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e-Pública: Revista Eletrónica de Direito Público

versión On-line ISSN 2183-184X

e-Pública vol.8 no.2 Lisboa set. 2021  Epub 02-Feb-2022

https://doi.org/10.47345/v8n2art4 

Direito Europeu

Como identificar fenómenos de gold-plating: desafios e soluções(3)

How to identify “gold-plating”: challenges and solutions

Manuel Cabugueirai 

Ana Sofia Figueiredoii 

iUniversidade Lusófona, Portugal

iiInstituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, da Universidade de Lisboa, Portugal


Resumo:

A intervenção pública tem de encontrar um equilíbrio entre os objetivos inerentes à política pública e os impactos secundários que exerce sobre cidadãos e empresas ao condicionar a sua atividade e capacidade de decisão, bem como quando gera encargos. No quadro do processo legislativo europeu, esta dicotomia é ainda reforçada pela complexidade da cadeia regulatória, que inclui as instituições europeias e os Estados-Membros, pela aplicação do princípio da subsidiariedade e pelos objetivos de promoção da competitividade da economia europeia e de sustentação do mercado único.

É neste quadro que nos propomos discutir o tema do gold-plating, as razões da sua existência e as dificuldades práticas de identificação. Propomos, ainda, que se atribua particular atenção à possibilidade de olhar para este tipo de dinâmica na perspetiva da promoção da transparência do processo legislativo europeu.

Palavras-Chave:

Abstract:

Public intervention must find the balance between public policy objectives and the secondary impacts on citizens and businesses by conditioning their activity and decision-making capacity, as well as by creating burdens. Within the European legislative process, this dichotomy is further reinforced by the complexity of the regulatory chain, which includes the European Institutions and the Member States, by the application of the subsidiarity principle and by promotion the European economy competitiveness and the sustainability the Single Market.

It is in this framework that we propose to discuss the topic of gold-plating, the reasons for its existence and the practical difficulties of its identification. We also look at this type of dynamic from the perspective of promoting transparency in the European legislative process.

A practical approach to Gold-Plating

As iniciativas legislativas europeias têm por objetivo promover o bem-estar e a qualidade de vida dos cidadãos, num ambiente de desenvolvimento sustentável respeitando os valores sociais europeus. A par daqueles objetivos primários, a implementação da legislação gera, no entanto, impactos secundários que se refletem sobre cidadãos e empresas, perturbando o funcionamento do mercado único e pondo em causa a competitividade da economia europeia . Encontrar um equilíbrio entre estes dois tipos de impactos tem sido um desafio assumido pelos programas “Legislar Melhor” .

Os programas de Legislar Melhor têm vindo a ganhar relevância, tanto pelas boas práticas motivadoras de exemplos de excelência internacionais, como pelo amplo envolvimento das instituições, Estados-Membros e partes interessadas (stakeholders) . No centro deste programa, está uma preocupação com a qualidade da legislação, a sua capacidade para ser adequada aos objetivos e ajustada às necessidades de um futuro em mutação, sem criar de obrigações administrativas e de cumprimento excessivas que possam afetar a capacidade de decisão de cidadãos e empresas com repercussões na competitividade e no bem-estar. O seu sucesso depende, no entanto, não só da qualidade do processo legislativo ao nível das instituições europeias, mas também no momento da transposição e implementação nos Estados-Membros .

É neste ecossistema de debate sobre a qualidade da legislação europeia e de determinação pela redução de encargos em prol de um mercado interno mais harmonizado e competitivo, bem como promotor de bem-estar a todos os cidadãos, que o tema do gold-plating permanece numa indefinição nebulosa, que permite trocas sucessivas de argumentos entre legisladores e envolvidos (1) (2).

Considerando o desenvolvimento histórico do conceito de gold-plating fica claro que, na sua origem, se trata de uma ideia centrada nas empresas e na preocupação com a competitividade da UE e com o bom funcionamento do mercado interno da UE . É neste sentido que acompanhamos o conceito proposto nas guidelines de Better Regulation nas quais se define “gold-plating como um processo pelo qual um Estado-Membro que tem de transpor ou implementar as Diretivas da UE para a sua legislação nacional, ou tem de implementar a legislação da UE, aproveita o processo de transposição para impor requisitos, obrigações ou normas adicionais aos que vão além os requisitos ou normas previstos na legislação transposta” .

Neste texto, propomo-nos discutir questões relacionadas com a prática de gold-plating e, em concreto, com as razões da sua existência e as dificuldades associadas à sua deteção. Para tal, começamos por estender o conceito apresentado, acompanhando a proposta de países como o Reino Unido os Países Baixos ou a Suécia, quando às formas que o gold-plating pode assumir :

Acrescenta requisitos, obrigações ou normas para além daquelas que constam da diretiva;

Estende o âmbito da diretiva;

Não aproveita todas as derrogações permitidas pela diretiva;

Mantem os requisitos ou as obrigações definidas pela regulação nacional, que são mais exigentes do que os estabelecidos pela diretiva em questão;

Utiliza a implementação da diretiva para introduzir obrigações que saem do âmbito da diretiva;

Recorre a mecanismos de implementação ou a sanções mais severos do que aqueles necessários para implementar a legislação

Cada uma das situações tem o potencial de aumentar os encargos suportados por cidadãos e empresas, prejudicando a sua competitividade e o bom funcionamento do mercado interno, pondo em causa o esforço para reduzir a fragmentação jurídica. A sua origem pode estar associada às opções regulatórias, densificando ou complexificando a regulação, i.e., às características das medidas adotadas (1.º, 2.º, 4.º, 5.º) ou ao processo regulatório (3.º e 6.º).

Nos próximos dois pontos, são abordadas cada uma destas situações, destacando as dificuldades práticas da sua identificação. No ponto 2., apresentamos a cadeia regulatória, que relaciona o processo legislativo europeu e o relaciona com os processos legislativos internos aos Estado-Membros, realçando os momentos de análise de casos de gold-plating, bem como as razões que os justificam. No ponto 3., abordamos a existência de gold-plating ao nível das medidas e a forma como pode ser identificado. No ponto 4. propomos novas perspetivas sobre a prática de gold-plating, abrindo espaço para outras reflexões.

Cadeia regulatória - obrigações vs flexibilidade

A complexidade do processo legislativo europeu decorre da sua estrutura multinível que envolve três dimensões: o da Comissão Europeia, o dos colegisladores - o Conselho e o Parlamento Europeu - e a cadeia legislativa interna dos Estados-Membros, que se sustenta no princípio da subsidiariedade . Neste sentido, para identificar as situações de gold-plating importa, em primeiro lugar, conhecer os objetivos e os limites da atuação da União Europeia estipulados nos Tratados, bem como o modo com decorre o procedimento legislativo a nível europeu e a sua relação com o procedimento nacional de cada Estado-Membro.

Os Tratados determinam as áreas sobres quais pode adotar legislação a UE, os governos nacionais ou ambos. É neste contexto que os princípios da proporcionalidade e da subsidiariedade ganham expressão, pois a UE apenas pode intervir sobre os domínios que lhe forem atribuídos por via da ratificação dos Estados-Membros, tendo presente que essa intervenção se deve limitar ao necessário para que os objetivo dos Tratados sejam alcançados e, nos casos em que ambos podem legislar, apenas nos casos em que se considere que a intervenção transversal da UE seja mais eficaz (4) (5).

Os domínios de competência exclusiva da UE na adoção de legislação, previstos no artigo 3.º do Tratado sobre Funcionamento da União Europeia (TFUE) , são os seguintes: união aduaneira; estabelecimento das regras de concorrência necessárias ao funcionamento do mercado interno; política monetária para os Estados-Membros cuja moeda seja o euro; conservação dos recursos biológicos do mar, no âmbito da política comum das pescas; e política comercial comum.

Nos casos em que a competência é partilhada entre a UE e os Estados-Membros, importa ter presente que os Estados-Membros apenas poderão adotar legislação nos casos em que a UE não o tenha feito ou não o pretenda fazer. Os domínios de atuação neste caso são dez , entre os quais se destaca, entre outros, o mercado interno, ambiente, defesa do consumidor, transportes, agricultura e energia.

Como referido anteriormente, o conceito de gold-plating está vinculado às políticas públicas centradas nas empresas e a argumentos promotores da competitividade do mercado interno, pelo que importa compreender o procedimento legislativo da UE, sob a lente dos programas de simplificação legislativa europeus (REFIT Programm). Só por via do cruzamento destas duas linhas de procedimentos administrativos europeus é possível conceber o mapa complexo da tomada de decisão, da intervenção externa dos interessados e da implementação das políticas públicas com origem europeia. É precisamente neste mapa que importa identificar os fenómenos de gold-plating, as suas origens e motivações, vistas tanto na perspetiva das instituições europeias como na perspetiva dos governos dos Estados-Membros.

Sendo certo que existem diferentes instrumentos jurídicos europeus, atendamos àqueles que cujo procedimento de adoção decorre de acordo com o processo legislativo ordinário . Nestes casos, a iniciativa legislativa é da responsabilidade da Comissão Europeia, configurando-se esta fase do processo como o foco primordial do Programa REFIT e cujas regras de operacionalização se encontram claramente definidas no Acordo Interinstitucional sobre Legislar Melhor .

Neste contexto, a Comissão Europeia deve, antes de apresentar uma proposta aos colegisladores, descrevê-la num roteiro ou nota, decorrendo de seguida um processo de avaliação de impacto das diferentes alternativas para alcançar os objetivos de política pública. Ao longo dos últimos anos, este processo passou a ser acompanhado por processos de consulta pública transparentes e abrangentes , garantindo assim uma recolha de evidências que se pretende ser completa, de modo a permitir que os exercícios e avaliação de impacto prévios refletem a realidade dos abrangidos nos diferentes contextos de cada Estado-Membro. A criação de Plataformas entre representantes dos governos dos Estados-Membros e grupos representativos das partes interessadas que representam organizações empresariais e não governamentais (anterior REFIT Platform e a atual Fit-for-Future Platform) são outros mecanismos de apoio à Comissão para dar voz aos envolvidos nos processos de simplificação da legislação europeia .

Os relatórios de avaliação de impacto são ainda sujeitos ao escrutínio do Regulatory Scrutiny Board (Comité de Controlo da Regulamentação), cuja responsabilidade é a de assegurar a qualidade das avaliações por via da análise e emissão de pareceres sobre todos os projetos de avaliação de impacto, bem como sobre outras avaliações da legislação em vigor levadas a cabo pela Comissão .

Findo o processo, a Comissão, em função da natureza da proposta, envia o texto final da iniciativa ao Parlamento Europeu e ao Conselho, bem como aos Estados-Membros, podendo haver lugar à sua publicação no Jornal Oficial da União Europeia (JOUE). Este é o passo inicial do processo legislativo ordinário, que pode ser resumido de forma muito simplificada como um procedimento em que os colegisladores analisam e alteram a proposta inicial da Comissão em leituras sucessivas e atos de negociação, procurando-se chegar a um acordo relativo ao texto final para posterior adoção. Seja deste modo ou por via de processos especiais, as iniciativas legislativas adotadas são posteriormente publicadas no JOUE, dando início ao processo de transposição ou aplicação por parte dos Estados-Membros.

Sendo certo que os regulamentos e as decisões são diretamente aplicáveis a partir da sua data de entrada em vigor, as diretivas implicam ainda um processo de transposição, sendo que o prazo para o efeito está previsto no texto da iniciativa e a Comissão deve assistir os legisladores nacionais neste processo, prevenindo assim casos de infração. Até ao final do prazo previsto, os Estados-Membros devem informar a Comissão quais são as medidas nacionais de execução e, desejavelmente, os casos em que optou pela aplicação de medidas mais restritivas - o gold-plating.

É chegado a este ponto da cadeia regulatória que se assiste à troca de argumentos sobre a origem dos encargos administrativos excessivos sobre as empresas, pois se por um lado a Comissão Europeia aponta a implementação e os consequentes casos de gold-plating como os motores da fragmentação jurídica e deterioração da competitividade do mercado único, também por outro os Estados-Membros acusam a Comissão Europeia de impor obrigações e tarefas administrativas onerosas para as empresas nacionais, em particular para as pequenas, médias e micro empresas, sem ter em consideração a realidade e especificidade do tecido empresarial de cada Estado. As demonstrações de esforços de redução de encargos são uma realidade tanto em relatórios da Comissão Europeia como dos Estados-Membros .

Na mais recente Comunicação da Comissão Europeia, publicada em abril de 2021 , estão previstas diversas linhas de atuação para fomentar a competitividade do mercado interno e a recuperação económica dos Estados-Membros, apelado a que as instituições europeias, os governos nacionais, representantes de interesses e Comité das Regiões, se unam a este esforço de melhoria regulatória. Neste documento podem ainda encontrar-se duas referências claras ao esforço que a todos compete, nomeadamente aos colegisladores - “reiteramos o apelo que lançámos ao Parlamento Europeu e ao Conselho para honrarem os seus compromissos assumidos no Acordo Interinstitucional sobre legislar melhor. Em particular, instamos as duas instituições a documentarem o efeito das suas alterações no que diz respeito aos impactos previstos” e aos Estados-Membros - “a Comissão reitera o seu apelo aos Estados-Membros para que a informem sempre que decidirem aditar elementos que não resultem da legislação da EU” .

Num último nível de evolução da cadeia legislativa encontramos o processo interno a cada Estado-Membro, que terá mais ou menos liberdade de transposição na forma como define os requisitos, obrigações ou normas adicionais ou no processo de implementação, podendo alterar a sua densidade, número de normas ou nível de concretização das normas de implementação (que Zhelyazkova e Thomann (6), denominam de restrição na implementação). Este processo de customização da legislação europeia para a dimensão nacional pode diluir as exigências (watering down effect de Zhelyazkova e Thomann ) ou aumentar os níveis de exigência, gold-plating.

A customização pode resultar, apenas, da interpretação feita por cada Estado-Membro ou pode resultar de diferentes fatores :

diversidade: necessidade de adequação à diversidade, às especificidades de cada Estado-Membro, nomeadamente a objetivos de política especifica, mais ambiciosos na área social - social plating, ambiental - green plating (Jans set al., 2009), na justiça ou outras;

inércia: quando já existem normas nacionais sobre o mesmo objeto pode ser mais simples não proceder à sua revogação;

falta de coordenação: quando estão em causa intervenções que afetam diferentes áreas de governação, podem acontecer sobreposições ou incoerências que aumentem a complexidade de implementação;

aversão ao risco: as normas nacionais podem apenas refletir a insegurança ou a aversão ao risco dos funcionários públicos, que assumem a responsabilidade da implementação;

a proteção de grupos de interesse: quando a customização é desenhada de forma a proteger um grupo de interesses específico (7).

Estes fatores podem justificar um aumento da exigência legislativa ao nível dos requisitos, das obrigações ou das normas, mas também do processo de implementação, que, tanto pode, aumentar os encargos suportados por cidadãos e empresas, bem como, dificultar a sua atividade, alterando as condições da tomada de decisão e a estrutura de mercado (dificultando a entrada a manutenção ou a saída do mercado), diminuindo a eficácia pretendida no desenho original da legislação europeia e, podendo por em causa a competitividade e a consolidação do mercado único (8).

Identificar o fenómeno de gold-plating

Uma qualquer iniciativa legislativa integra medidas que, visando um benefício de interesse público, condicionam a atividade das empresas e a vida dos consumidores ou promovem o acesso de cidadãos e empresas a um benefício. Para além destes impactos diretos que visam a competitividade da economia e o bem-estar da sociedade, a iniciativa legislativa também gera impactos indiretos sobre os cidadãos ou empresa, seja porque impõem obrigações ou porque alteram a estrutura dos mercados e o ambiente de decisão.

O efeito prático destes impactos depende dos requisitos e das obrigações que são definidos, bem como do seu âmbito, i.e., da incidência de implementação no que se refere à população que pode incluir cidadãos e/ou empresas e, no último caso, um ou mais sectores económicos.

Os cidadãos ou as empresas podem ser afetados por encargos diretos, tais como a exigência de aquisição de equipamento ou contratação de serviços ou pelo pagamento de taxas ou de outro tipo de contribuições financeiras ao Estado, ou indiretos, porque recaem sobre eles obrigações de prestação de informação ou o cumprimento de tarefas que impliquem despender tempo ou recursos. Ainda no que se refere a impactos indiretos, tanto os cidadãos com as empresas podem ver a sua capacidade para decidir afetada pela criação de regras de acesso, permanência ou saída dos mercados ou pela alteração da estrutura destes mercados.

O circuito legislativo europeu, a que se fez referência no ponto anterior, transfere para o Estado-Membro a responsabilidade da transposição das diretivas europeias, o que implica a especificação das medidas concretas - requisitos, obrigações e âmbito - a adotar, bem como a definição do processo de implementação e monitorização. Deste processo decorrem as obrigações de informação ou outras tarefas a desempenhar. A liberdade que é concedida ao Estado-Membro nas duas situações permite a criação de fenómenos de gold-plating, que, tal como já referimos, podem ter diferentes origens, decorrendo da densificação ou complexificação das medidas adotadas ou dos processos.

Relativamente à definição das medidas, o Estado-Membro estabelece os requisitos e as obrigações que concretizam a intervenção e o seu âmbito, i.e., a população sobre a qual incidem as medidas. Nestas duas dimensões, o Estado-Membro pode tornar os requisitos ou as obrigações mais exigentes (1.º acrescenta requisitos, obrigações ou normas para além daquelas que constam da diretiva) ou alargar o âmbito no momento da transposição (2.º estende o âmbito da diretiva). Em ambos os casos, há um potencial de aumento dos encargos a suportar pelos cidadãos ou empresas com impacto negativo na competitividade da economia, nacional e do mercado interno, e no bem-estar das sociedades.

A identificação de gold-plating nestas situações implica uma correta definição dos requisitos, obrigações ou normas e do âmbito de aplicação contantes da diretiva, o que depende da objetividade e clareza como os mesmos estão expressos no texto.

Em diferentes diretivas, as obrigações são expressas de forma genérica utilizando termos indeterminados, dificultado a identificação da exigência de base sobre a qual o eventual gold-plating pode ser determinado e calculado. Da mesma forma, o âmbito de aplicação, cidadãos e sector, pode não ser claro, deixando em aberto a sua concretização. Nestas situações, para efeitos de análise, a exigência de base poderá ser definida numa de duas formas: utilizar os textos que acompanham o processo legislativo europeu, em particular os que sustentaram a escolha de determinada medida tais, como a avaliação de impacto; alternativamente pela comparação com a forma como outros Estados-Membros procedem à transposição, i.e., pela identificação de situações de “gold-plating relativo”

Ainda no que se refere à definição das medidas, a liberdade de transposição que é concedida aos Estados-Membros permite-lhes manter anteriores decisões na mesma área, as quais podem ser mais restritivas (4.º Mantêm requisitos ou as obrigações definidas pela regulação nacional, que são mais exigentes do que o previsto pela diretiva em questão) ou podem estender os mesmos objetivos a outras áreas de intervenção (5.º Utiliza a implementação da diretiva para introduzir obrigações que saem do âmbito da diretiva). A existência de gold-plating nestes casos levanta a questão da liberdade dos Estados-Membros, que podem manter objetivos de política pública que vão para além daqueles delineados pela União Europeia e que podem estar de acordo com os objetivos de bem-estar internamente definidos em áreas relevantes como o ambiente ou a igualdade social. Nestes casos de “green plating” ou de “social plating”, pode estar em causa a harmonização legislativa que favorece o mercado interno, diminui os custos de contexto e promove a competitividade, i.e., pode estar em causa a visão centrada nas empresas que sustenta o conceito inicial de gold-plating.

Para além da definição das medidas, os Estados-Membros estabelecem o processo de implementação e a monitorização, dos quais podem resultar encargos para cidadãos e empresas decorrentes de obrigações de prestação de informação ou de cumprimento com tarefas necessárias ao cumprimento das medidas (6.º Recorre a mecanismos de implementação ou a sanções mais severos do que aqueles necessários para implementar a legislação). A identificação deste tipo de gold-plating volta a levantar dificuldades de definição dos processos mínimos de base que constituem o contrafactual para determinação das exigências excessivas. A análise das sanções coloca particulares dificuldades estando dependente do quadro sancionatório geral do Estado-Membro, bem como do sucesso e das tradições da estrutura judicial.

Por último, o gold-plating pode resultar do custo de oportunidade e da perda de competitividade associado a uma transposição mais rápida, que (3.º) não aproveite todas as derrogações permitidas pela diretiva. Se as empesas de um Estado-Membro são sujeitas a um conjunto de obrigações num momento anterior ao necessário e àquele que é imposto às empresas concorrentes dos restantes Estado-Membro, estas vão suportar uma perda de competitividade e assumir um custo pela antecipação dos encargos regulatórios.

Passos adicionais para compreender o gold-plating

Identificado o fenómeno e compreendidas as motivações da sua aplicação, importa considerar quais as soluções futuras possíveis que permitam cumprir os objetivos de política pública consagrados nos Tratados tendo em vista o Mercado Interno, bem como assegurar a autonomia dos Estados através do reconhecimento das normas e regras de cada ordenamento jurídico.

Conforme a opinião da Plataforma REFIT de 2019 , é fundamental que a Comissão Europeia envide esforços para alertar e apoiar os Estados-Membros para a relevância do processo de transposição, de modo a assegurar o cumprimento dos objetivos de política pública almejados. Todavia, importa também que os legisladores nacionais recorram a ferramentas e processos de transposição transparentes, seja pela disponibilização de guias públicos de apoio à implementação das normas legais, como também pela divulgação transparente dos processos de implementação da legislação europeia em todos os níveis da cadeia regulatória nacional, incluindo os envolvidos.

Por outro lado, é igualmente necessário discutir a liberdade de cada Estado-Membro para manter a sua tradição ou ambição em determinadas áreas de intervenção pública, que justifiquem a adoção de medidas mais restritivas ou ambiciosas no que se refere a opções sociais, ambientais, de justiça ou outras.

Pelo exposto, é assim necessário aprofundar o conhecimento do fenómeno de gold-plating, seja porque se deve compreender os seus impactos na competitividade e no funcionamento do mercado único, seja porque se deve esclarecer quais as ambições que o sustentam ou seja até porque se deve exigir um processo legislativo de elevada qualidade e transparente.

A transparência pode ser, na verdade, o fator-chave para lidar com os fenómenos de gold-plating, tanto nos processos como nos resultados, o que nos remete para a maior adequação da expressão proposta pela Plataforma REFIT para este contexto: transposição transparente.

Para o efeito, considere-se a transposição transparente nos seguintes âmbitos de aplicação:

a nível europeu na exata medida em que todos os Estados-Membros notifiquem, à semelhança do que sucede nos casos previstos no Sistema Europeu de Normalização, das normas previstas para implementação das diretivas, ou seja, dos fenómenos de gold-plating considerados, reforçando assim a autonomia dos Estados em equilíbrio com certeza jurídica necessária às empresas a atual no mercado interno;

a nível nacional na identificação e avaliação do impacto dos fenómenos de gold-plating, comunicando-os de forma clara aos cidadãos e empresas abrangidas.

A transposição transparente não combate os fenómenos de gold-plating, mas antes torna-os visíveis, eliminando a componente pejorativa do conceito e destacando os benefícios dos processos transparentes e monitorizados. Este novo prisma de observação do fenómeno implica, e implicará ainda, uma transformação profunda do modo como decorrem os processos de negociação e transposição do direito da União Europeia, mas também do modo como os interessados acompanham os processos legislativos, desde o momento da apresentação das iniciativas legislativas até à avaliação dos resultados da implementação.

Neste texto fomos apresentando uma análise prática do conceito de gold-plating, no qual nos centramos na identificação das razões da sua existência, nos fatores para a sua identificação e na estrutura que o suporta. Esta reflexão deve ser, agora, complementada com uma análise de processos de transposição, que nos permitam aferir em exemplos concretos destes elementos constituintes do gold-plating e da relevância do conceito de transposição transparente.

Referências

1. Atthoff K, Wallgren M, Clarifying Gold-Plating - Better Implementation of EU Legislation. Estocolmo: Näringslivets Regelnämnd NNR AB; 2019. https://nnr.se/clarifying-gold-plating-better-implementation-of-eu-legislation/e [ Links ]

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8. Zhelyazkova A, Kaya C, Schram R. When Practice Goes beyond Legislators' Expectations: Analysis of Practical Implementation Exceeding Legal Compliance with EU Directives. Journal of Common Market Studies; 2018; 56;(3):520-538. https://doi.org/10.1111/jcms.12637 [ Links ]

Recebido: 24 de Julho de 2021; Aceito: 20 de Agosto de 2021

Notas biográficas Manuel Cabugueira ECEO, Universidade Lusófona e investigador do projecto LegImpact: Legislative production as a means of carrying out public policies: quantitative analysis and socio-economic impact (fct project PTDC/DIR-OUT/32353/2017). Universidade Lusófona Campo Grande, 376 1749-024 Lisboa, Portugal mcabugueira@ulusofona.pt Ana Sofia Figueiredo Doutoranda no Programa de Doutoramento “Administração e Políticas Públicas”, do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, da Universidade de Lisboa. Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, da Universidade de Lisboa Campus Universitário do Alto da Ajuda Rua Almerindo Lessa 1300-663 Lisboa, Portugal anasmartins@edu.ulisboa.pt

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