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Cadernos do Arquivo Municipal

versão On-line ISSN 2183-3176

Cadernos do Arquivo Municipal vol.ser2 no.15 Lisboa jun. 2021  Epub 01-Jun-2021

 

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Revolução Liberal: relação circunstanciada de testemunhos evocativos (1820-1823)

i Arquivo Municipal de Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa, 1070-017 Lisboa, Portugal. adelaide.brochado@cm-lisboa.pt


Este contributo em torno da homenagem à Revolução Liberal insere-se no âmbito do duocentenário das suas comemorações e constitui uma abordagem subsidiária para estudos e investigações no âmbito da temática evocada.

Produzida com base em fontes documentais do Arquivo Municipal de Lisboa, teve como objetivo proporcionar o conhecimento de documentação que, no contexto visado, integrasse conteúdos informativos que espelhassem práticas e formas de atuação da administração periférica e que, em simultâneo, evidenciassem a articulação dos procedimentos administrativos da Câmara de Lisboa com o poder central.

Para sustentáculo do arrolamento facultado, a ponderação do universo documental a utilizar foi equacionada com base na conjugação de critérios cronológicos, temáticos e tipológicos, tendo resultado no estabelecimento de um intervalo de tempo e na identificação de uma amostra estratificada em diferentes coleções temáticas e tipologias documentais com indícios de maior probabilidade de obtenção de resultados.

A delimitação cronológica foi fixada entre setembro de 1820, altura em que os livros de registo do Senado da Câmara de Lisboa passaram a integrar os primeiros testemunhos evocativos da matriz liberal - “Entrada [em Lisboa] do Governo do Porto”1 e a “União dos Governos de Lisboa e Porto”2 - e o último trimestre de 1823, contemporâneos do “Juramento da Constituição Política da Monarquia”3 e do “Restabelecimento da Monarquia Independente”4.

Na seleção de fontes, o enfoque foi direcionado para a documentação reunida nos conjuntos documentais Chancelaria Régia e Chancelaria da Cidade, com particular aplicabilidade para tipologias de teor estatutário, regulamentar e consultivo.

Nesta perspetiva, foram objeto de análise, entre outros diplomas, decretos, avisos das cinco secretarias de Estado (Negócios do Reino, Fazenda, Justiça, Marinha e Guerra), portarias do Governo do Reino, resoluções régias e consultas do município de Lisboa, por refletirem um conjunto de disposições a observar por parte dos órgãos e do oficialato da administração municipal e por integrarem matérias para as quais não existia legitimidade para decisão autónoma ou por encerrarem assuntos que, por suscitarem dúvidas, careciam de esclarecimento ou de confirmação.

Para apreciação, reuniram-se ainda documentos de feição publicitária, editais e anúncios, uma vez que agregam determinações tanto do poder central como do poder local, relativas a circunstâncias políticas, institucionais, celebrativas e financeiras, ou outras ocorrências que, pelo impacto estrutural, eram consideradas pelos políticos merecedoras de serem objeto de atenção e apreensão generalizada.

Os dados aferidos a partir do universo documental estimado foram ordenados cronologicamente, por ordem crescente de datas do registo efetuado na Câmara de Lisboa, na maior parte dos casos da autoria de Manuel Cipriano da Costa, cujo cargo de escrivão é transversal ao Senado da Câmara de Lisboa e ao período de vigência da Câmara Constitucional, sendo também da sua autoria os discursos proferidos, com dois dias de diferença, a 11 de dezembro de 1822, na última Sessão do “Extinto Senado”5, e a 13 de dezembro do mesmo ano, na Assembleia inaugural da “Nova Representação da Cidade”6.

A data do registo é, na maior parte das ocorrências, posterior à data dos diplomas inclusos nos resumos dos documentos elencados, dependendo o diferencial de tempo ser mais ou menos dilatado, consoante se trate de documentação expedida para a Câmara de Lisboa, proveniente da Corte, no Rio de Janeiro, ou procedente do Governo do Reino.

Para cada data de registo, a sistematização de dados contempla ainda outros elementos de informação como uma descrição sumária de cada testemunho evocativo, seguida da identificação da fonte documental a partir da qual os dados foram apurados (Tabela 1).

O teor de cada um dos documentos selecionados e resumidos apresenta informação que possibilita contextualizar e inferir interpretações respeitantes a acontecimentos políticos, institucionais e, em simultâneo, acrescentar o enquadramento dos mesmos em suporte legal. Pelo cariz estruturante que lhes é subjacente e pela importância de que se revestiram em diversas vertentes da trajetória dos alvores do Liberalismo, foram assinalados pelos atores envolvidos nos processos de decisão para divulgação e celebração como é o caso da “Constituição do Governo Supremo”, publicitada por Edital do Senado da Câmara a 23 de agosto de 1821 e que anuncia o teor da Resolução das Cortes Gerais, Extraordinárias e Constituintes da Nação Portuguesa, de 26 de abril de 1821 que determinava o dia 15 de setembro fosse a data de festividade nacional a celebrar com gala, salvas, embandeiramento de fortalezas e de navios de guerra e habituais demonstrações de júbilo e de regozijo7.

A viabilização das celebrações dependia, para além do quadro teórico que as legitimava, de recursos humanos e financeiros. As festividades da causa liberal foram, tal como todos os eventos na cidade de Lisboa, realizadas em espaços públicos, seculares ou eclesiásticos e organizadas a expensas dos Cofres da Cidade. Veja-se a título de exemplo as celebrações do 15 de setembro de 1820, que evocaram a Regeneração Política e implicaram para a tesouraria municipal um gasto em despesas extraordinárias de 8.853.890 réis no triénio de 1820 a 1822, valor repartido parcelarmente por 1820 (4.883.010 réis), 1821 (3.774.035 réis) e 1822 (196.845 réis).

A exceção ao financiamento das festas evocativas, entre 1820 e 1823, deve-se à coadjuvação por parte de particulares identificados com o ideário liberal e que pontualmente efetuavam doações a título de ajudas de custo para a causa liberal. Neste contexto, integra-se o registo no Senado da Câmara de Lisboa, de 17 de julho de 1821, de uma carta enviada por um anónimo, que assina como “cidadão constitucional”8, e na qual anexa, a título de doação, a quantia de 525.000 réis, em papel moeda, para ajuda no financiamento ao monumento evocativo da Regeneração Política, a erigir na praça do Rossio9, antecedendo, em cerca de dois meses, o anúncio público do lançamento da primeira pedra10.

Em matéria de organização de eventos, a prerrogativa municipal constitui atributo e característica transversal a várias épocas da história da cidade e, à semelhança de outros momentos, as iniciativas ligadas à evocação da festividade de 15 de setembro de 1820 foram objeto de assento pormenorizado em Auto pelo Senado da Câmara de Lisboa, que, na qualidade de promotor do evento, assegurou todas as providências para a sua viabilização11.

Algumas tradições de períodos mais remotos são recuperadas em época posterior, como o caso da festa evocativa da trasladação de São Vicente que, a pedido do Cabido da Sé de Lisboa, por ser serviço de Deus e honra do Santo Padroeiro da Cidade, foi mandada restaurar por Carta Régia de D. Filipe III, de 5 de novembro de 163112. Em conformidade com este tipo de recorrências, situa-se também a festividade do Mártir São Sebastião, retomada e reeditada a 17 de abril de 1823. A importância dada à recondução do evento é evidenciada pela publicitação da Câmara Constitucional de Lisboa, da transferência da delegação eleitoral da freguesia de São Sebastião para a do Sacramento, em virtude do tradicional dia de evocação do Mártir São Sebastião coincidir com datas da agenda eleitoral13.

A intervenção da cidade na organização de efemérides consistia essencialmente no assegurar um conjunto de providências que, entre outras medidas, passava pela angariação de materiais e de mão de obra para construção de infraestruturas e de adereços de arte efémera, limpeza e adorno de locais escolhidos para celebração coletiva e articulação com organizações civis, militares e eclesiásticas. É o caso, no período cronológico abordado (1820-1823), entre outros, da interação com a Academia de Santa Cecília, que participava nas sessões de música de forma gratuita ou mediante pagamento, da colaboração com a Guarda da Polícia e com os Regimentos de Cavalaria, Infantaria e Caçadores para escoltas de honra, ou do estabelecimento de parcerias com a Colegiada de Santo António e com a Sé Patriarcal, que colaboravam na disponibilização de espaços e de oradores para missas solenes, sermões, pregações e fornecimento de recursos humanos para vocalização de hinos Te Deum.

Apesar das festividades elencadas entre 1820 e 1823 estarem ligadas, na maior parte dos casos, a acontecimentos políticos e de servirem fins ideológicos, o cerimonial associado baseava-se em tradições e permaneceu, na essência, praticamente inalterável, facto visível no que diz respeito à observância do uso e costume em toda a encenação da entrada de D. João VI, na cidade de Lisboa, no dia 4 de julho de 1821, “Feita debaixo das Ordens do Senado da Câmara e às despesas do Cofre da Cidade, segundo o Regulamento do Regimento do Senhor Rei D. Manoel de 30 de agosto de 1502”14.

A Carta Régia de D. Manuel I, de 30 de agosto de 150215, inclusa no Livro dos regimentos dos vereadores e oficiais da Câmara, vulgarmente designado como Livro Carmesim, fixa determinações para o cerimonial a observar nas entradas régias e prevê o posicionamento dos participantes consoante a hierarquia dos poderes representados ou mediante a importância social de que eram detentores. Estipula ainda todo um normativo detalhado para a cerimónia de entrega das Chaves da Cidade e para o discurso a proferir na ocasião: “que esta mui nobre e sempre leal cidade lhe entrega as chaves de todas as portas e dos leais corações de seus moradores e de seus corpos e haveres pêra todo o seu serviço”16.

A matriz do ritual cerimoniático é mantida no Desembarque de D. João VI no Cais da Pedra, continuando praticamente inalterável o procedimento de formalização da lealdade da cidade, mediante a entrega de “duas chaves de prata douradas, primorosamente obradas, nas quaes se vião levantadas em relevo as Armas da Cidade”17, e o discurso de boas vindas, proferido pelo Conselheiro Vereador José de Abreu Bacelar Chichorro, nos seguintes termos: “A Cidade, pela mão do Senado da Câmara seu representante, tem hoje o inexplicável gosto de entregar nas Reaes Mãos de V. Magestade as chaves das suas portas, e com ellas as dos seus corações: E eu a quem a sorte conferio esta honra, contarei sempre este instante pelo mais feliz da minha vida”18.

A tónica de continuidade abrange ainda o restante esquema organizativo, particularmente na diversidade decorativa através de inúmeros dispositivos, no recurso a aparatos como o fogo de artifício e nas habituais demonstrações públicas de júbilo com aclamações e vivas, dadas pela população que assistia ao trajeto do cortejo real, desde o Terreiro do Paço até à Sé Patriarcal e daí rumo ao Palácio das Necessidades: “por toda a parte o povo se excedia em Acclamações e vivas, disputando-se nas demonstrações do seu contentamento”19.

Todavia, apesar dos sinais extrínsecos do formato das saudações permanecerem, a mudança introduzida pelo cunho liberal está presente nos elementos intrínsecos dos motes, deixando de se dar vivas ao Rei e passando a dar-se vivas ao Rei Constitucional. Esta componente de diferença na essência da forma de saudar refletia uma nova realidade, na qual, nos termos do estipulado em Decreto das Cortes Gerais, Extraordinárias e Constituintes da Nação Portuguesa, de 3 de julho de 1821, era considerado perturbador da ordem e do sossego público todo aquele que levantasse, por ocasião do desembarque de D. João VI, vivas que não fossem à Religião, às Cortes, à Constituição, ao Rei Constitucional e à Real Família20.

Paralelamente, também os atores envolvidos em todo o cerimonial representavam as componentes do regime monárquico constitucional, notório no percurso do cortejo organizado para a entrada régia, com início no Terreiro do Paço, em que seguem o coche real, por ordem de proximidade, os deputados de Cortes seguidos dos oficiais do Senado da Câmara21.

O projeto decorativo e ornamental dos vários troços da celebração eram da responsabilidade camarária e a expensas da Fazenda da Cidade. O cerimonial do desembarque, celebrado a 4 de julho de 1821, entre o Cais da Pedra e a Igreja da Sé Patriarcal, custou aos cofres municipais 5.569.450 réis, acrescidos, passados dezanove dias, da despesa de 1.867.420 réis, com a celebração da Ação de Graças pela pela Feliz Chegada de D. João VI na Igreja de Santo António22.

Entre 1820 e 1823, o sustentáculo financeiro das celebrações evocativas ligadas a acontecimentos políticos ou à tradição advinha significativamente de receitas da administração municipal, provenientes de rendimentos das propriedades foreiras da cidade, de impostos e de contribuições municipais e de cobranças de direitos decorrentes de diversas áreas da esfera de atuação de responsabilidade camarária: “Propriedades e de Lugares Públicos”, das “Novas Licenças” do “Marco dos Navios”, do “Ver o Peso”, da “Variagem”, do “Tragamalho” da “Almotaçaria das Execuções” da “Mealharia”, dos “Donativos das Lenhas” da “Estância Pública” dos “Foros da Cidade e Termo” dos “Laudémios” do “Alqueidão” da “Chancelaria” da “Prestação Anual do Terreiro” de “Alguns Devedores por Conta” e da “Executoria por Execuções”23.

Apesar de todos os gastos com festividades ligadas a acontecimentos políticos ou realizadas segundo a tradição, os cofres da Cidade registam, a 4 de janeiro de 1823, um saldo positivo de 3.652.353.000 réis24.

Para especificação complementar do binómio celebrações-custo associado, disponibiliza-se em anexo ao arrolamento de testemunhos evocativos (1820-1823) um quadro sinóptico de despesas com celebrações, organizado por data do acontecimento celebrado, seguido da respetiva identificação (designação e local) e desdobrado, por sua vez, em especificidades tocantes a tipos e objetos de despesa com associação de registo do valor total (em réis) despendido em cada uma das ocasiões (Anexo I).

A relação circunstanciada de testemunhos evocativos (1820-1823) com focalização na articulação acontecimento--celebração permite constatar que a festa está ligada ao acontecimento da implantação do Liberalismo, ainda que radicando em tradições, usos e costumes que em termos de estereótipos só muito lentamente sofrem modificação. “O que verdadeiramente interessa é ver o que sucede a um repertório de temas e símbolos recebidos quando é chamado a participar numa renovação artística, ou é utilizado para fins ideológicos, numa dada situação. É precisamente a relação entre a tradição e conjuntura que permite verificar a flexibilidade dos modos de expressão da festa” (Jacquot, 1956, p. 13).

Tabela 1 - Revolução liberal: relação circunstanciada de testemunhos evocativos (1820-1823)  

Pode consultar a Tabela 1 aqui.

Referência bibliográfica

JACQUOT, Jean - Les fêtes de la renaissance. Paris: Centre National de la Recherche Scientifique, 1956. vol. I. [ Links ]

Anexo 1

1 - Revolução liberal: Relação sinóptica de despesas extraordinárias com eventos e celebrações evocativas (1820-1823)

Pode consultar o Anexo 1 aqui

Fontes: AML, Chancelaria da Cidade, Coleção de editais da Câmara Municipal de Lisboa, 1814-1822, docs. 91, 94, 96, 107, 107a, 107b, 107c, 112, 115, 118, 123, 124, 126, 130, 135, 141, 142, 154, 157, 171, 176, 181, 190, 196; AML, Chancelaria da Cidade, Coleção de editais da Câmara Municipal de Lisboa, 1823-1840, docs. 9, 15, 53, 57, 62, 66, 67, 70.

1 Arquivo Municipal de Lisboa (AML), Chancelaria da Cidade, Coleção de editais da Câmara Municipal de Lisboa, 1814-1822, doc. 94.

2Idem, doc. 96.

3AML, Chancelaria Régia, Livro de registo de decretos e avisos dirigidos à Contadoria, 1821-1827, f. 29 a 29v.

4AML, Chancelaria da Cidade, Coleção de editais da Câmara Municipal de Lisboa, 1823-1840, doc. 70.

5AML, Chancelaria da Cidade, Coleção de editais da Câmara Municipal de Lisboa, 1814-1822, doc. 197.

6Idem, doc. 200.

7Idem, doc. 125.

8AML, Chancelaria Régia, Livro de registo de decretos e avisos dirigidos à Contadoria, 1821-1827, f. 13v a 14.

9Ibidem.

10AML, Chancelaria da Cidade, Coleção de editais da Câmara Municipal de Lisboa, 1814-1822, doc. 129.

11AML, Chancelaria da Cidade, Coleção de editais da Câmara Municipal de Lisboa, 1814-1822, Auto de toda a festividade nacional do dia quinze de setembro de mil oitocentos e vinte e hum, pelo Senado da Câmara, doc. 129.

12AML, Chancelaria Régia, Livro de festas, f. 242 a 244v.

13AML, Chancelaria da Cidade, Coleção de editais da Câmara Municipal de Lisboa, 1823-1840, doc. 35.

14AML, Chancelaria da Cidade, Coleção de editais da Câmara Municipal de Lisboa, 1814-1822, doc. 122.

15AML, Chancelaria Régia, Livro dos regimentos dos vereadores e oficiais da Câmara, f. 18.

16Idem, f. 19.

17AML, Chancelaria da Cidade, Coleção de editais da Câmara Municipal de Lisboa, 1814-1822, doc. 122.

18Ibidem.

19Ibidem.

20Idem, doc. 119.

21AML, Chancelaria da Cidade, Coleção de editais da Câmara Municipal de Lisboa, 1814-1822, doc. 122.

22Idem, doc. 124.

23AML, Chancelaria da Cidade, Coleção de editais da Câmara Municipal de Lisboa, 1823-1840, doc. 75.

24Ibidem.

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