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Cadernos do Arquivo Municipal

versão On-line ISSN 2183-3176

Cadernos do Arquivo Municipal vol.ser2 no.6 Lisboa dez. 2016

 

INTRODUÇÃO

Raquel Henriques da Silva*

FCSH/NOVA - Departamento de História da Arte, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas/Universidade NOVA de Lisboa, 1069-061 Lisboa, Portugal.

 

Às vezes íamos a subir as escadas (forradas de azulejo) do pátio (do Colégio) e dizíamos: Ó mãe, não diga mal, que a sua casa é um palácio! E ela (…): É um palácio nas escadas, que aqui em casa é uma barraca! (…)1.

A epígrafe que escolhi, apropriada de um dos artigos deste volume, assume a extrema diversidade tipológica e simbólica do que designamos por “casas”, mote para este e o anterior número dos Cadernos do Arquivo Municipal porque, entre os investigadores desta área expandida, a ressonância obrigou a feliz desdobramento dos artigos submetidos e qualificadamente arbitrados.

Reli-os no final de longo e motivador processo, próprio de uma revista científica, e posso assegurar, os muitos leitores que os vão consultar, que eles reúnem matéria de considerável importância: desde logo, e como é indispensável, a divulgação de inéditas fontes primárias – maioritariamente recolhidas no Arquivo da Câmara Municipal de Lisboa cuja riqueza não para de nos surpreender – mas, em alguns casos, completados com outros de que se destaca, naturalmente, o Arquivo Nacional Torre do Tombo. Não posso deixar de referir também a importância das ilustrações selecionadas, quer as eminentemente técnicas, quer, nesta cronologia recente, as fotografias que documentam as casas e, na maioria dos casos, quem lá vive(u), como se pretendia.

Os seis artigos que integram o dossier deste número são a sequência cronológica do número anterior, tratando “casas” novecentistas. Mas há uma exceção. “Aqui foi a Floresta Egípcia…” de João de Figueiroa-Rego abrange uma cronologia longa, proporcionada pela “casa” abordada: o palácio Cruz Alagoa na rua Direita da Fábrica das Sedas, fundado, como se sabe, no imediato pós terramoto por encomenda de um dos mais ativos negociantes da época de Pombal, sustentáculos da revolução industrial que o Marquês estimulou e em que se apoiou para reformar o Estado e violentamente dinamizar a sociedade. A extensão inusitada do grande casarão (um palácio em correnteza…) albergou ao longo de quase dois séculos um número inacreditável de inquilinos até chegar às mãos do seu último destacado proprietário, a curiosa figura de José Vaz Monteiro, médico e professor de medicina pela Sorbonne e empenhado agricultor e capitalista. Entretanto, nos jardins da grande casa, instalara--se, na década de 1850, a “Floresta Egípcia” que mais não era do que uma feira popular, criada e mantida por um pirotécnico italiano que garantiu divertimentos populares já relativamente interclassistas, característicos da Lisboa burguesa da Regeneração. Esta é uma situação sugerindo o que, inopinadamente, pode existir nas traseiras das casas…

Depois da exceção, surgem-nos as casas recentes, palacianas. Duas de Raul Lino, o que, sem qualquer intencionalidade, confirma o lugar fundamental deste autor na defesa e afirmação da casa unifamiliar como cerne mesmo da arquitetura. A questão é atravessada por diversos níveis de contradições conceptuais e ideológicas, a primeira das quais se relaciona com o facto destas casas serem realidades ostensivas, proclamando o status e a riqueza dos encomendadores e, assim, conflituando com o objetivo de democratizar a casa própria, expresso na literatura do arquiteto à volta da “casa portuguesa”.

Apesar da vastíssima bibliografia sobre Lino, em ambos os estudos há matéria inédita. No caso da Casa da Comenda nos arredores de Setúbal, edificada nos primeiros anos de 1900, Isabel Sousa de Macedo não só elabora um historial meticuloso dos Conde(s) de Armand (o primeiro comprou a velha casa, o segundo encomendou o projeto de reconstrução a Lino e o terceiro, já nos anos de 1930, habitou-a com maior regularidade ou emprestou-a a outros aristocratas europeus) como, especialmente, traça a história daquele extraordinário locus, com vestígios arqueológicos de ocupação industrial romana e que, desde o final da Idade Média, integrou a zona de proteção da costa, centrada na Torre de Vigia de Monguelas. Lino não conheceria este palimpsesto entretecido entre a história e a geografia, mas aproveitou a velha casa existente, para pendurar um palácio numa natureza de comovente beleza.

A segunda casa de Lino foi tratada por Paulo Manta Pereira que salienta a particularidade da imensa mansão, no luxuoso bairro da Barata Salgueiro. É uma obra dos anos de 1920 para Max Abecassis, um dos patriarcas de uma das mais importantes famílias judaicas de Lisboa. Apreciei o modo como o autor coloca esta obra na série das casas lisboetas de Lino, cedo demolidas (na avenida Fontes Pereira de Melo e na avenida da República) à exceção da casa António Sérgio à Lapa. Na minha opinião, esta casa é a menos interessante deste pequeno conjunto, embora o autor consiga sensibilizar-nos para a eficácia da implantação e da planta, centralizada, como ele gostava, num átrio de distribuição. As fotografias que acompanham o texto documentam idêntico empenho na decoração interna, nomeadamente pelos móveis encastrados que expressamente desenhou. Como as outras, a casa não sobreviveu à violenta tercialização da zona, mas chega até nós através dos testemunhos de quem nela viveu, permitindo captar um rasto de histórias cuja excecionalidade económica e social não as impede de possuir uma toada familiar, em que cada um de nós se reconhece.

A terceira casa (pode dizer-se, com rigor, o terceiro palácio) é a Casa do largo de S. Mamede, à rua da Escola Politécnica, erguida nos anos de 1950 para José Manuel Martins, apropriando e desmesurando uma casa anterior. Luís Soares Carneiro faz a história detalhada da particularidade do lote (de profundidade insuspeitada) inscrita nas transformações urbanas do sítio. Analisa também, com grande rigor, os aspetos da edificação anterior que condicionaram o projeto dos Rebelo de Andrade e evoca, com acerto visual e plástico, os valores desta arquitetura conservadora, saudosa da composição do palácio setecentista mas capaz de miscigená-la com as exigências do conforto moderno. Simultaneamente, o autor usa o gosto desta casa e o gosto dos seus arquitetos para confrontar a historiografia da arquitetura portuguesa, como foi elaborada por Nuno Portas e José-Augusto França: questiona o seu desprezo pelas expressões arquitetónicas anti-modernistas, desvalorizadoras da diversidade de tendências e opções que, nos anos de 1930-40, se confrontavam e que, vistas a partir de hoje, nos permitem confirmar que então, como sempre, a história e os seus produtos (mesmo os artísticos) extravasam as linhas simplificadas (e simplificadoras) das direções únicas.

Deixei para o fim os dois artigos que não tratam casas em nome próprio porque são casas coletivas. “Habitar no coletivo…” de Helena Barreiros debruça-se sobre um prédio dos anos de 1930, na rua Casal Ribeiro, em Lisboa. A fachada responde ao repto do modernismo internacional que tem raízes na art déco mas dela se distancia pela ausência deliberada de decoração arquitetónica, substituída pela original modelação dos volumes. O seu autor, João Simões, terá, neste projeto, uma das suas mais audazes fachadas mas, como Helena Barreiros bem demonstra, a composição interior é modesta e muito tradicional, com os fogos organizados através do longo e estreito corredor de distribuição.

Não temos nomes nem histórias de vida de quem habitou o prédio mas a fotografia de um espetacular frigorífico de época – instalado com dificuldade numa cozinha de dimensões classe média – metaforiza, com insuspeitado humor, o futurismo da própria fachada e o desejo de modernidade dos projetistas.

Em curiosa escala social decrescente o último artigo evoca, do ponto de vista sociológico, “Pátios e Vilas de Marvila e Beato…”. Margarida Reis e Silva entrevista moradores dos bairros que evocam histórias de passados que recuam à primeira parte do século XX , marcadas pela pobreza, a extrema carência e o desconforto. Mas, ao mesmo tempo, as memórias dulcificam esse passado – em que se vivia em vilas ou em barracas dentro de palácios – pela narrativa da intensidade da vida de vizinhança, num tempo perdido em que todas as famílias tinham crianças que enxameavam de gritos e correrias os pátios, verdadeiras salas de estar e receber das pequenas casas que não as tinham no interior. Com subtileza, a autora sabe captar essa saudade (que apaga o sofrimento e valoriza as festas e as diversas práticas de sociabilidade) mas nunca ilude as carências e a pobreza. Por outro lado, põe o leitor perante radicais transformações urbanas, decorrentes dos sucessivos aterros nas margens do Tejo. Quem diria que, quase a meio do século XX, os moradores proclamassem a superioridade da praia do Beato sobre a da Cruz Quebrada?...

Para mim, foi um imenso prazer o trabalho de equipa em que participei, conduzido por Ana Teresa Brito, Aurora Santos, Denise Santos, Marta Gomes, Sandra Cunha Pires, Sara Loureiro e Susana Madeira. A sua competência, empenho, entusiasmo e rigor são um exemplo para quem ama a cidade, os seus patrimónios e as suas casas. A elas se deve também a riqueza da documentação publicada neste volume que nos abre pistas para novas investigações sobre as casas, quem lá vive e a cidade em que se inscrevem.

 

 

NOTAS

* Maria Raquel Henriques da Silva é professora na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Departamento de História da Arte. Leciona os seminários do Mestrado em História da Arte do século XIX e é coordenadora científica do Mestrado em Museologia. Autora de estudos de investigação e divulgação nas áreas do urbanismo e arquitetura (século XIX-XX), artes plásticas e museologia. Comissária de exposições de arte. Correio eletrónico: raquelhs10@gmail.com

1 Testemunho de América Cardoso Nabais, Lisboa 17/08/2011 in SILVA, Maria Margarida de Almeida Reis e - Pátios e vilas de Marvila e Beato: modos de vida de um movimento antigo, publicado nesta revista.

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