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Cadernos do Arquivo Municipal

versão On-line ISSN 2183-3176

Cadernos do Arquivo Municipal vol.ser2 no.15 Lisboa jun. 2021  Epub 01-Jun-2021

 

Recensão

PROTÁSIO, Daniel Estudante, coord. - Historiografia, cultura e política na época do visconde de Santarém (1791-1856). Lisboa: CHUL, 2019. (Historiographica - Lisbon Historical Studies; vol. 2).

António Pedro Maniquei 
http://orcid.org/0000-0003-2403-0610

iESES - Escola Superior de Educação de Santarém, Instituto Politécnico de Santarém, 2001-902 Santarém, Portugal. apmanique@gmail.com


Este volume coletivo dedicado às temáticas da historiografia, teoria da história e história política relacionadas com o intelectual e historiador português que lhe define o âmbito cronológico (o 2º visconde de Santarém) insere-se na coleção Historiographica - Lisbon Historical Studies, do Centro de História da Universidade de Lisboa, e conta com importantes contributos de historiadores brasileiros, espanhóis e portugueses. Os artigos são precedidos por um texto explicativo da autoria do coordenador, Daniel Estudante Protásio (2009), profundo conhecedor da obra do visconde de Santarém, ao qual dedicou, ao longo de mais de vinte anos, variadíssimos estudos, designadamente as suas dissertações de mestrado e de doutoramento, tendo publicado, em 2018, Uma biografia intelectual e política do mesmo (Chiado Books).

A época do 2º visconde de Santarém (Manuel Francisco de Barros e Sousa de Mesquita de Macedo Leitão e Carvalhosa) é complexa e crucial para a compreensão do Portugal moderno. Período que assistiu ao colapso do Antigo Regime, à invasão de Portugal pelos exércitos franceses, que determinou a deslocação da Corte para o Brasil, à emergência da primeira experiência liberal e da contrarrevolução liderada por D. Miguel, à perda da grande colónia brasileira, ao desenrolar de uma sangrenta guerra civil e, por fim, à construção do Estado liberal, para referir apenas os marcos históricos mais significativos. O visconde de Santarém teve um importante papel político e diplomático, particularmente como secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros de D. Miguel (1828-1834), e marcou também a sua época como intelectual, historiador, geógrafo e cultor da cartografia, tendo deixado um vasto legado histórico e cultural que importa não esquecer.

O presente volume pretende contribuir para aprofundar o conhecimento do período em causa, invocando as comemorações dos bicentenários da Revolução de 1820 e da Vilafrancada, e tendo em conta os avanços da historiografia, da teoria da História e da história política nas últimas décadas. Os nove artigos que o compõem organizam-se em três secções distintas e complementares entre si: Historiografia, Cultura e Política.

A secção dedicada à historiografia inclui quatro interessantes artigos de autores brasileiros e portugueses. Temístocles Cezar (Historia magistra vitae: ensaio sobre a (in)definição do topos nos projetos de escrita da história do Brasil no século XIX), debruça-se sobre a construção do discurso historiográfico no Brasil oitocentista, marcado pela ideia clássica da história mestra da vida. O autor analisa três manifestos publicados na revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, fundado no Rio de Janeiro em 1838, os quais ilustram a forma como a escrita da História se tornou objeto de debate e problema teórico-metodológico numa época em que a própria História, enquanto campo de saber autónomo e disciplinado, dava os seus primeiros passos. Temístocles Cezar demonstra que o topos da historia magistra vitae está presente nos projetos historiográficos de produção de uma história do Brasil, embora tal noção fosse marcada, sobretudo, pelo signo da (in)definição política e epistemológica.

Valdei Araujo (José da Silva Lisboa e as narrativas da emancipação brasileira) analisa a obra e o pensamento de José da Silva Lisboa, visconde de Cairu, economista e historiador, autor de uma História dos principais sucessos políticos do império do Brasil, iniciada por ordem de D. Pedro I, em 1825. No contexto aberto em 1808, com a transferência da Corte para o Brasil, o autor demonstra que o discurso historiográfico de José da Silva Lisboa funde três macronarrativas disponíveis na época: a da ação providencial, a do conflito liberdade versus autoridade e a da passagem do mundo feudal ao comercial. A diversidade discursiva de José da Silva Lisboa permitiu-lhe construir uma narrativa da história do Brasil que enfatizava a harmonia conseguida pela independência e legitimava o novo regime imperial, liberal e ilustrado, personificado por D. Pedro.

Ricardo de Brito (O conceito de Revolução numa guerra de ideias em Portugal: algumas notas sobre linguagem e política (1820-1834) apresenta um contributo relevante para a compreensão e sistematização das mudanças operadas no léxico político e social em tempo de revoluções, debruçando-se sobre o caso português no período considerado. A partir de um conjunto diversificado de fontes (discursos parlamentares, obras publicadas, periódicos, panfletos), o autor analisa os universos discursivos liberais (revolucionários) e miguelistas (contrarrevolucionários), procedendo ao seu enquadramento histórico e conceptual e salientando o que une e o que afasta os dois campos políticos em confronto. O conceito de Revolução é, assim, considerado nos diversos significados e nos diferentes usos que dele fazem os dois grupos que marcaram a evolução política no intervalo cronológico estudado.

A secção termina com a apresentação de um projeto de Armando Malheiro da Silva e Daniel Estudante Protásio para a edição de um Dicionário crítico do tempo de D. Miguel (1828-1834), considerado necessário para a sistematização de fontes e aprofundamento de conhecimentos deste período. Os autores expõem os objetivos, as metodologias, a problematização teórica e as formas de organização do que pretendem venha a ser um dicionário científico, aberto, online e de acesso irrestrito, semelhante ao Dicionário de Historiadores Portugueses, acessível no portal da Biblioteca Nacional de Portugal (BNP). Seguindo de perto o modelo desenvolvido por François Furet e Mona Ozouf no Dicionário crítico da Revolução Francesa, são apresentadas cinco classes de verbetes que darão à obra uma estrutura pluritemática e onomástica: biografias intelectuais e políticas, análise contextual, entradas temáticas estruturadas em diversos eixos, instituições, periódicos. O Dicionário, já em elaboração e com edição prevista para os anos 2020-2023, constituirá um espaço de confluência de contributos individuais e de unidades de I&D, numa perspetiva global, transdisciplinar e comparativa que permitirá o acesso online a informação relevante respeitante aos anos de 1828 a 1834, a partir de uma base digital normalizada e amigável no acesso.

A secção dedicada à cultura apresenta dois artigos fundamentais para a compreensão da época do visconde de Santarém, abordando questões do âmbito da história da arte e da história das mentalidades. O texto de Alexandra Gomes Markl (Uma família de poder e cultura: em torno do retrato da família do 1º visconde de Santarém, de Domingos Sequeira) procede a uma análise desta obra (na qual o 2º visconde aparece representado) e dá conta da importante biblioteca e das coleções artísticas constantes do espólio de uma família que a autora qualifica como de poder e cultura. Ao caracterizar o contexto familiar em que decorreu a educação de Manuel Francisco, ou seja, uma família culta e poderosa, bem posicionada nos meios políticos e com interesses atualizados em diversas áreas do saber do seu tempo, a autora demonstra a importância da leitura de uma obra de arte para a compreensão do ambiente cultural de uma época, bem como da formação daquele que viria a ser um importante historiador e cartólogo.

O ensaio de Fátima Sá e Melo Ferreira (Uma devoção do Miguelismo: Nossa Senhora da Rocha de Carnaxide) parte da análise de um opúsculo editado em 1825 por um padre arrábido, pregador régio e cronista do reino, relativo a um fenómeno religioso ocorrido em pleno vintismo: o aparecimento de uma imagem da Virgem, em Carnaxide. O culto popular a tal imagem viria a ser politizado e aproveitado pelas forças anticonstitucionais, assumindo um caráter ideológico de devoção ao Trono e ao Altar e congregando os apoiantes de D. Miguel em diversos momentos da sua luta, triunfo e derrota. Mas a devoção a Nossa Senhora da Rocha de Carnaxide viria a perdurar para além do Miguelismo e seria apropriada também pela monarquia constitucional, designadamente pela própria família real, num processo de aculturação social e política cuidadosamente analisado pela autora. Esta análise dos múltiplos significados deste fenómeno religioso constitui uma excelente abordagem à história das mentalidades, contribuindo para aprofundar o conhecimento do século XIX português.

Na terceira secção, dedicada à política, são apresentados três contributos significativos para a compreensão dos processos contrarrevolucionários de Portugal e de Espanha. Juan Pan-Montojo e Andrés Maria Vicent (La “Peninsula das Hespanhas” y los legitimismos: la última función (1828-1840) procedem a uma comparação geral do papel da contrarrevolução no processo de formação dos estados nacionais em Espanha e em Portugal, no período compreendido entre 1828 e 1840. Abordando a crise desencadeada nas monarquias portuguesa e espanhola a partir da invasão francesa de 1807, os autores sublinham a justaposição geográfica e a comum dimensão imperial das duas monarquias, procedendo a uma avaliação pormenorizada do legitimismo ibérico, protagonizado por D. Carlos de Borbón, em Espanha, e por D. Miguel, em Portugal. A guerra civil portuguesa e a primeira guerra carlista são analisadas nos seus objetivos comuns e paralelismos cronológicos, salientando-se o facto de os contrarrevolucionários de ambos os países, embora nascidos num mesmo tempo, terem deixado legados muito diferentes, evidenciados na capacidade de transformação e sobrevivência do carlismo, em comparação com o declínio progressivo do Miguelismo.

Daniel Estudante Protásio (Moderados e ultras na regência e no reinado de D. Miguel (1828-1834)) apresenta uma tipologia dos movimentos ideológicos no interior do Miguelismo no poder, procurando caracterizar as principais figuras que serviram D. Miguel e enquadrá-las em duas categorias básicas - moderados e ultras - sendo certo que algumas delas são difíceis de classificar. Recorrendo a um importante conjunto de fontes e numa perspetiva prosopográfica, o autor elenca um número significativo de nomes, percursos de vida e posicionamentos ideológicos que permitem distinguir moderados como o visconde de Santarém ou o duque de Cadaval, de ultras, ou ultrarrealistas como o conde de Basto, ou José Agostinho de Macedo. São referidos alguns dos temas que dividiram ultras e moderados, designadamente as Cortes de Lisboa de 1828, o retorno da Companhia de Jesus em 1829 e o modo de reformar a Universidade e de a manter em funcionamento ou encerrada. Num esclarecedor conjunto de quadros que sistematizam funções exercidas e parentescos, identificam-se diversos indivíduos passíveis de classificação como moderados ou como ultrarrealistas, enquanto um outro sistematiza acontecimentos políticos que contextualizam determinados percursos individuais e grupais. Sublinha-se, sobretudo, a necessidade de uma análise prosopográfica e ideológica das elites políticas e intelectuais do período em causa, com vista à construção de um dicionário de figuras miguelistas desse tempo.

Por fim, Alfonso Bullón de Mendoza y Gómez de Valugera (Los últimos meses de Fernando VII a través de la documentación diplomática portuguesa) interpreta os tempos finais de Fernando VII de Espanha a partir da documentação diplomática existente no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT) e por ele estudada (Fundo Ministério dos Negócios Estrangeiros. Legações). Salienta a importância e a riqueza dos dados constantes da epistolografia diplomática para o conhecimento, não apenas dos momentos finais do reinado de Fernando VII, mas também dos problemas existentes em Portugal durante o governo de D. Miguel, fortemente apoiado pelo tio. O autor refere particularmente a correspondência do conde da Figueira, chefe da legação portuguesa em Madrid, com o visconde de Santarém, ministro dos Negócios Estrangeiros de D. Miguel de 1828 a 1834, sublinhando o contributo da mesma para uma correta compreensão da época, designadamente as pretensões legitimistas de D. Carlos de Borbón e a problemática da designação de Isabel II como herdeira do trono de Espanha.

Em suma, estamos em presença de um conjunto de trabalhos significativos para o aprofundamento do conhecimento de um período que carece, ainda, de muita investigação e de sistematização dos estudos já realizados. A abordagem das realidades portuguesa, brasileira e espanhola mostra-se fecunda no estabelecimento de paralelismos esclarecedores dos fenómenos políticos ocorridos na Península Ibérica, bem como na caracterização dos universos culturais português e brasileiro, dos quais o visconde de Santarém foi parte relevante. A problematização teórica e metodológica presente nos vários artigos estimula o desenvolvimento de novos estudos sobre uma época que, nas últimas décadas, tem merecido a atenção de diversos historiadores, mas que apresenta vastos campos inexplorados e abertos a investigações que continuem a lançar luz sobre os fenómenos políticos e culturais que a caracterizaram. Os objetivos da publicação são, pois, plenamente atingidos.

Referência bibliográfica

Estudo

PROTÁSIO, Daniel Estudante, coord. - Historiografia, cultura e política na época do visconde de Santarém (1791-1856). Lisboa: CHUL, 2019. (Historiographica - Lisbon Historical Studies; vol. 2). [ Links ]

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