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Cadernos do Arquivo Municipal

versão On-line ISSN 2183-2176

Cadernos do Arquivo Municipal vol.ser2 no.1 Lisboa jun. 2014

 

VARIA

Fonte para o estudo das casas religiosas de Lisboa: os Livros de Cordeamentos de 1700 a 1750

Cátia Teles e Marques*

 

 

(…) hira sempre Cordeando pellos seus alicerses uelhos sem thomar nada do publico e nos portais que de nouo se fiserem se não porão degraos na estrada e as sacadas ficarão em Altura de quatorze palmos pera sima não pondo grades bayxas de aranha que saquem da parede pera fora o qual Cordeamento foy feito por joão freire medidor das (f. 307v.) obras da Cidade e por uara de medir de sinco palmos da marca da Cidade do que passey esta Certidão em Lisboa aos uinte e seis de Agosto de mil e settecentos e dous anos.

Cordeamento da obra do novo convento de Santa Joana, 1702

Arquivo Municipal de Lisboa, Livro de Cordeamentos 1700-1704, f. 307-307v.

 

O “cordeamento” constituía um procedimento administrativo camarário corrente na gestão de Lisboa nos séculos XVII e XVIII1, que designava o auto de medição das fachadas e das vias públicas realizada pelo mestre ou medidor das obras da cidade utilizando por instrumento a vara de medir da marca da cidade2. Desta forma se garantia que as obras não tomavam nada do “público”, ou seja, procurava-se manter a largura das vias e fazer cumprir a regulamentação das fachadas – as portas não deveriam ter degraus na estrada e as janelas de sacada teriam 14 ou 16 palmos em altura3. Todas as obras em edifícios ou muramentos de propriedades, desde que voltadas para o espaço público, ficavam, assim, sujeitas à submissão de uma petição a aprovar pelo Senado da Câmara, após a realização do cordeamento4. Este procedimento aplicava-se, também, às casas religiosas.

O conjunto de Livros de Cordeamentos, conservado no Arquivo Municipal de Lisboa, é constituído por 39 volumes que registam as petições de privados, os despachos do Senado da Câmara e os autos de vistoria (ou de cordeamento) sobre obras a realizar nos edifícios da cidade. Cobrindo um arco temporal de quase dois séculos (1608 a 1789), a documentação considera sobretudo os limites urbanos da cidade, mas também Odivelas, Vila Franca de Xira, Aldeia Galega, Oeiras, Sacavém, Benfica, Carnide, Lumiar, Carnaxide e Loures, permitindo perceber os limites jurídicos de atuação da Câmara de Lisboa à época.

O presente artigo decorre da investigação realizada no âmbito do Projeto de I&D “LX Conventos. Da cidade sacra à cidade laica. A extinção das ordens religiosas e as dinâmicas de transformação urbana na Lisboa do século XIX”5. Um dos objetivos deste projeto é disponibilizar e trabalhar fontes inéditas para o estudo das casas religiosas da cidade e foi com este propósito que se realizou o levantamento dos Livros de Cordeamentos, cuja informação irá complementar as investigações em curso da equipa do “LX Conventos” e será divulgada, posteriormente, à comunidade científica.

Neste número dos Cadernos do Arquivo Municipal, realiza-se, pois, uma primeira abordagem ao tema com a publicação do índice da documentação de 1700 a 1750 relativa às casas religiosas de Lisboa. Para esta cronologia, existem doze Livros de Cordeamentos (quatro anuais e oito plurianuais), que correspondem a 30% do conjunto total, sendo que os volumes dos anos 1706 e 1730-1737 não registam dados referentes a intervenções nas casas religiosas da cidade ou suas propriedades. Note-se que foi seguido o critério definido pelo Projeto “LX Conventos”, que considera os conventos integrados na atual área municipal de Lisboa, pelo que se excluem as informações existentes alusivas às casas religiosas de outros concelhos, como Odivelas, Sacavém e Oeiras. O levantamento foi restringido, também, aos conventos e aos colégios das ordens religiosas, pelo que a nossa investigação não inclui recolhimentos, hospícios e hospitais, dado apresentarem estudos de caso de características distintas.

Os Livros de Cordeamentos constituem, seguramente, uma fonte rica para o estudo das casas religiosas e da sua relação com a urbe, dando notícia de obras nos conventos e colégios, como, igualmente, em outras propriedades que estas instituições possuíam em Lisboa, fossem elas “chãos”, hortas ou casas. Dos 78 conventos existentes no período entre 1700 e 17506, há referência a 17 casas femininas, 16 masculinas e 5 colégios (Tabela 1).

A informação compilada nos Livros de Cordeamentos é diversa no que respeita ao tipo de obras, tratando-se, na sua maioria, de trabalhos no exterior: reparo e conservação de muros dos conventos e das propriedades, alargamento e construção de casas anexas nos limites das cercas, e intervenções noutras propriedades urbanas e rurais na cidade. Neste sentido, esta documentação é omissa quanto a empreitadas que estavam a decorrer no interior das cercas, dado que não era necessária licença do Senado para o efeito.

Em alguns casos, todavia, é possível identificar intervenções nos edifícios principais, quando se tornava necessário armar um telheiro na via pública para se lavrar a pedraria para a obra. Foi o que sucedeu nos conventos de Nossa Senhora do Monte do Carmo, da Santíssima Trindade e de Nossa Senhora da Graça, que submeteram petições para erguer telheiros a fim de dar seguimento às obras na igreja e parte do convento carmelita (1701), na capela--mor da igreja trinitária (1711) e no convento agostinho (1714)7 (Tabela 2).

Por confinarem com a rua, toma-se conhecimento, igualmente, da reconstrução da sacristia da igreja de Santa Clara (1722) e de parte do dormitório do colégio de São Patrício (1744-45), e da obra de renovação da capela-mor da igreja de São Domingos de Lisboa (1741)8. Outros exemplos relacionam-se com a fundação e construção de novas casas, como o convento de Santa Joana da Ordem dos Pregadores9, permitindo balizar e completar a cronologia da construção dos edifícios.

Sobre os mestres que trabalharam nestas obras, a informação constante dos Livros de Cordeamentos é praticamente nula. É rara a menção aos oficiais, mas registam-se aqui dois exemplos: João da Silva, pedreiro que interveio na empreitada do convento de Nossa Senhora do Monte do Carmo em 1701; e José dos Santos, pedreiro que construiu o telheiro para a obra de pedraria que se fazia no convento de Nossa Senhora da Graça em 1714 e que assinou um termo de obrigação10.

Simultaneamente, outro dado relevante refere-se ao aforamento ou venda de terras da cerca a privados e, até mesmo, a construção de casas para alugar com o propósito de acrescentar os réditos das casas religiosas. Constata-se esta prática no convento das Mónicas em 1722, tornando-se mais frequente nos Livros de Cordeamentos a partir de 1738, com o loteamento de chãos das cercas dos Cónegos Regulares de Santo Agostinho, dos Eremitas de Santo Agostinho, dos frades de São Bento e dos Hospitalários de São João de Deus11. Seria, aliás, de interesse investigar-se como estudo de caso o loteamento da cerca do mosteiro de São Bento da Saúde – registado nos Livros de Cordeamentos entre 1745 e 1748 – que deu, inclusivamente, origem a uma nova rua, designada por Nova Colónia ou Nova Colónia de São Bento12. Tratar-se-ia de um novo polo de urbanização da cidade como veio a suceder, mais tarde em 1756, com o bairro das Trinas do Mocambo13? É, certamente, uma das múltiplas questões que se levantam na análise deste acervo documental e que se deixa aqui em aberto.

Numa leitura global sobre as casas religiosas de Lisboa a partir dos Livros de Cordeamentos, destaca-se o papel que elas tinham enquanto pontos de referência recorrente e impar na cidade. As ruas e áreas urbanas eram, frequentemente, designadas pelo convento ou mosteiro mais próximo. Tal ficou a dever-se, certamente, à dimensão dos edifícios, que se destacavam da mancha urbana como landmarks, fazendo uso da expressão cunhada por Kevin Lynch14 nos estudos de urbanismo. Assim se referem casas ou terrenos de privados que ficavam na proximidade do convento X, as ruas e travessas que iam do convento X ao convento Y. Daqui se foram tomando os nomes dos oragos das casas religiosas e das próprias ordens para designar as ruas, travessas e largos da cidade. Mesmo após o desaparecimento de conventos e mosteiros, a memória da sua existência é evocada ainda hoje pela toponímia.

 

 

FONTES E BIBLIOGRAFIA

Fontes manuscritas

Arquivo Municipal de Lisboa

Livro de Cordeamentos de 1700

Livro de Cordeamentos de 1700-1704

Livro de Cordeamentos de 1705-1709

Livro de Cordeamentos de 1706

Livro de Cordeamentos de 1707

Livro de Cordeamentos de 1710-1719

Livro de Cordeamentos de 1712

Livro de Cordeamentos de 1720-1729

Livro de Cordeamentos de 1730-1737

Livro de Cordeamentos de 1738-1740

Livro de Cordeamentos de 1741-1744

Livro de Cordeamentos de 1745-1752

 

Bibliografia

ARAÚJO, Norberto – Peregrinações em Lisboa. Lisboa: Vega, 1992. vol. XI.         [ Links ]

LYNCH, Kevin – A imagem da cidade. Lisboa: Edições 70, 1990.         [ Links ]

MATOS, José Sarmento de – Uma casa na Lapa. Lisboa: Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, 1994.         [ Links ]

MÉGRE, Rita; SILVA, Hélia – Os conventos na imagem urbana de Lisboa (1551-2015). MARADO, Catarina (ed.) - Monastic architecture and the city. Cescontexto Coimbra: Centro de Estudos Sociais - Laboratório Associado da Universidade de Coimbra. N.º 6 (2014), p. 108-124        [ Links ]

SILVA, Maria de Lurdes Ribeiro da – Aspectos da intervenção do Senado da Câmara na reconstituição pombalina. Os Livros de Cordeamentos. I Colóquio Temático – O município de Lisboa e a dinâmica urbana (séculos XVI-XX). Actas das Sessões. Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa, 1995. p. 101-120         [ Links ]

 

Índice Documental

 

Índice Documental

 

 

NOTAS

* Cátia Teles e Marques de Sousa Branco é doutorada em História da Arte Moderna; bolseira de Investigação do projeto “Lx Conventos. Da cidade sacra à cidade laica. A extinção das ordens religiosas e as dinâmicas de transformação urbana na Lisboa do século XIX” (FCT PTDC/CPC-HAT/4703/2012), Instituto de História da Arte (Faculdade de Ciências Sociais e Humanas/Universidade Nova de Lisboa). Correio eletrónico:catiatelesemarques@gmail.com

1 O Arquivo Municipal de Lisboa conserva livros de cordeamentos datados de 1608 a 1789. Não foi, ainda, possível perceber em que momento se deu início e se regulamentou este procedimento administrativo camarário, mas é crível que o mesmo possa ser recuado algumas décadas.

2 Sobre os Livros de Cordeamentos, a estrutura documental e administrativa e metodologias destes atos camarários veja-se o estudo SILVA, Maria de Lurdes Ribeiro da – Aspectos da intervenção do Senado da Câmara na reconstituição pombalina. Os Livros de Cordeamentos. I Colóquio Temático – O município de Lisboa e a dinâmica urbana (séculos XVI-XX). Actas das Sessões. Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa, 1995. p. 101-120.

3 A alteração à dimensão das janelas de sacada ocorre, sensivelmente, em meados do primeiro quartel do século XVIII.

4 Por vezes, era a própria Câmara que obrigava a reparações no edificado em mau estado de conservação, como sucedeu, por exemplo, com o convento de Nossa Senhora do Carmo, em 1708, que, por ordem do Senado, fora notificado para fazer obras numas casas danificadas sitas ao Arco de Nossa Senhora da Graça. Arquivo Municipal de Lisboa (AML), Livro de Cordeamentos de 1705-1709, f. 229-230.

5 Projeto do Instituto de História da Arte (FCSH/NOVA) – instituição proponente, com a participação da Câmara Municipal de Lisboa, Direcção-Geral de Arquivos e Fundação da Faculdade de Ciências e Tecnologia (FCT/NOVA). Coordenado cientificamente pela Professora Doutora Raquel Henriques da Silva e financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT PTDC/CPC-HAT/4703/2012), o projeto “LX Conventos” teve início em maio de 2013 e será concluído em 2015.

6 No início do século XVIII, Lisboa tinha 68 conventos - 42 masculinos e 26 femininos – e, em 1755, o número total era de 78 – 53 masculinos e 25 femininos. MÉGRE, Rita; SILVA, Hélia – Os conventos na imagem urbana de Lisboa (1551-2015). MARADO, Catarina (ed.) - Monastic architecture and the city. Cescontexto Coimbra: Centro de Estudos Sociais - Laboratório Associado da Universidade de Coimbra. N.º 6 (2014), p. 108-124.

7 AML, Livro de Cordeamentos de 1700-1704, f. 258-259v; Livro de Cordeamentos de 1710-1719, f. 143-144, 462-465v.

8 AML, Livro de Cordeamentos de 1720-1729, f. 235-236; Livro de Cordeamentos de 1741-1744, f. 771-772v; Livro de Cordeamentos de 1745-1752, f. 110-111v; Livro de Cordeamentos de 1741-1744, f. 22-23v.

9 AML, Livro de Cordeamentos de 1700-1704, f. 315-316v.

10 AML, Livro de Cordeamentos de 1700-1704, f. 258-259v.; Livro de Cordeamentos de 1710-1719, f. 459-460v.

11 AML, Livro de Cordeamentos de 1720-1729, f. 160-163v.; Livro de Cordeamentos de 1738-1740, f. 96-97v., 144-145v., 370-371v., 485-486v.; Livro de Cordeamentos de 1745-1752, f. 140-142v, 253-254v., 527-528v, 368-369v.

12 Segundo Norberto de Araújo, a rua Nova Colónia de São Bento, aberta numa área da cerca beneditina de terras de semeadura e olivais, correspondia à atual rua de São Bento. Segundo o autor, a rua Nova Colónia partia do Arco de São Bento até ao Rato. ARAÚJO, Norberto – Peregrinações em Lisboa. Lisboa: Vega, 1992. V. XI, p. 30.

13 Sobre a urbanização da cerca das Trinas veja-se MATOS, José Sarmento de – Uma casa na Lapa. Lisboa: Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, 1994. p. 33-48. O loteamento é também documentado em AML, Livro de Cordeamentos de 1706.

14 LYNCH, Kevin - A imagem da cidade. Lisboa: Edições 70, 1990.

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