setor do gás natural. O Decreto-Lei n.º 62/2020, de 28 de agosto, veio estabelecer num único diploma a organização e funcionamento do agora denominado Sistema Nacional de Gás (SNG) e seu regime jurídico.

Este diploma, revogando os Decretos-Lei n.º 30/2006, de 15 de fevereiro, e 140/2006, de 26 de julho, sem prejuízo de pontuais alterações, unifica o regime aplicável ao anterior Sistema Nacional de Gás Natural, que passou a denominar-se Sistema Nacional de Gás (SNG), com a consequente alteração de denominações dos agentes e da cadeia de atividades setoriais, introduzindo ainda como novas atividades quer a produção de gases de origem renovável, quer a produção de gases de baixo teor de carbono, e consagrando os respetivos produtores como agentes do SNG (artigos 8.º e 9.º).

De acordo com o novo diploma, a atividade de produção de gás de origem renovável e de gases de baixo teor de carbono ganha palco. Num país historicamente sem produção de gás (upstream), que importava totalmente o gás que introduzia no (então) SNGN, trata-se de uma novidade relevante. A atividade de produção é livre, ficando sujeita a registo prévio.

A procura será induzida por um regime de quotas mínimas de incorporação no gás natural de gases de origem renovável e de baixo teor de carbono (artigos 5.º, 54.º, 61.º, 63.º, 64.º, 76.º). O que, de algum modo, tem aproximação ao regime de incorporação dos biocombustíveis, no setor dos combustíveis, ou ao regime de certificados verdes como regime de apoio no setor elétrico.

Nesse âmbito, compete ao comercializador de último recurso (CUR) grossista, para além de adquirir gás para fornecimento dos comercializadores de último recurso retalhistas (como já sucedia), adquirir gases de origem renovável e de baixo teor de carbono aos respetivos produtores para garantia das quotas mínimas de incorporação de outros gases por parte dos demais intervenientes no SNG (artigo 5.º, n.º 2 do artigo 61.º, artigos 63.º e 64.º). O que pressupõe o pagamento, pelo CUR grossista, de um valor aos produtores que, pelo menos numa fase inicial, será superior ao do gás natural. Por sua vez, de acordo com o normativo aprovado, a venda pelo comercializador de último recurso grossista aos agentes já é feita aos preços de referência do MIBGás, onde é transacionado gás natural. O diferencial entre o preço de compra pelo comercializador de último recurso grossista e aquele a que este realiza a venda é suportado pelo Fundo Ambiental. Estamos, assim, perante um modelo de compra centralizada, que neste aspeto se aproxima do modelo de compra da produção em regime especial com tarifa fixa pelo do CUR do setor elétrico, com a diferença fundamental que, no caso do gás, o sobrecusto não é suportado pelos consumidores do SNG.

A atividade de produção de gás descarbonizado pode, ainda, beneficiar de regimes de apoio, a estabelecer pelo membro do Governo responsável pela área da energia, no âmbito de procedimentos concursais (artigo 73.º).

No que respeita à conexão com as redes, os produtores, nos termos da lei, terão de suportar os custos com as ligações à rede pública de gás nas condições fixadas, bem como encargos de ligação à rede a determinar pela ERSE. Já os investimentos nas redes terão de ser realizados pelos respetivos operadores, segundo os respetivos de planos de desenvolvimento e investimento que, nos termos gerais, acabam por ser suportados pelos consumidores através das tarifas de acesso às redes.

O regulador fica, ainda, expressamente habilitada a prever a implementação de planos de promoção da injeção de outros gases na infraestrutura, como instrumento de descarbonização das infraestruturas de gás (artigo 114.º), por forma a conseguir ultrapassar barreias que se coloquem ao mercado.

A produção de hidrogénio, a preços que sejam viáveis, permite melhorar as condições tanto do sistema elétrico, como do gás natural, gerando sinergias e otimizando os recursos disponíveis com a consequente redução de custos e impactos ambientais, no quadro da almejada integração sectorial (sector coupling).

Referências

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Recebido: 24 de Janeiro de 2021; Aceito: 24 de Fevereiro de 2021

Notas biográficas Filipe Matias santos Filipeams@gmail.com Advogado, Mestre em Ciências Jurídico Empresariais, Diretor dos Serviços Jurídicos da Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE). As opiniões e interpretações expressas no presente documento são pessoais e não podem ser atribuídas à ERSE.

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