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Cadernos do Arquivo Municipal

On-line version ISSN 2183-2176

Cadernos do Arquivo Municipal vol.ser2 no.7 Lisboa June 2017

 

RECENSÃO

 

SILVEIRA, Patrícia Ferreira dos Santos – Excomunhão e economia da salvação: queixas, querelas e denúncias no tribunal eclesiástico de Minas Gerais no século XVIII. São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2016.

 

José Subtil*

*UAL – Universidade Autónoma de Lisboa, 1169-023 Lisboa, Portugal.

 

O papel da Igreja no processo de construção do Brasil durante o Antigo Regime ainda não está suficientemente conhecido. Nos últimos anos, porém, tanto historiadores brasileiros como portugueses têm contribuído para um avanço significativo desta história cujos trabalhos estão, de uma forma geral, ancorados em fontes arquivísticas o que lhes confere uma marca heurística de credibilidade historiográfica.

Um destes exemplos é, justamente, o caso da jovem historiadora mineira Patrícia dos Santos Silveira que nesta obra estudou a organização da justiça eclesiástica, os temas principais que ocuparam o tribunal (com base no riquíssimo arquivo da Diocese de Mariana) e as implicações das sentenças na vida social e na relação, por vezes tensa, entre os poderes da Igreja e os poderes da Coroa porque aquela foi fundamental para manter a ordem, a disciplina social e garantir a defesa dos interesses económicos. A Patrícia Silveira é natural de Mariana, licenciada em História pela UF – Universidade Federal de Ouro Preto, mestre e doutora pela Universidade de São Paulo e investigadora-bolseira na Universidade de Coimbra onde trabalhou com José Pedro Paiva, um dos mais competentes historiadores da História da Igreja.

Como complemento ao arquivo do tribunal, a autora utilizou, ainda, o Arquivo da Universidade de Coimbra, o Arquivo Histórico Ultramarino, a Torre do Tombo, o Arquivo da Casa Setecentista de Mariana, a Biblioteca Joanina de Coimbra e a Biblioteca Nacional de Lisboa. A qualidade dos acervos, o conhecimento que revela sobre o estado da arte, a preparação teórica e a segurança hermenêutica fazem da sua tese, agora publicada, um livro imprescindível para futuros trabalhos nesta área.

O período e o espaço abrangidos pelo estudo de Patrícia dos Santos Silveira cobrem o século XVIII e a capitania de Minas Gerais, em particular a área sob jurisdição do bispado de Mariana, isto é, traduz um conjunto de perspetivas que não podem, de forma alguma, serem generalizáveis à colónia brasileira. A região de Minas Gerais durante este período caracterizou-se, fundamentalmente, pela exploração das minas de ouro e diamantes e por um crescente afluxo demográfico que criou a necessidade do controlo político da região. Do ponto de vista da jurisdição da Coroa, a cidade de Mariana pertencia à comarca de Vila Rica com ouvidor de nomeação régia.

Se tanto a Coroa como a Igreja reforçaram os mecanismos de vigilância e repressão neste território, o estudo demonstra, porém, que o poder da Igreja e da Coroa tinham capacidades de atuação muito desiguais. Já sabemos bastante sobre a administração da justiça na capitania e a intervenção dos militares, mas não sabíamos tanto sobre a instalação e organização da justiça eclesiástica pelo que este trabalho vem colmatar esta lacuna e, também, colocar em perspetiva comparada os dois poderes que, embora tivessem afinidades e se completassem, foram de facto distintos e com objetivos próprios o que explica não só os conflitos de poder como as apropriações «típicas» da paz social e da ordem pública.

Uma das conclusões que se pode retirar do estudo é que a Coroa não conseguiu acompanhar a capacidade de reprodução dos recursos humanos e logísticos da Igreja. Enquanto a Coroa tinha que «produzir» os seus agentes exclusivamente na Universidade de Coimbra (desembargadores, ouvidores, intendentes e juízes de fora) para os nomear para a colónia, a Igreja, além dos doutores e bacharéis que também recrutava na mesma universidade, conseguiu, com a instalação de seminários na colónia, «produzir» as suas elites, nomeadamente párocos, o que lhe permitiu montar uma rede de agentes que a Coroa esteve longe de conseguir. Por outro lado, o século XVIII correspondeu à expansão da rede paroquial, das vigarias e à criação dos bispados de Belém, Mariana e São Paulo e das prelazias de Goiás e Cuiabá. No final do século, a ação pastoral era assegurada por uma rede formada pelo arcebispado da Bahia e os bispados do Rio de Janeiro, Pernambuco, Maranhão, Pará, Mariana, e São Paulo.

O aparelho judicial canónico estava, também, fortemente enraizado e consolidado. De entre os juízes eclesiásticos, o mais importante era o Vigário Geral, doutor ou bacharel em Cânones, quase sempre agente da Inquisição (comissários do Santo Ofício). O Provisor estava ligado ao foro gracioso e à verificação dos «róis de confessados».

Embora o estudo valha para uma região fortemente marcada pelo interesse económico e com uma taxa de crescimento demográfico das maiores do Brasil, o certo é que os mecanismos que a Patrícia Silveira inventariou para o controlo social, permitem-nos supor a sua difusão na colónia, embora em diferentes dimensões. É certo que estes mecanismos foram replicados do Reino, mas sofreram grandes adaptações, algumas inovadoras como a enorme capacidade demonstrada pela Igreja para vigiar e regular a vida quotidiana das populações, combater os maus costumes, a criminalidade e resolver conflitos. Competências e capacidades que os magistrados régios não conseguiram por causa dos problemas de organização política. Esta obra permite, portanto, conhecer em detalhe o que se passou nesta capitania do ponto de vista do papel político, religioso e social desempenhado pela Igreja, como nos capacita para alargar este conhecimento ao resto da colónia e perceber como foi possível que o Império tenha sobrevivido com tão pouca capacidade e serviços régios, mas com tão grandes e poderosos recursos eclesiásticos.

O livro está dividido em três partes: i)- uma dedicada ao papel do Estado e da Igreja na colonização do Brasil; ii)- outra parte referente a análise da implantação da justiça eclesiástica na capitania de Minas Gerais; iii)- e, finalmente, a terceira parte sobre a economia da salvação, o campo religioso e a assunção dos mecanismos de disciplina e poder. Esta parte centra-se, fundamentalmente, no foro contencioso e nas tipologias penais, desde as punições espirituais até às pecuniárias e físicas. A autora dedicou uma atenção especial à origem das ações criminais que relevam, sobretudo, para a denúncia de leigos ou agentes eclesiásticos (párocos, capelães, solicitadores ou o Procurador da Mitra), verdadeiros curadores da norma e do cânone eclesiástico. Valem, aqui, sobretudo as ameaças às consciências através da excomunhão para os que soubessem dos factos e nada dissessem, os mandados monitórios, as repressões, a coerção, mas também o lado doce da repressão e disciplina como a concessão de privilégios, benefícios religiosos ou as estratégias de persuasão que visavam a inculcação de comportamentos e atitudes através de sermões, ritos litúrgicos, procissões, prédicas, leitura nos púlpitos, etc.

A obra revela-nos, igualmente, as estratégias tecidas pelos réus para se «livrarem» (aguardarem em liberdade) o julgamento através do expediente das cartas de seguro, manobras processuais, táticas de embaraço, manhas e queixas inventadas e/ou compradas, tudo para demorar, complicar e entravar o processo judicial.

O trabalho religioso na capitania de Minas Gerais durante o século XVIII , mais precisamente entre 1748 (primeiro bispo de Minas Gerais D. Frei Manuel da Cruz) e 1793 (data do falecimento do 4 bispo da diocese de Mariana D. Frei Domingos da Encarnação), foi analisado pela Patrícia dos Santos Silveira através da atuação do tribunal eclesiástico de Mariana que conta com cerca de 5 mil processos dos quais se conservam 1398 referentes ao século XVIII. De todo este acervo arquivístico foram selecionadas três séries documentais para o estudo, a saber: as queixas, as denúncias e as querelas eclesiásticas.

As denúncias, objeto de estudo específico, constituíram um expediente estimulado pelo quotidiano religioso e, por isso, alimentavam o sistema de crenças, o exercício da justiça e a estratégia de cristianização assente no pecado. Para além das devassas e querelas, os «róis de confessados» forneciam informações sobre os moradores das freguesias (idade, morada, família, ocupação e prática de sacramentos como batismo, matrimónio, confissão, extrema-unção, eucaristia e prédicas) que eram seladas e remetidas em segredo para os juízes eclesiásticos. Percebe-se como as paróquias se transformaram em centros de informação da vida social e individual e, também, em secretarias burocráticas para atestar certidões e acreditar inquirições.

O tribunal manifestava as suas sentenças através da execução, penhora, prisão, degredo, multa e excomunhão, tendo no pároco o agente fundamental de cooperação. Mas os párocos também colaboravam, estreitamente, com os juízes eclesiásticos na recolha das denúncias e tarefas burocráticas e judiciárias como a receção e envio de documentos, emissão de certidões, remessa de queixas, inquirição de testemunhas e publicidade das ocorrências graves para provocar queixas, etc. Era o caso, por exemplo, da «lista dos pecados reservados» afixada na sacristia e divulgada pela paróquia, «pecados mortais» como os crimes de contrabando, nucleares para a economia da região.

O pilar doutrinário que justificava os excessos dos juízes eclesiásticos assentava na ideia de que os bispos e os párocos tinham a obrigação de «pastorear» as suas ovelhas e, portanto, o direito de provocar e estimular as queixas, de condenar para corrigir os desvios e, quando a miséria e a pobreza material e espiritual fosse muita, de acionar o mecanismo virtuoso da caridade, do perdão e da indulgência, ou seja, tudo o que fornecia os fundamentos para o caráter fiscalizador e regulador da ação pastoral. O bispo, na qualidade de autoridade máxima da sua circunscrição, tinha ainda a prerrogativa do «perdoar», com discricionariedade, certos pecados da diocese o que, também, não o coibiu de tentar construir um aljube para os condenados por delitos religiosos.

O livro da Patrícia Silveira permite-nos, igualmente, tomar conhecimento do ambiente que envolvia as visitas pastorais que começava com o anúncio feito com antecedência, depois pela exuberância na receção aos visitadores (rigor dos vestuários, exibição e porte de insígnias, cerimonial excelso, pregações e cânticos). O primeiro momento da visita era estritamente espiritual com a visita à igreja, pia batismal, santos óleos, imagens de santos, relíquias, livros sagrados e alfaias do culto. Já o segundo era claramente da ordem temporal e judicial com uma devassa geral, sem a presença do pároco, sendo os testemunhos escolhidos a partir do último «rol de confessados» para deporem sobre os chamados «pecadores públicos». Estes casos eram do conhecimento dos visitadores que tinham sido, antecipadamente, informados pelos párocos com base nas denúncias estimuladas pelo medo da excomunhão.

Tal como acontecia na confissão, pairava nestas visitas o espetro terrível da condenação espiritual para obrigar aos testemunhos e denúncias de tal modo que era organizado um serviço de registo de danos pessoais e patrimoniais (perda e furto de escravos, assalto a casas, roças, hortas, animais, incêndios, sumiço de ouro, contrabando, “Queixa-se a Santa Madre Igreja fulano por causa da perda do escravo opere a quem o ver ou descubra, pretende torar carta de excomunhão”). Percebe-se o efeito político, não só religioso, destes instrumentos poderosos de controlo social e individual e o cuidado seguido pelos bispos para vigiarem os párocos, as amizades e as associações locais em que participavam. Tudo acabava, afinal, por alimentar o sistema de persuasão e coerção montado pela Igreja com base nas queixas, denúncias e querelas, sistema que prometia a salvação da alma ou a condenação perpétua.

Estamos, portanto, perante uma obra que reúne condições epistemológicas e fundamentos historiográficos que recomendam a leitura agradável, continuada e interessada. A Patrícia dos Santos Silveira, jovem historiadora brasileira, merece, por tudo isto, ser acompanhada no seu percurso de investigação pela qualidade do seu trabalho e o contributo que está a prestar a toda a comunidade científica interessada no período do Antigo Regime e da História da Igreja no Brasil.

 

 

Notas

* José Manuel Louzada Lopes Subtil – Licenciado em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, mestre em História pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, doutor e agregado no Grupo pela mesma Faculdade. Foi professor coordenador com agregação do Instituto Politécnico de Viana do Castelo e é, atualmente, professor catedrático da Universidade Autónoma de Lisboa onde é presidente eleito do conselho científico. Exerceu vários cargos públicos, como o de secretário-geral adjunto do Ministério das Finanças, vogal da Comissão de Reforma e Reestruturação do Arquivo Nacional da Torre do Tombo e da direção do Instituto Nacional de Acreditação da Formação de Professores. Tem várias publicações individuais e coletivas. Recebeu o prémio de mérito académico da Fundação Fernão de Magalhães e seis louvores públicos. Correio eletrónico: josesubtil@netcabo.pt

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