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Cadernos do Arquivo Municipal

On-line version ISSN 2183-3176

Cadernos do Arquivo Municipal vol.ser2 no.9 Lisboa June 2018

 

ENTREVISTA1 a José Sarmento de Matos2

“Em Lisboa as coisas ajeitam-se…”

 

«A minha Lisboa desenhava-se aos poucos como um articulado de pedras engendrado por gente e cimentado por palavras, sobreposição à primeira vista anárquica de expressões, gostos, vontades, sonhos e ambições, moldura irremediável da vivência de quem vem depois e, claro, também do olhar curioso de quem teima perceber a trama complexa da evolução da cidade».

José Sarmento de Matos - A Invenção de Lisboa...

 

 

NOTA PRÉVIA

Uma vida inteira a sentir Lisboa, a escrever sobre a sua Geografia e a sua História e sobre as pessoas e os espaços que neles habitam. O olisipógrafo José Sarmento de Matos revelou-nos, nesta conversa, o sentimento sobre a sua cidade.

 

Alexandra Gago Câmara / Teresa Campos Coelho (AGC/TCC): Lisboa, como todas as cidades, é um organismo vivo e em constante mutação, fez-se entre realidades, imaginários e utopias, entre permanências e transições. Neste contexto, como se pode conhecer a História de uma cidade como Lisboa?

José Sarmento Matos (JSM): A essência de uma cidade como Lisboa, e o facto fundamental para se conhecer qualquer aglomerado urbano, é o seu lugar… o seu sítio geográfico. As condições geográficas, o estuário do Tejo, a sua relação com o rio e como porto da maior importância entre o Atlântico e o Mediterrâneo, fazem dela uma referência. Sítio de fronteira entre o mundo conhecido e as trevas, é um ponto de abertura para o mundo… O sítio de Lisboa determina uma história de chegadas e de partidas. O livro que escrevi chama-se precisamente “A Invenção de Lisboa: as chegadas3.

É essa aglomeração e estratificação de “tempos” que caracterizam a cidade de Lisboa. Lisboa tem uma sensibilidade a todos os momentos históricos. A História de Lisboa é pautada por uma série de acontecimentos externos que marcam a sua vivência. Lisboa vai sendo a cabeça de um poder, pois não nos esqueçamos que a macrocefalia de Lisboa data do período romano, determinando a evolução da cidade com períodos de grande euforia e períodos de depressão.

Lisboa tem um período histórico muito importante com a Conquista de Ceuta (1415) baseado no grande domínio marítimo. Estou a escrever agora um livro sobre exatamente o século XVI, período que interessa muitíssimo para a história do crescimento de Lisboa. Entre 1545 e 1560 são criadas 13 freguesias (na parte ocidental), isto significa um grande crescimento da cidade para ocidente, no sentido do mar.

Continuo a ter uma visão de Lisboa onde as coisas são perenes. Durante muito tempo, apenas existiam a freguesia de Santa Justa (esta definia o termo de Lisboa) e a freguesia dos Mártires, onde proliferaram mais tarde as freguesias das Chagas, Loreto/ Encarnação, São Paulo, Santa Catarina, tudo isto com uma dimensão impressionante e ao mesmo tempo muito desequilibrada, pois para oriente apenas vimos nascer uma freguesia: Santa Engrácia. Lisboa resvala no sentido do mar, do ocidente. Esta dimensão é perene (temos mais tarde as reformas das freguesias com o Marquês de Pombal e mais recentemente com António Costa).

Isto dá-me sempre a ligação de como a cidade vai crescendo e da sua história, pois, no fundo, a cidade é feita de pedras e de vias; esse lado de uma cidade que é feita entre permanências e mudanças e essas permanências vão-se ajustando, mas a malha primitiva ainda lá está, intacta. Há uma espécie de rede de sobreposições que vão crescendo, criando uma outra realidade, mas a memória ainda permanece, ou seja, as linhas e redes sanguíneas ainda lá estão. Discuti muito esta questão com o arquiteto Manuel Salgado aquando do nascimento da Expo… Tomei conhecimento disso, por exemplo, com o Bairro da Lapa, pois, por vezes, constrói-se uma malha urbana fechada, sem entradas, nem saídas. É hoje, o que se passa, por exemplo, com a Expo: é um gueto, apesar de, hoje em dia, já se estar a “coser” com outras partes da cidade. E é isso que é muito fascinante em Lisboa, o seu puzzle e a sua implementação complexa.

Existem três palavras que definem Lisboa: o pragmatismo muito forte, o seu cosmopolitismo, por essência, e a permanente escassez de meios pois, mesmo quando se definem bairros, como o Bairro Alto, tudo acaba um ser feito às “três pancadas”. Por exemplo, ao Bairro Alto falta-lhe uma praça… não foi pensado, tudo aquilo nasceu espontaneamente, foi uma resposta (aliás privada) à expansão e crescimento de Lisboa.

 

 

 

AGC/TCC: Então podemos ligá-la à ideia de uma certa utopia? Acha que Lisboa foi e continua a ser uma cidade sonhada?

JSM: Fazendo finca-pé no pragmatismo, acho que não temos sonho, mas sim realidade… uma resposta constante, por vezes atabalhoada e manhosa, à pressão da realidade. Deixamos de parte, evidentemente, a Baixa Pombalina, pois aqui a conversa e a realidade são outras, apesar de percebermos a difícil articulação entre a Baixa e a cidade antiga. A Baixa também teve as suas fronteiras, era fechada, limitada pelo Passeio Público, no fundo a própria Baixa transporta-nos, novamente, para a ideia do gueto. Embora hoje em dia a comunicação se faça de forma bem diferente. Sabemos que a Baixa Pombalina teve uma dimensão utópica, mas não de sonho, foi uma resposta concreta a uma catástrofe…

Uma coisa curiosa… Nos séculos XVI e XVII os portugueses fizeram modelos de cidades (estou a pensar em Angra do Heroísmo, por exemplo, entre outras) que são exatamente cidades de matriz romana, desenhadas no papel e executadas. Sabemos muito pouco do que se passou nos séculos XVI e XVII, temos a planta do Tinoco4 e depois as plantas pós-terramoto. Entre estas, não existe uma planta, durante 100 anos. Mesmo Eugénio dos Santos desenha a nova Lisboa sobre a planta do Tinoco que estava evidentemente desatualizada.

Há permanentemente uma cidade que se justapõe. E essa justaposição, por vezes caótica, determina a cidade e a sua fisionomia, existe toda uma cidade e um “fazer cidade” que se vai cosendo…

 

AGC/TCC: Hoje, Lisboa é de quem? A quem pertence? Aos turistas, aos lisboetas? Existe uma identidade urbana? De que maneira sente hoje a cidade de Lisboa?

JSM: Lisboa é minha, sinto-a como minha, todos temos um bocadinho de Lisboa. Claro que a chegada de turistas impõe um certo dinamismo a Lisboa e, simultaneamente, vem condicionar alguns aspetos. Mas, por exemplo, o que era a Baixa há 20 anos? Um autêntico deserto que nada tem a ver com o que hoje existe, é uma cidade que absorve com uma enorme facilidade, sempre a dar resposta e a reinventar-se… o mais importante porto de mar que novamente dá resposta, o turismo fez novamente que Lisboa desse resposta…

 

AGC/TCC: Existe uma Lisboa ausente?

JSM: Existem edifícios ausentes que marcaram a cidade, existem vazios na cidade. A dimensão utópica de Lisboa podemos encontrá-la em Francisco de Holanda, na sua obra Da fábrica que falece a cidade de Lisboa [Lisboa, 1571], e em Luís Mendes de Vasconcelos, Do sitio de Lisboa e seus Diálogos, de 1608. Depois, evidentemente, a uma escala diferente, essa sim “imperial”, vimos nascer a Lisboa filipina… claro que a História nos fez esquecer esse período. É isto Lisboa… uma cidade de justaposições… Veja, por exemplo, a Rua Castilho, a Rua mais larga de Lisboa desemboca na Rua do Salitre… a Estrela é um cruzamento de caminho, tal como o Largo do Rato.

 

AGC/TCC: Uma última questão, uma surpresa… como… olisipógrafo, deixamos um desafio: se lhe oferecessem hoje um palácio em Lisboa para viver, sem qualquer condicionalismo, qual escolheria?

JMS:Posso indicar dois palácios: o Palácio Almada-Carvalhais, uma eterna ruína, mas muito fascinante com o seu claustro do século XVI. Já fiz três pareceres sobre aquele espaço… e nada se resolve… O outro é o Palácio chamado erradamente de Sandomil na esquina da Rua do Calhariz com as Chagas, estudei este edifício e apaixonei-me por ele, porque tem de tudo, uma estrutura, uma escadaria muito interessante, duas aparatosas salas com pintura mural, um jardim sobre o rio… é também um edifício que se foi acrescentando e moldando desde o século XVI ao século XIX, feito de sucessivos acrescentos… Mais uma vez a grande questão cultural, nossa: tudo se molda, se acrescenta se ajeita, tal como Lisboa…

 

AGC/TCC: Quer dar um título a esta nossa conversa?

JMS: Sim, claro…"Em Lisboa as coisas ajeitam-se..."

 

AGC/TCC: Muito obrigada pela sua disponibilidade.

 

 

NOTAS

1 Efetuada por Alexandra Gago da Câmara e Teresa Campos Coelho, realizada em 17 de maio de 2018, em Lisboa.

2 José António Salgado Sarmento de Matos, olisipógrafo. Frequentou o curso de História da Faculdade de Letras de Lisboa e de História de Arte da Universidade Nova de Lisboa, e tem-se dedicado ao estudo da arquitetura civil palaciana da cidade de Lisboa. Nesta perspetiva desenvolveu trabalhos sobre urbanismo e história geral da cidade. Tem várias obras publicadas sobre temáticas olisiponenses.

3 MATOS, José Sarmento de - A Invenção de Lisboa: as chegadas. Lisboa: Temas e Debates, 2008. livro 1.         [ Links ]

4 TINOCO, João Nunes – Planta da cidade de Lisboa, 1650. Lisboa: Lithographia da Imprensa Nacional, 1853.         [ Links ]

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